MOVIMENTO

Criminalização da cidadania

Por Adriana Lampert / Publicado em 5 de setembro de 2016

Criminalização da cidadania

Foto: Rovena Rosa/ABr

Foto: Rovena Rosa/ABr

Repressão generalizada e punição de ativistas e profissionais identificados com a democracia e os direitos humanos têm sido denunciadas em todo o Brasil. Mobilizados, grupos de juristas, professores, jornalistas e líderes sindicais buscam alertar trabalhadores e demais atores da sociedade para os riscos à liberdade a partir do não cumprimento da Constituição Federal.

A nova onda de criminalização das manifestações sociais e dos profissionais identificados com a defesa da democracia e dos direitos humanos ainda nem atingiu a crista, mas já preocupa boa parte da população brasileira. Erguida após o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, tem sido surfada não somente pela polícia militar a serviço de governos de direita, mas também por diversos setores do Judiciário e do Ministério Público (MP), e pela parcialidade da grande mídia. Para contê-la, um coletivo de juristas e advogados lançou o movimento Resistência Constitucional, que denuncia o momento de exceção instalado em âmbito nacional. O foco é manter um fluxo regular de denúncias e relatos do que está acontecendo aos órgãos nacionais e internacionais de Direitos Humanos, além de instar o cumprimento do texto constitucional.

“Até então, a criminalização dos movimentos sociais era uma posição mais vinculada a vozes conservadoras de direita, que, após a Constituição Federal de 1988, passaram a ser consideradas ultrapassadas”, pontua o diretor do Sinpro/RS Amarildo Cenci. Ele avalia que os resquícios da ditadura estão se revelando de forma clara, justamente pela participação do Poder Judiciário. “É visível que não se trata de casos de polícia, mas de reivindicações para a materialização de direitos previstos pela Lei, tanto no campo do trabalho, como da educação, da ocupação de espaços ociosos – ainda que sejam públicos, como é o caso dos Lanceiros Negros no Rio Grande do Sul – entre outros”, argumenta, em referência ao movimento de ocupação da antiga sede do MP, no centro de Porto Alegre.

“Queremos anunciar ao mundo jurídico que há um processo de resistência em marcha”, destaca o advogado Mário Madureira. “A perseguição de lideranças populares não é um fato novo, mas vem tomando força, com outro diferencial: o amplo apoio da sociedade – ainda que ocorram medidas inconstitucionais –, o que é assustador”, avalia a promotora de Justiça na Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado, Ivana Battaglin. Resta defender o uso da Constituição Federal como “arma” das garantias sociais e de liberdade e lutar junto ao Judiciário para impedir retrocessos, afirma o advogado e ex-procurador de Justiça do MPRS, Lenio Streck.

Criminalização da cidadania

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Hoje, defender direitos constitucionais é ser revolucionário, diz Lenio Streck

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Mas o risco é grande. O recrudescimento contra direitos humanos que vem se erguendo em todo mundo e que encontrou no Brasil o apoio de uma população alienada, por conta do acesso limitado à informação em vista da agenda de uma mídia golpista, preocupa e entristece, aponta Ivana. A promotora explica que, devido ao acirramento generalizado de posições conservadoras, está cada vez mais difícil implementar quaisquer políticas públicas neste sentido. “Hoje, no Brasil, defender os direitos constitucionais é ser revolucionário”, acrescenta Streck, destacando que há um visível processo conservador em andamento.

PL da Mordaça gera reação dos professores
Enfrentar a repressão política, cada vez mais truculenta, aplicada às lutas populares, deixou de ser um desafio ligado apenas aos núcleos dos sem-terra,  sem-teto, estudantes, indígenas, negros, gays, entre outros movimentos articulados no país. A Academia também vem reagindo a projetos de censura, a exemplo do Escola sem Partido, que visa eliminar a discussão ideológica em sala de aula, calando a voz de professores, sob o pretexto da neutralidade do conhecimento.

PL da Mordaça gera reação dos professores

Foto: Luciane Franco/ ALRS

Para Walmyr, do Enegrecer, medidas fascistas de Temer têm reflexos nos estados

Foto: Luciane Franco/ ALRS

“Vivemos um momento em que, de forma muito nítida, existe a tentativa de retirada de direitos dos trabalhadores, e isso inclui os docentes, que, através da aprovação do Projeto de Lei da Mordaça, passariam a ser violados em sua liberdade de expressão e de pensamento”, alerta o historiador, integrante do Coletivo Enegrecer (RJ) e membro do Conselho Nacional da Juventude, Walmyr Júnior. Ele chama a atenção para o fato de que a série de medidas fascistas adotadas por Michel Temer tem reverberado por praticamente todos os estados brasileiros.

