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Justiça: branca, masculina e rica

Por Flávio Ilha / Publicado em 11 de abril de 2016

Justiça: branca, masculina e rica

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

Operada por homens, brancos, jovens com boa formação teórica e pouca experiência, oriundos das elites e eleitos para a magistratura por critérios no mínimo discutíveis, a Justiça brasileira se distancia da realidade e tende a reproduzir os preconceitos de classe, gênero e raça. Apesar de regida pelos princípios da impessoalidade e da imparcialidade, pune os mais pobres e é complacente com autores de crimes administrativos e políticos. Em dez anos, mais de 680 crimes financeiros foram denunciados no país, resultando em 1,5 mil réus, dos quais 19 foram condenados. Nenhum foi preso. Já entre a população carcerária – em que predominam jovens, negros, de baixa escolaridade e renda inferior a um salário mínimo – um terço está na condição de presos provisórios, ou seja, sequer foram a julgamento.

Há um fosso profundo que separa a magistratura brasileira dos problemas sociais do país. Senão vejamos: o perfil dos juízes levantado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revela um predomínio branco e masculino nos tribunais. Cerca de 64% dos 16.927 juízes são homens – dos quais 84% se declaram brancos, casados, com filhos e idade média de 45 anos. O rendimento é muito superior aos R$ 1,1 mil da renda per capita média da população e a escolaridade, para dois terços desse universo, inclui pós-graduação, com mestrado e doutorado nas melhores universidades do Brasil e do exterior. Menos de 1,5% deles, de acordo com o CNJ, se declaram negros – contingente que, na população do país, chega a 51%.

Do outro lado do fosso, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 67 em cada cem presos do sistema carcerário brasileiro são negros – no total da população presidiária, isso representa um universo de 407 mil pessoas. Um contingente parecido a esse estudou apenas até a quarta série do ensino fundamental. E a renda das famílias dos apenados mal chega a um salário mínimo por mês. Mais de 350 mil dos 607 mil detentos do país têm entre 18 e 29 anos.

Por isso não chega a surpreender que as decisões da Justiça, embora regidas pelo princípio da impessoalidade e da imparcialidade, tenham um nítido viés de classe – ainda mais quando os crimes administrativos e políticos – classificados genericamente como crimes de colarinho branco – ocupam as manchetes há dez anos, desde a ação penal 470 que se ocupou do mensalão.

A vice-procuradora geral da República, Ela Volkmer Castilho, realizou um levantamento entre 1986 e 1995 em que constatou a falta de efetividade da Justiça para crimes financeiros. Dos 682 casos denunciados nesse período, apenas cinco haviam resultado em conde- nações de primeira instância no âmbito federal e nove nos tribunais superiores. Mais: dos 19 condenados de um universo de mais de 1,5 mil réus, ninguém foi preso.

Entre aqueles que nunca foram molestados nem pela Justiça e nem pelos investigadores do Ministério Público e da Polícia Federal estão os responsáveis pelos dois maiores escândalos financeiros dos anos de 1990: o caso Sivam e a Pasta Rosa. No caso Sivam, de 1993, as denúncias davam conta do pagamento de propina para a montagem de um sistema de vigilância na Amazônia pela norte-americana Raytheon. O pagamento teria chegado a US$ 30 milhões – cerca de R$ 115 milhões a preços atuais. Quem pagou o pato foi o brigadeiro Mauro Gandra, então ministro da Aeronáutica de Itamar Franco (PMDB).

