CULTURA

Produção literária e o empoderamento feminino

Por Adriana de Barros Machado / Publicado em 12 de dezembro de 2016

Produção literária e o empoderamento feminino

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Se você é mulher e com mais de 40 anos, irá lembrar da personagem feminina dos livros da escritora inglesa Barbara Cartland, coleção Júlia, Sabrina, até E. L. James (autora de 50 Tons de Cinza) que venderam, e ainda vendem, no caso do último, milhões de cópias no mundo inteiro. Magra, bonita, jovem e inocente. Sem grandes ambições profissionais, a mocinha chorosa e sofredora encontra o empresário rico, atraente, forte, mas de comportamento controlador. Os dois acabam vivendo uma “história de amor”, algo semelhante a um conto de fadas, com enredos recheados de fantasias, muito mais tapas do que beijos, e eventuais doses de sensualidade insossa. Na contramão da lógica desse mercado editorial que relega às mulheres – autoras e personagens – um lugar de submissão e adorno ao masculino, afirma-se outra literatura, bem mais séria e analítica. Obras que, na opinião de pesquisadoras brasileiras, comprovam que o universo da mulher contemporânea é bem mais complexo.

Nos lançamentos da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, por exemplo, títulos trouxeram à tona temas como feminismo, leis municipais, inserções no futebol, sexo, crime e negócios nas prisões. Outros, destacaram aspectos ainda pouco analisados da escrita feminina. Em A Mulher na História da Literatura, Cecil Jeanine Albert Zinani e Salete Rosa Pezzi dos Santos, da Fundação Universidade de Caxias do Sul, organizaram artigos de alunos e professores em um conjunto de escritoras e textos, em sua maioria inéditos na historiografia literária sul-rio-grandense e brasileira. O livro é resultado do trabalho de pesquisa nos jornais O Caxiense e O Estímulo, que circularam ao longo do século 20, na chamada Região de Colonização Italiana do estado. São obras que mostram o protagonismo de mulheres que se dedicaram às letras e que enfrentaram dificuldades inerentes ao processo de busca de emancipação da época.

Segundo a obra, até a metade do século 19 a imprensa feminina era um produto para a elite. As leitoras eram poucas, pois somente a aristocracia e a burguesia sabiam ler e dispunham de tempo para isto. Os periódicos brasileiros apresentavam duas possibilidades, uma visão tradicional, na qual não havia liberdade de ação para a mulher fora do lar, e uma visão mais progressista, encontrada apenas nos grandes centros urbanos, dando ênfase aos direitos e à educação.

O livro salienta que muitas escreveram poemas, contos e romances, tendo sido publicados e lidos em mais de uma edição. No entanto, essa produção não é mencionada em histórias da literatura. Simplesmente foi apagada como se nunca tivesse existido. Muitas vozes foram silenciadas. Para sanar esta lacuna foi desenvolvido um projeto de pesquisa, sediado na Universidade Federal de Santa Catarina, e que reuniu pesquisadores de várias universidades, liderados pela professora Zahidé Lupinacci Muzart. O resultado foi uma publicação de mais de 3 mil páginas, feita pela Editora Mulheres, de Florianópolis, intitulada Escritoras Brasileiras do Século 19, com três volumes.

Algumas mulheres abordavam temas bem polêmicos para a época, como o romance de Andradina América de Andrade de Oliveira, chamado Divórcio?, publicado originalmente em 1912. Segundo Salete dos Santos, a falsa concepção de que a mulher não tem capacidade para o pensamento é de longa data. “Até a metade do século 20, o único espaço destinado para elas era o lar. O espaço público, o embate em questões polêmicas, o conhecimento e a leitura eram destinados aos homens. Qual era a experiência de vida que nós poderíamos ter”?, contrapõe.