“De forma muito dura, os estudantes protagonizaram dias históricos no Brasil”, recorda Júnior, referindo-se às ocupações de escolas e atos ocorridos principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, os quais foram, na sua maioria, retaliados com repressão policial. Antes referência de militância social e espírito democrático, palco do Orçamento Participativo e do Fórum Social Mundial, a Capital gaúcha se converteu em um dos territórios que tem vivido o reflexo do neofascismo que vem ganhando corpo também em diversas partes do mundo – a exemplo da Europa, que se fechou para os imigrantes, e dos Estados Unidos, onde o apoio ao candidato à presidência Donald Trump desperta sérias preocupações, devido às suas ideias xenófobas, racistas e isolacionistas.

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Foto: Luciane Franco/ ALRS

A ação repressiva visa a desestruturar a resistência civil, diz Ximenez, da Federal do ABC

Foto: Luciane Franco/ ALRS

Casos recentes de ação arbitrária e truculenta da polícia gaúcha em manifestações populares não faltam, a exemplo das prisões de quatro jovens durante protesto que ocorreu no bairro Cidade Baixa, em maio deste ano, contra a posse de Michel Temer; e as detenções de 41 estudantes que reivindicavam verba para melhorias nas escolas gaúchas em uma ocupação na Secretaria da Fazenda estadual, em 15 de junho. “Esse tipo de ação repressiva é uma estratégia descarada com o objetivo de desestruturar a resistência civil”, lamenta o coordenador do Bacharelado em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC-SP), Salomão Barros Ximenes.

Ambiente autoritário ganha forma no Estado
Além dos 33 estudantes menores de idade que foram enviados para o Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca) e de oito secundaristas maiores, encaminhados à 3ª Delegacia de Polícia Civil da Capital, seguindo dali para o Presídio Central e para a Penitenciária Feminina Madre Pelletier, o repórter do Jornal Já Matheus Chaparini e o cinegrafista independente Kevin Darc foram presos durante o exercício da profissão, por acompanharem a manifestação de dentro do prédio da Fazenda. Atualmente, eles aguardam decisão da juíza Claudia Junqueira Sulzbach, da 9ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, que deve avaliar se aceita ou arquiva a denúncia feita pelo MP, na qual são enquadrados pelos crimes de dano qualificado e desobediência civil. Detalhe: o promotor Luís Felipe de Aguiar Tesheiner, que denunciou os estudantes e os profissionais, foi coautor, em 2008, de uma polêmica ação civil pública contra o MST, na qual classifica acampamentos do movimento como “verdadeiras bases operacionais destinadas à prática de crimes e ilícitos civis causadores de enormes prejuízos não apenas aos proprietários da Fazenda Coqueiros, mas a toda sociedade”.

Ambiente autoritário ganha forma no Estado

Foto: Matheus Chaparini/Jornal Já

Truculência e despreparo: brigadianos jogam spray de pimenta contra rostos de adolescentes no prédio da Sefaz

Foto: Matheus Chaparini/Jornal Já

No início de agosto, um ato realizado pelo Comitê das Escolas Independentes em frente ao Foro buscou sensibilizar a magistrada. “Achei bastante positivo o fato da juíza ter descido para assistir e receber os cerca de 50 manifestantes”, destaca Chaparini. A esperança do repórter é de que Claudia tenha o mesmo entendimento do promotor Alexandre da Silva Loureiro, da Promotoria da Infância e da Juventude, que pediu o arquivamento da acusação por esbulho possessório contra os estudantes menores de idade. “Se vivêssemos uma ditadura, um regime de exceção, o cerceamento à liberdade de imprensa estaria previsto. Mas em plena democracia, é um fato que preocupa bastante”, avalia o repórter do Jornal Já.

Acomodação da mídia e criminalização da contranarrativa
A prisão de Chaparini não foi um caso isolado. No mesmo mês de junho, em Minas Gerais, a repórter da Rádio Inconfidência Verônica Pimenta foi detida também por desobediência, e de forma arbitrária, pela polícia militar durante a cobertura de uma ação de despejo na região Venda Nova, em Belo Horizonte. Dias antes, juízes e promotores do Paraná abriram 40 processos contra o jornal Gazeta do Povo e cinco de seus jornalistas, que, em fevereiro, publicaram reportagem sobre os super-salários recebidos pelos magistrados. Essas ações acabaram sendo suspensas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “Vejo sinais de que estamos de volta a um tipo de situação que já ocorreu anteriormente, em várias instâncias: restrição ao trabalho da imprensa; repressão aos movimentos sociais, no sentido de desmobilizar e desestimular; e um determinado comportamento da imprensa convencional, que se diz defensora da liberdade, mas que quando não tem seus integrantes afetados, não se manifesta”, dispara o diretor do Jornal Já, Elmar Bones da Costa. Ele repara que basta prestar atenção ao enfoque dado pela maior parte das coberturas da mídia no que se refere a quaisquer manifestações sociais: o trânsito interrompido acaba sendo “mais importante” do que a própria causa demandada.