No caso da Pasta Rosa, a liquidação do Banco Econômico – que pertencia a um ex-ministro da Indústria durante o governo do general Ernesto Geisel, Ângelo Calmon de Sá por insolvência começou a revelar um esquema de irrigação de campanhas eleitorais com dinheiro de propina. Na pasta, uma das quatro encontradas pela equipe do Banco Central que assumiu a administração do Econômico, havia a citação de 59 políticos entre deputados, senadores e governadores que teriam sido financiados pelo banco nas campanhas de 1986, 1990 e Valor do presente: US$ 10 milhões (R$ 38 milhões atualmente). A Procuradoria Geral da República pediu arquivamento do caso sob a alega- ção de falta de provas, aceito pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

“É um resultado pífio, já que perto de um milhão de crimes financeiros são cometidos todos os anos no país. Atos lesivos importantes simplesmente não são comunicados, ou por falhas na fiscalização ou por pressão de políticos e grupos econômicos”, pondera a vice-procuradora, que na época investigou o escândalo da Pasta Rosa, sem sucesso. “A Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça têm menor parcela de responsabilidade, mas mesmo assim agem para desqualificar esses crimes porque participam de uma tendência geral de que a punição seja dirigida aos mais pobres”, completa.

Recorte social começa na formação
Nada mais natural quando se está falando de uma casta cujos critérios de escolha são no mínimo discutíveis. “A Justiça brasileira atualmente é oriunda de concursos. Os salários são muito altos, os certames muito difíceis, então em geral são selecionados os jovens das famílias ricas que podem ficar anos sem trabalhar, só estudando. O perfil de um pro- motor, de um delegado da Polícia Federal, de um juiz, hoje, é de um filho das elites”, critica o diretor da Associação Gaúcha dos Advoga- dos Trabalhistas (Agetra), Antonio Escosteguy Castro.

Recorte social começa na formação

Foto: Igor Sperotto

Antonio Castro, da Agetra

Foto: Igor Sperotto

A distorção, segundo ele, atinge especialmente a magistratura de primeiro grau, onde a maioria dos juízes concursados está exercendo atividade profissional pela primeira vez. Geralmente são jovens que nunca trabalharam, que têm uma ótima base teórica, mas nenhuma vivência processual e nem compreensão da realidade. “Cerca de 95% dos juízes do trabalho, por exemplo, nunca advogaram na vida, nunca tiveram o tipo de relação profissional que vão precisar julgar. Ou seja, por melhor base teórica que tenham, falta experiência. E falta politização”, diz o advogado. Antes que seja cobrado pela declaração, Castro adverte: a Justiça não deve ser apolítica, mas sim apartidária.

O Brasil tem 8,35 juízes para cada grupo de 100 mil habitantes (dados de 2014), o que sobrecarrega a análise de processos e torna a Justiça mais lenta. É uma média inferior a países considerados desenvolvidos, como Portugal (19 para cada 100 mil) e Itália (10 para cada 100 mil). Cada juiz no Brasil profere em média 1,6 mil sentenças por ano nas várias esferas contra menos de 900 da maioria dos países ocidentais. Essa média se mantém há pelos menos dez anos e, segundo o CNJ, há quase 5 mil vagas não preenchidas para juiz de todas as instâncias – fruto do elevado índice de reprovação nos concursos.

Demora gera prescrição e impunidade
A Justiça brasileira, devido a esse desequilíbrio, tem o dobro da carga de trabalho do juiz europeu. E o número de processos em tramitação só aumenta – há um estoque de 71 milhões de casos ativos, informa o CNJ. Sete em cada dez processos estão nas justiças estaduais, que detêm 81% dos casos pendentes – sem sentença ou execução. “Poucos juízes gera morosidade e morosidade favorece a prescrição. A prescrição, por sua vez, resulta na impunidade”, pondera o jurista e professor Luiz Flávio Gomes.

Impunidade e injustiça, como revela um levantamento da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep). De acordo com o documento, há apenas três defensores públicos para cada grupo de 100 mil habitantes no Brasil. O que eleva o déficit de profissionais para mais de 10 mil – se for considerada a meta de um defensor para cada grupo de 10 mil pessoas com renda até três salários mínimos. Talvez isso explique a constatação do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de que 250 mil detentos estão presos no país sem condenação, sem julgamento e sem defesa.

O jurista Lenio Streck, professor titular do programa de pós-graduação em Direito da Unisinos e procurador estadual aposentado, identifica uma espécie de “populismo penal” nas decisões recentes do Judiciário. E cita pesquisa realizada entre 1940 e 2009, de autoria do procurador federal Luís Wanderley Gazoto, que aponta um aumento na legislação punitiva aprovada no Congresso Nacional: de 122 leis penais aprovadas em 70 anos, 80% delas agravavam as sanções – em alguns casos, com penas até oito vezes maiores.