Pares femininos

Lélia Almeida: "Os homens não leem e não escrevem sobre outros pares femininos"

Foto: Igor Sperotto

Lélia Almeida: “Os homens não leem e não escrevem sobre outros pares femininos

Foto: Igor Sperotto

As mulheres na literatura são estudadas como personagens, escritas por ambos os sexos, ou como escritoras. Nas duas vertentes, o caminho a percorrer ainda é longo, na opinião da escritora Lélia Almeida. Alguns momentos são de avanços, e outros, de retrocessos. “É lenda que elas são superpublicadas. As premiações são incipientes. A crítica literária é inexistente”, pondera a pesquisadora. Em suas pesquisas e em tom polêmico, constata que os homens não leem o sexo oposto e não escrevem sobre outros pares femininos, como irmãs, por exemplo. “Eles contam sobre Antígona, Anna Karenina, Madame Bovary, todas fazem parte de romances famosos, mulheres que se tornam influentes e morrem de castigo. Uma se atira nos trilhos e a outra toma veneno. Terminam loucas, senis, doentes ou mortas”.

A proposta de Lélia é que os leitores conheçam mais sobre as mães e as filhas na literatura de autoria feminina. A inserção neste universo serve para compreender, “ao contrário de premissas patriarcais, que os afetos entre as mulheres são de central importância, empoderadores de todas as personagens envolvidas”. Para ela, o caminho fundamental para compreender historicamente o apagamento desta relação é o fato das mulheres somente alcançarem a felicidade ao se casarem com os homens. Desta forma, as figuras centrais da literatura – e da vida real – acabam sendo, sobretudo, os pais, os irmãos, os amigos e os amantes.

É quando, na década de 1980, explica a pesquisadora, algumas autoras passam a escrever sob uma nova perspectiva, centrando o olhar nas relações entre as mulheres: avós e netas, madrinhas e afilhadas, irmãs, tias e sobrinhas e resgatando escritoras de diferentes gerações. Ou seja, ganha espaço a genealogia feminina. Lélia também constata que apenas algumas universidades tratam a questão de gênero. “Não há um resgate efetivo. Em qualquer livro de história da literatura brasileira ou contemporânea, o número de mulheres é muito pequeno, tendo por base o que elas escreveram e não publicaram. Precisamos resgatar tudo isto em nome das nossas meninas”, avalia.

Bruxas e homenagens
Integrante da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (Ajeb), Teniza Spinelli, afirma que a mulher não tinha voz, nem vez, e estava sempre à sombra, no chamado mundo privado, do lar. “Não queremos mais esse tipo de divisória. Hoje em dia esta porta já está aberta. Na realidade, sempre esteve. Ao examinarmos grandes figuras femininas ao longo da história, podemos destacar personagens espetaculares que romperam essas barreiras, guerreiras, intelectuais e religiosas”, reforça.

Aquelas que pensavam demais eram consideradas bruxas, por serem pensantes e lúcidas. Era preciso abafar. “Nós somos guardiãs do passado, e vejo com muita positividade a nossa participação na literatura, nas artes, na ciência e no esporte”. Spinelli reafirma o compromisso em escrever, não o ideológico, mas com a identidade de mulher. “Aquilo que desejamos para este mundo”. Com pós-doutorado em Teoria da Literatura, Patrícia Pitta acredita que a mulher, por ser mãe, esposa, dona de casa e escritora, talvez, às vezes, se permita menos objetividade, e o sistema acaba gostando desta ideia.

O foco de seu estudo foi a obra da escritora, professora e pensadora Maria Dinorah Luz do Prado, por sua importante posição na história dos livros infantis no Rio Grande do Sul.

O resgate de lembranças, e também de memórias afetivas dos filhos ajudaram a compor o Instituto Maria Dinorah (Imadin), que se propõe a ser um espaço de referência. A escritora foi a primeira mulher escolhida como Patrona da Feira do Livro de Porto Alegre, em sua 35ª edição, no ano de 1989. “Ela já nasceu se fazendo respeitar. Não usou desculpas pelo fato de ser do sexo feminino e mais uma vítima do sistema. Ficou viúva aos 40 e poucos anos. Com quatro filhos para criar, fez várias coisas. E produziu muito”. Coisas de mulher. Mulher da vida real.

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