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Economia solidária em alerta

A experiência brasileira conquistou reconhecimento internacional, mas o cenário de crise gera dúvidas sobre o futuro. Paul Singer, da Senaes, faz um balanço crítico das mudanças no Ministério
Por Sinara Sandri / Publicado em 12 de novembro de 2015

A experiência brasileira conquistou reconhecimento internacional, mas o cenário de crise gera dúvidas sobre o futuro. Paul Singer, da Senaes, faz um balanço crítico das mudanças no Ministério

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Desde julho, os movimentos sociais e entidades ligadas à economia solidária já manifestavam preocupação com o contingenciamento de verbas federais e um possível “desmonte” da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), como definiram em carta divulgada na 22ª Feira Internacional de Cooperativismo (12 de julho de 2015, Santa Maria/RS).

O próprio Paul Singer, economista que responde pela Secretaria desde sua criação em 2003, manifestou publicamente que seu cargo e as políticas federais estariam ameaçadas pelas negociações realizadas no âmbito da última reforma administrativa.

Miguel Rossetto assumiu a pasta, em 6 de outubro, após a união do Ministério do Trabalho e Emprego ao Ministério da Previdência Social. A demissão de Singer não se confirmou, mas o economista adiantou ao Extra Classe que haveria intenção de juntar a Senaes e a Secretaria de Políticas Públicas de Emprego, ambas parte da estrutura do Ministério do Trabalho.

O receio é que com a alteração, as políticas já abaladas pela tesourada que levou 62 por cento do orçamento de 2015 – dos 137 milhões previstos inicialmente só 49,6 milhões poderão ser empenhados – fragilize ainda mais o setor.

“A Senaes será mantida, mas para cumprir as determinações da presidente Dilma, será fundida à Secretaria de Políticas Públicas de Emprego. Pelo menos de boca, eu ouvi do ministro Miguel Rossetto de que não tem jeito, vamos ter que fundir as duas equipes”, disse Singer ao Extra Classe, durante audiência da Subcomissão de Economia Solidária, realizada em Porto Alegre, em 26 de outubro.

A assessoria de imprensa do órgão não confirma o plano de mudanças, enquanto o ministro Rossetto manifesta por nota oficial que o “desenvolvimento de uma economia solidária é estratégico para o Ministério e será pauta prioritária da gestão”.

Economia solidária

O setor conta com um Plano Nacional, aprovado em uma conferência realizada em 2014, que prevê ações para cinco anos e estabelece como meta a ampliação do acesso a crédito e a programas de formação.

Sados da Senaes revelam que, desde 2007, foram investidos 541 milhões de reais em 339 projetos, executados em 2,5 mil municípios. Estima-se que, neste período, foram beneficiadas 275 mil pessoas em 10,8 mil empreendimentos.

Segundo Singer, a Senaes opera sua política basicamente através de convênios. Atualmente, seriam cerca de 200, geralmente firmados a partir de demandas de prefeituras e governos estaduais. Na avaliação do secretário, esta estratégia apresenta problemas porque os governos locais e regionais não estariam preparados para apoiar a economia solidária.

“No Brasil, temos uma política de economia solidária que, em grande medida, é um  fracasso. Por que é um fracasso? Porque temos pouco dinheiro – com o ajuste fiscal teremos ainda menos – e os parceiros que recebem o dinheiro para fazer as coisas, não fazem”, disse Singer durante a audiência.

No caso do Rio Grande do Sul, a análise é confirmada pelo Fórum Gaúcho de Economia Solidária. Segundo Maribel Kauffmann, coordenadora da entidade, nenhum centavo dos 5 milhões e 600 mil reais do orçamento de 2015, que inclui recursos próprios e convênios, foi liberado pelo governo estadual.

O Fórum calcula que existam 2 mil empreendimentos em 270 municípios que dependeriam deste financiamento. Parte destas iniciativas foram constituídas nos últimos quatro anos em setores como a cadeia produtiva da lã e da garrafa PET.

Como são estruturados e financiados os projetos

Herdeiros da tradição do cooperativismo popular, os empreendimentos da economia solidária foram inspirados nas organizações de trabalhadores que assumiram o controle de empresas após a decretação de sua falência.

Caracterizadas pela autogestão e remuneração equilibrada em toda a cadeia produtiva, as iniciativas tiveram início no Brasil no final da década de 1980. São pequenos grupos, formados majoritariamente por mulheres, e envolvidos em atividades de reciclagem, artesanato e produção de alimentos.

Todos os produtos da cooperativa Justa Trama são produzidos com algodão ecológico

Foto: Igor Sperotto

Todos os produtos da cooperativa Justa Trama são produzidos com algodão ecológico

Foto: Igor Sperotto

“A economia solidária pode ser considerada uma extensão da economia familiar, mas não é informal nem assistencial. Seu mote é geração de trabalho e renda”, define o professor Pedro Costa, do Núcleo de Estudos em Gestão Alternativa (Nega), da Escola de Administração da Ufrgs.

Segundo o especialista, na fase inicial, os empreendimentos contavam com recursos de entidades estrangeiras ligadas a igrejas. Atualmente, além de linhas de crédito bancário subsidiado, o maior volume de recursos injetado no setor vem de recursos públicos investidos a fundo perdido e destinados a atacar os gargalos da atividade – acesso a mercados e qualificação do gerenciamento.

Esses recursos são aplicados através de projetos diretamente nos empreendimentos, no financiamento de feiras ou em convênios para assistência técnica em formatos como as incubadoras tecnológicas de cooperativas populares. As incubadoras envolvem especialistas que apoiam processos de gestão e elaboram projetos de captação de recursos. No Rio Grande do Sul, são 12 equipes universitárias trabalhando na economia solidária.

