OPINIÃO

Reflexo condicionado

Publicado em 12 de julho de 2016

Qual é o caminho, então, para reduzirmos os crimes sexuais? Duas circunstâncias podem fazer diferença: a certeza da punição e uma mudança geral no padrão de relações abusivas e desrespeitosas com as mulheres

O médico russo Ivan Pavlov entrou para a história quando descobriu que determinadas reações fisiológicas e psicológicas poderiam ser produzidas ou removidas por condicionamentos. Chamou tais reações de “reflexos condicionados”. Lembro de Pavlov cada vez que vejo pessoas propondo o agravamento das penas. Trata-se de um padrão: no Brasil, sempre que há a notícia de um crime que choca a população, passa-se a exigir penas mais duras. Sintonizados com esta demanda, políticos disputam, então, quem apresenta o projeto de lei “mais implacável com os bandidos”. No caso recente de um estupro coletivo no Rio de Janeiro, tivemos duas reações típicas: a primeira, de culpabilização da vítima, apontada como “garota de facção” e acusada de ter se drogado ou alcoolizado, como se qualquer das alegadas situações pudesse diminuir a gravidade do crime. Na outra abordagem, a solução mágica foi sacada da cartola: é preciso tornar as penas mais graves. Será?

Reflexo condicionado

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil 23

Manifestante na Candelária, no Rio de Janeiro, durante protesto contra a cultura do estupro

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil 23

Autores de crimes como esse merecem o desprezo público e, por certo, longos anos de prisão. No caso brasileiro, os que forem condenados por estupro terão pena de 6 a 10 anos de prisão (art. 213 do CP), mas podem ser condenados a até 30 anos, a depender do caso. Nosso tipo penal não é específico para estupro, o que significa que qualquer ato libidinoso – um beijo, por exemplo –, desde que obtido mediante violência ou grave ameaça, é suficiente para o enquadramento penal e, desde 1990, o estupro é considerado crime hediondo. Cito estas mudanças para lembrar que a legislação penal tem sido agravada no Brasil. É possível aperfeiçoar o tipo penal? Por certo. Os EUA, por exemplo, não definem o estupro a partir da violência ou grave ameaça. Para eles, o decisivo é a ausência de consentimento. Independentemente deste debate, entretanto, os crimes sexuais têm aparentemente crescido no Brasil.  A pergunta a ser feita, então, é: por quê?

O primeiro problema é a subnotificação dos crimes sexuais. No Brasil, não temos uma tradição de pesquisas de vitimização, o que nos impede de estimar as taxas de subnotificação, mas, nos EUA, sabe-se que apenas 34% das agressões sexuais são registradas pelas vítimas (Bureau of Justice Statistics). É provável que esta cifra obscura (dark rate) seja maior no Brasil, por conta das baixas taxas de confiança em nossas polícias. O fato é que as vítimas temem que o registro do fato termine por expô-las a novas humilhações e riscos. Quanto mais forte o machismo, maiores as possibilidades de as mulheres serem responsabilizadas pela violência que sofreram. A estupidez envolve questionamentos sobre seu presumido “descuido” e mesmo sobre a roupa que usava. Aliás, em 2011, depois de uma série de estupros em Toronto, foi uma observação do tipo, feita por um policial, recomendando que as mulheres “não se vestissem como vadias”, que deu origem à “Marcha das Vadias” (Slutwalk), onde as mulheres afirmam seu direito de se vestirem como desejarem, sem que isso possa ser usado como “justificativa” para crimes sexuais.

O segundo problema é a identificação dos autores. Dificilmente, há prova testemunhal em casos de estupro e nem sempre a vítima consegue identificar o agressor. Daí a importância dos exames de DNA, entre outros recursos que uma perícia bem aparelhada e com técnicos qualificados pode oferecer. O que ocorre é que, como regra, não se produz a prova para a condenação nos crimes sexuais e em outros crimes graves.

Ao contrário do que se imagina, a gravidade da pena não se relaciona com as taxas criminais. Já as taxas de impunidade, sim. Se um potencial infrator intui que as chances de ele ser identificado são grandes, isso poderá desencorajá-lo, ainda que a pena não seja rigorosa. Se, pelo contrário, imaginar que dificilmente será identificado, isso funciona como um estímulo, ainda que as penas sejam gravíssimas. Sabe-se disso desde que Beccaria escreveu Dos Delitos e das Penas, há 252 anos. O tema da impunidade, portanto, nada tem a ver com a gravidade das penas, mas com a qualidade da prova.

Também por isso crimes sexuais constituem grave problema em muitos países, inclusive naquele em que as penas podem ser muito duras, como nos EUA. Nesse país, onde uma condenação por crime sexual pode resultar em prisão perpétua, 173.610 mulheres e adolescentes foram violadas sexualmente em 2013 (Bureau of Justice Statistics), e pelo menos 17% das mulheres já foram vitimadas por delitos sexuais (US Department of Justice).

Qual é o caminho, então, para reduzirmos os crimes sexuais? Duas circunstâncias podem fazer diferença: a certeza da punição e uma mudança geral no padrão de relações abusivas e desrespeitosas com as mulheres. Para a primeira, precisamos de uma revolução nas polícias; para a segunda, de uma revolução cultural. Hoje, os agressores são levados, por sua própria experiência, à aposta de que “não vai dar nada”, porque não são identificados e porque, muito antes de terem começado a violar mulheres, já haviam se acostumados a desrespeitá-las, contando, para tanto, com a indiferença e mesmo com o aval de amplos setores da sociedade. Os episódios que envolveram Jair não-merece-ser-estuprada Bolsonaro e Alexandre peguei-a-mãe-de santo Frota o confirmam.

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