POLÍTICA

Parlamentarismo à brasileira

Por Flávio Ilha / Publicado em 8 de setembro de 2016

Parlamentarismo à brasileira

Foto: Pedro França/Agência Senado

Foto: Pedro França/Agência Senado

A consumação do impeachment sem crime de responsabilidade fiscal, que retira Dilma Rousseff da Presidência da República e empossa seu vice, Michel Temer, expõe as fragilidades do sistema presidencialista brasileiro, historicamente assaltado por golpes parlamentares ou armados.

Não foi a primeira vez. E, pelos indícios, infelizmente, não será a última. Sim, pois um levantamento histórico que remonte a 1930 – quando Getúlio Vargas derrubou a República Velha com um golpe de Estado – mostrará que apenas cinco presidentes, de um total de 23 nesses quase 90 anos, terminaram seu mandato. Tem mais: em 127 anos de República, desde 1889, só um terço dos 36 mandatários foi eleito para o cargo. A ex-presidente Dilma Rousseff foi a sétima a ser deposta por um golpe, seja parlamentar ou armado.

Por isso, não está em discussão se a deposição foi legítima ou ilegítima, já que a votação ocorrida no Senado no último dia de agosto teve de tudo – menos coerência com os autos do processo comandado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandovski. Não por acaso, o próprio presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), classificou a casa como “hospício”.

Presidentes sem voto são comuns no Brasil. Apenas no período de redemocratização, iniciado com a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985, Michel Temer é o terceiro dirigente que chega ao Palácio do Planalto sem ter sido votado para isso. No regime presidencialista, é bom lembrar, o vice é quem substitui o titular em seus eventuais impedimentos. Nunca deve ser confundido, portanto, com a figura de quem foi efetivamente eleito para o cargo.

“Não cabe o argumento de que o vice-presidente também foi eleito democraticamente. A Constituição de 1988 abandonou o modelo anterior, que permitia eleição de vice por chapa diferente do titular. Com isso, a eleição pressupõe alinhamento político e programático de presidente e vice justamente para evitar crises institucionais como a de 1961”, adverte o jurista Ricardo Lodi Ribeiro.

Em 1961, quando o então presidente Jânio Quadros renunciou, a posse do vice João Goulart só foi possível com a adoção pelo Congresso do regime parlamentarista, o qual foi revogado menos de dois anos depois por um plebiscito que decidiu pela volta do presidencialismo. Cerca de oito em cada dez eleitores decidiram pela restauração do regime, uma prova inequívoca de que a manobra havia sido detectada. Em 1993, novo plebiscito previsto pela Constituinte de 1988 rejeitou novamente a adoção do regime. “Mesmo em caso de impedimento permanente, como agora, é necessário que o vice dê continuidade ao programa iniciado pelo presidente impossibilitado de ocupar o cargo. Afinal, ao compor a chapa, o vice se comprometeu com o programa escolhido pelos eleitores. Corremos o risco de ver o poder deixando de ter origem no voto popular para ser intermediado pela vontade do Congresso”, completa Ribeiro.

A eleição de deputados e senadores, que igualmente respeita o voto popular, também foi usada para justificar a deposição da presidente. Mas, no presidencialismo, o papel do Congresso é bem claro: legislar, cooperar, e não governar.

“No sistema político brasileiro, o único candidato que recebe votos em escala nacional, massivamente, é o candidato a presidente. Portanto, é essa figura quem deve deter o controle da agenda política. Mas no cenário de fragmentação política atual, com mais de 30 partidos representados no Parlamento, se torna cada vez mais difícil garantir apoio ao que foi escolhido pelo eleitor. O custo da negociação, nesse aspecto, é muito alto e tende a aumentar”, pondera Sérgio Antônio Vitor, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

No seu discurso de despedida, a ex-presidente acusou a manobra. “O projeto nacional-progressista que represento está sendo interrompido por uma poderosa força conservadora e reacionária, com apoio de uma imprensa facciosa. Vão capturar as instituições do Estado para colocá-las a serviço do mais radical liberalismo econômico e de retrocesso social”, alertou.

Em menos de dois anos, Dilma viu a base aliada com que foi reeleita em 2010 se dissolver no Senado. Dos nove partidos que apoiaram a reeleição, apenas dois continuaram fiéis à ex-presidente: PT e PC do B. O governo somava 53 senadores no início do segundo mandato, ou seja, praticamente os dois terços necessários ao impeachment – entre eles, 18 peemedebistas. No último dia 31, a oposição contabilizou 61 votos a favor do impedimento.

Um dos coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, diz que a deposição da presidente deixará um rastro de “reformas regressivas” com foco na rede de proteção social garantida pela Constituição de 1988, na Previdência Social e na legislação trabalhista.

“A grande fatura é devida à elite empresarial e financeira do país, que deu inequívoco suporte ao impeachment e exige em troca um pacote de reformas regressivas, um golpe nos direitos sociais e trabalhistas”, prevê.

Parlamentarismo à brasileira

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Plenário do Senado durante sessão solene do Congresso Nacional destinada à posse de Temer

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Boulos tacha a manobra que depôs Dilma de “desconstituinte”, na medida em que a ampla maioria parlamentar que garantiu o impeachment servirá para revogar itens ainda considerados progressistas demais da Constituição. “Essa agenda não foi eleita e, com essas propostas, jamais seria. Só pode, então, ser aplicada a partir do cerceamento da democracia”, afirma.

Conservadores, ricos e reacionários

Perfil do Senado

Arte: Bold Comunicação

Arte: Bold Comunicação


Dados apurados pelo portal de notícias Congresso em Foco mostram que o Senado está muito distante do perfil médio do brasileiro. Em vez da maioria feminina (52%, segundo o IBGE), no Senado, a predominância é masculina – entre 81 senadores, apenas 13 mulheres; 68 são homens.

 

Somente oito senadores se autodeclaram negros ou pardos, 73 são brancos. E ricos: os três mais abonados têm patrimônio declarado entre R$ 99 milhões e R$ 389 milhões, segundo o Congresso em Foco. Entre os 81 “verdadeiros juízes”, como os qualificou o presidente do STF na abertura do julgamento, estão 12 parlamentares que chegaram ao Senado na condição de suplentes. Ou seja, foram escolhidos pelos titulares e não receberam voto de ninguém.

“O atual Senado é a cara do seu presidente, Renan Calheiros”, destaca o publisher do Congresso em Foco, Sylvio Costa. Pai de governador, irmão de deputados e prefeito, Renan Calheiros (PMDB/AL) tem 60 anos de idade, quase 40 deles usufruindo cargos públicos.

Dono de um patrimônio declarado de R$ 2 milhões em 2010, o peemedebista responde a dez inquéritos no STF, dos quais oito relacionados à Operação Lava Jato. Em 2007, o senador abriu mão da Presidência do Senado para não ser cassado. Por duas vezes, naquele ano, escapou da degola em votação secreta.

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