Nesse contexto em que o financiamento público tem uma importância vital, a regulamentação e transparência dos repasses de recursos são uma antiga reivindicação das entidades reunidas no Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES).

Com a entrada em vigor da Lei 13.019/2014, prevista para janeiro de 2016, ficam estabelecidas as regras para as parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. A lei foi proposta pelo executivo federal e será aplicada nas parcerias realizadas com organizações da sociedade civil, em todo o território nacional.

Entre as novidades, a obrigatoriedade de chamadas públicas para seleção de entidades e a necessidade de comprovação de experiência mínima de três anos, além da possibilidade de remunerar as equipes da própria instituição que trabalham nos projetos financiados, são consideradas avanços pelo setor.

Cooperativa gaúcha chama atenção de europeus

Paul Singer, economista e secretário da Senaes

Foto: Igor Sperotto

Paul Singer, economista e secretário da Senaes

Foto: Igor Sperotto

Entre inúmeras experiências já desenvolvidas no país, a Cooperativa Central Justa Trama, com sede no bairro Sarandi, em Porto Alegre, pode ser considerada um caso de sucesso.

Em sua origem, a central contou com a experiência e a estrutura da Cooperativa Unidas Venceremos (Univens), criada pelas mulheres da Vila Nossa Senhora Aparecida, na capital, ainda em 1996.

A partir de uma encomenda de bolsas para o Fórum Social Mundial 2005, a Justa Trama criou uma rede que reúne 600 trabalhadores e cinco associações em vários estados brasileiros em uma linha de produção de algodão ecológico que vai da lavoura à confecção de roupas.

Formada há dez anos, a Justa Trama foi destaque no Congresso Internacional de Economia Solidária (Solikon 2015), realizado em Berlim, em setembro.

“A cadeia têxtil Justa Trama é um exemplo impressionante. Nosso interesse principal é identificar os mecanismos democráticos que praticam de maneira tão convincente”, resumiu a socióloga alemã, Clarita Müller-Plantenberg, coordenadora do Solikon 2015.

Sem intermediários, os trabalhadores discutem, tomam decisões e controlam todo o processo, escapando do domínio de um agente único que normalmente domina a tecelagem e a lavoura de algodão, um cenário bastante comprometido pela pressão do consumo de agrotóxicos e pela precariedade das condições de trabalho das confecções, postos majoritariamente ocupados por mulheres.

O trabalho começa em lavouras orgânicas cultivadas por 350 pequenos agricultores em projetos de reforma agrária nos estados do Ceará e Mato Grosso do Sul.

A tecnologia desenvolvida com auxílio de organizações não governamentais envolve o plantio consorciado com outras culturas e o controle natural de insetos.

Após a colheita, o material é enviado para Minas Gerais onde é tecido por uma cooperativa formada pelos trabalhadores que assumiram o controle de uma antiga tecelagem falida.

Já em forma de pano, o algodão é recebido pelas costureiras da cooperativa Univens, no bairro Sarandi, em Porto Alegre, onde é cortado e costurado.

A cadeia é reforçada ainda por uma cooperativa em Rondônia que fornece botões e adereços feitos a partir de sementes e por um grupo de costureiras gaúchas que utiliza as sobras de pano na confecção de brinquedos e jogos pedagógicos. Em 2015, a central de cooperativas deve processar 5 toneladas de algodão.

Decisões coletivas e remuneração acima do mercado

Os investimentos e a definição da remuneração e do preço dos produtos são decididos coletivamente e a rede trabalha com a meta de manter uma remuneração superior à praticada na cadeia tradicional.

Segundo Nelsa Nespolo, conceito de preço justo perseguido pela rede foi um processo complexo que teve o cuidado de garantir tanto uma remuneração compatível com o valor agregado pelo trabalho com um produto especial – livre de agrotóxicos e da exploração da mão de obra ‒ quanto um preço final que não supere a capacidade de compra dos próprios produtores.

Nelsa Nespolo, coordenadora da cooperativa, defende que produtos ecológicos devem ser competitivos

Foto: Igor Sperotto

Nelsa Nespolo, coordenadora da cooperativa, defende que produtos ecológicos devem ser competitivos

Foto: Igor Sperotto

“Se o produto final acaba sendo caro para o trabalhador porque é orgânico, significa que pobre só pode comprar produto contaminado”, explica Nelsa Nespolo, coordenadora da cooperativa. Os produtos da Justa Trama são comercializados pela internet, em pontos de venda fixos ou em iniciativas de entidades parceiras.

Para cumprir os planos de aperfeiçoar a produção e ampliar o mercado, a Justa Trama incorporou uma linha de produção de calçados e ampliou a palheta de cores das peças, implantando um processo de tingimento a partir de pigmentos e fixadores naturais.

A cooperativa qualificou sua estrutura física, reservando local para cursos regulares de capacitação e hospedagem para visitantes em programas de intercâmbio. Para o futuro, o projeto é aumentar a participação na comunidade e criar um banco comunitário no bairro Sarandi, em um projeto desenvolvido pelo Nega/Ufrgs.

“Toda comunidade tem produção e circulação de valor porque produzem coisas que são importantes para vida. É preciso identificar o que tem valor em cada local (bens e serviços) e estabelecer os valores”, disse o professor Pedro Costa. A primeira fase do projeto é o mapeamento das atividades econômicas.

O trabalho vai utilizar um software para o georreferenciamento da oferta e da demanda de bens e serviços. O mapeamento deve ser feito também na Vila 1º de Maio, no bairro Glória, e a etapa de formatação do perfil do banco estará concluída até dezembro. A instituição deve financiar pequenos investimentos e oferecer recursos a juros baixos para pagamento de contas de consumo.

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