De certa maneira, essa postura dos meios de comunicação lembra aquela adotada durante a ditadura militar. “Era muito comum em eventos com a presença de autoridades os jornalistas ficarem reunidos em uma espécie de brete à parte, olhando os fatos ocorrerem de longe”, compara Bones. Ele observa que não reconhecer que Chaparini e Darc estavam a trabalho dentro do prédio da Fazenda, tratando-os como militantes, é uma forma de desqualificar o material registrado durante a ação truculenta da Brigada Militar contra os estudantes gaúchos.

Lei Antiterrorismo promove arbitrariedade

Foto: Igor Sperotto

Cenci, diretor do Sinpro/RS

Foto: Igor Sperotto

Lei Antiterrorismo promove arbitrariedade
“A única coisa que mete medo em político é povo na rua.” A frase do ex-presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães, desaparecido em 1992 após um acidente aéreo, cai como uma luva na conjuntura atual, em que a volta da repressão está muito ligada ao modo como Temer pretende impor respeito, uma vez que parte da sociedade rejeita o golpe de Estado em curso. Usada de forma arbitrária para conter as manifestações “Fora Temer” durante a Olimpíada no Rio de Janeiro, a Lei Antiterror (13.260/2016) pode vir ainda a colaborar para ampliar a criminalização dos movimentos sociais por deixar margens no que diz respeito aos atos que podem ser enquadrados como terrorismo, opina Amarildo Cenci. O dirigente do Sinpro/RS destaca que o Judiciário vem dando exemplos claros de não reconhecimento das lutas, servindo como um braço aliado desta retomada conservadora, autorizando prisões de maneira autoritária em manifestações pacíficas.
No âmbito do trabalho, a figura do interdito proibitório foi criada para impedir, via decisão judicial, a aproximação de grevistas ou entidades sindicais das empresas-alvo de protestos. Detalhe que deve ser lembrado é que a Constituição Federal não permite a perseguição a movimentos sociais, e qualquer legislação que se contraponha a isso será inconstitucional, lembra o advogado e ex-procurador de Justiça do MP-RS Lenio Streck. Mas o cerco ao ativismo social não está só no uso da legislação como braço do retrocesso: exemplo disso é a prisão do militante Valdir Misnerovicz, no interior do Rio Grande do Sul, levado no dia 31 de maio para Goiás sob a acusação de pertencer ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “A própria organização está proibida de marchar em rodovias. Atrás da violência no caso da prisão de militantes, está a intenção de mostrar o que acontece com quem luta por seus direitos”, observa Cenci.

No Congresso Nacional, foram instaladas Comissões Parlamentares de Inquérito para fiscalizar entidades como a UNE e a CUT. “Até mesmo a Confederação Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB) está sendo visada porque apoia a luta dos povos indígenas pela demarcação de suas terras”, destaca o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Marcello Lavenère. Além do golpe em curso no país – que vem retirando direitos dos trabalhadores e implementando uma ofensiva de criminalização das entidades, visando causar uma sensação de medo e tirar o povo das ruas –, também no Rio Grande do Sul, o governo Sartori tem se adaptado à relativização das leis, agredindo as garantias individuais e o direito de manifestação e liberdade de expressão, pontua o presidente da Central Única de Trabalhadores no Estado (CUT-RS), Claudir Nespolo.

O dirigente denuncia que também os sindicatos vêm enfrentando forte truculência da BM durante as greves e assembleias, com retiradas de faixas e abertura de portões das fábricas de forma violenta. “Isso ocorreu recentemente com os metalúrgicos, que estão em campanha salarial”, contextualiza Nespolo. Ainda assim, o presidente da CUT-RS não acredita que novamente sejam “as fardas que irão cumprir o papel de defender os interesses da elite brasileira”, a exemplo de 1964. Hoje, quem exerce este papel é a mídia, destaca o dirigente. “A força bruta está sendo direcionada aos movimentos sociais, mas existe toda uma sutileza no atual choque à democracia (que ocorre a serviço do capitalismo internacional), de forma que muita gente vai acordar somente depois que as coisas já tiverem acontecido”, alerta. Para Nespolo, o mundo todo tem rumado para o conservadorismo, como resultado da crise internacional de 2008. “Junto com a miséria, crescem as migrações, e, em alguns países, a exemplo da Argentina, também o apoio a uma agenda neoliberal.”

Lei Antiterrorismo promove arbitrariedade

Foto: Rovena Rosa/ABr

“A força bruta é direcionada aos movimentos sociais, mas existe toda uma sutileza no atual choque à democracia de forma que muita gente vai acordar tarde demais”, alerta Nespolo, da CUT-RS

Foto: Rovena Rosa/ABr

O coordenador estadual do MST, Sedenir de Oliveira, lembra que a repressão e o golpe não atingem apenas os setores mais organizados politicamente, mas a sociedade como um todo. “Não perderemos de vista nossa pauta específica, mas este é um período em que iremos atuar na luta mais geral da sociedade pela democracia. Será um período de muita resistência. Estamos convictos de que o que está em jogo é uma série de fatores que irá impactar diretamente na vida dos trabalhadores, que, em breve, irão pagar um preço alto por não terem se mobilizado para barrar o processo de golpe que está em curso”, ressalta.

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