“Se criou, no país, um imaginário consequencialista, ou seja, um senso comum de que os fins justificam os meios. Foi o comportamento jurídico que o construiu. Com qual combustível? Prisões e operações midiáticas, cada vez mais frequentes, que fazem com que as pessoas fiquem satisfeitas porque aparentemente a Justiça está dando resultado. Não está. Não se pode dizer que não se devam punir criminosos, incluindo corruptos, mas mais fundamental que isso é preservar as garantias individuais. Entre uma e outra, fico com a preservação das garantias”, defende Streck.

Visão utilitarista e concentração de poder
Opinião similar tem o juiz Rubens Casara, coordenador de processo Penal da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj) – com o agravante de que o magistrado enxerga nessa fragilidade uma porta escancarada para o arbítrio. “O principal limite ao exercício do poder é formado pelos direitos e garantias fundamentais, verdadeiros trunfos contra a opressão, principalmente da chamada opinião pública. Sempre que um direito ou garantia fundamental é violado, nos afastamos do marco do Estado Democrático de Direito. Nada, ao menos nas democracias, Legislação especial legitima a flexibilização de uma garantia constitucional, como, por exemplo, a presunção de inocência”, defende o jurista.

Casara lembra o caso nazista, em que grande parte da população alemã foi levada a acreditar que a desconsideração de direitos e garantias individuais em nome dos “interesses do povo” era uma necessidade. “A justiça penal nazista se estabeleceu às custas dos direitos e garantias individuais, percebidos como obstáculos à eficiência do Estado e ao projeto de purificação das relações sociais e do corpo político”, compara.
O magistrado também se refere à uma certa tradição na Justiça brasileira atrelada à visão utilitarista – preocupada em satisfazer maiorias de ocasião ou determinados grupos sociais. “Essa tradição aponta para a concentração de poder no Judiciário, à percepção dos réus como meros objetos da ação do Estado e a prevalência de interesses abstratos da coletividade em detrimento de interesses individuais concretos”, explica. “E isso não é bom”.

É o que opõe, por exemplo, o interesse da coletividade em combater a corrupção às garantias individuais de suspeitos ou acusados, que devem ter seus direitos resguardados.
O presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), João Ricardo Costa, acha que a solução para a baixa efetividade do Judiciário brasileiro é modernizar a legislação processual e torná-la “compatível com a demanda do nosso tempo”. Costa afirma que parte da insatisfação da sociedade com os juízes vem de um “surreal” sistema de recursos, que impossibilita aos juízes apresentarem resultados satisfatórios.

Legislação especial

PACOTE ANTICORRUPÇÃO
A Lei 12.846/2013 entrou em vigor em janeiro de 2014 e destina-se a punir empresas envolvidas em práticas relacionadas à corrupção, com a aplicação de multas de até 20% do faturamento. O decreto assinado em 18 de março de 2015 pela presidente Dilma Rousseff regulamenta diversos aspectos da lei, tais como critérios para o cálculo da multa, parâmetros para avaliação de programas de compliance, regras para a celebração dos acordos de leniência e disposições sobre os cadastros nacionais de empresas punidas.

COLARINHO BRANCO
Lei 7.492 (de 16 de junho de 1986) – Definiu os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional co- metidos por administradores, servi- dores públicos ou diretores de instituições financeiras, entre outros, que lese a ordem econômica. Inclui suborno, tráfico de influência, informação privilegiada e fraude.

DELAÇÃO PREMIADA
Lei 12.850 (de 2 de agosto de 2013) – Faz parte da legislação que define organização criminosa e dispõe sobre a obtenção de provas. Prevê até perdão integral da pena, mas a colaboração deve ser voluntária e não pode ensejar nenhuma sentença condenatória por si só – ou seja, a delação não é prova suficiente para condenar alguém.

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