MOVIMENTO

Força bruta, aniquilação e justiçamento

Varrido por crimes de diferentes tipos, o país se prepara para eleições gerais nas quais postulantes a mandatos eletivos pretendem aproveitar o colapso da segurança para angariar votos
Por Flavia Bemfica / Publicado em 10 de abril de 2018

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

Apesar de a população ter autoridade para alterar Executivos e Legislativos, o que poderia resultar em uma mudança que incluísse alternativas como combate à atuação ilegal de integrantes da polícia ou do Judiciário, investimento pesado em inteligência e no desenvolvimento de sistemas de informação e aproximação com a população, especialistas que se debruçam sobre o tema vislumbram um movimento no sentido contrário. O do apoio a candidatos que apresentam soluções nas quais o destaque são o uso da força, a lógica da aniquilação e a associação de punição a justiçamento e inexistência de direitos. Ignorando o conjunto de questões sobre violência, uma parcela da população se empolga com candidatos que defendem medidas extremas como pena de morte, redução da maioridade penal, aumento do encarceramento e armamento da sociedade civil. Ganha fôlego o discurso de que a violência ocorre porque as leis são muito brandas, o sistema “prende e solta” e o país permite que apenas os “bandidos” se armem.

É nesta linha, associada a uma confusão generalizada sobre o funcionamento do modelo de segurança pública e justiça criminal e temperada pela propagação de informações superficiais, que o país discute a solução da moda: a de que a prisão após condenação em segunda instância vai diminuir a violência e gerar mais justiça social. Na prática, enquanto o debate alavancado pela disputa política ocorre, o Brasil aumenta seus encarceramentos em alta velocidade, alcançando o terceiro lugar na lista dos países com a maior população carcerária do planeta, atrás apenas da China e dos Estados Unidos. Conforme os dados divulgados em dezembro no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), referentes a junho de 2016, há 726.712 pessoas presas, sendo 40% de prisões provisórias, ou seja, que ainda não possuem condenação judicial.

Adeptos da linha punitivista que cresceu entre o Judiciário e as forças de segurança utilizam a relação entre população total e carcerária para argumentar que o Brasil prende pouco. Aqui, são 352,6 presos a cada 100 mil pessoas, o que coloca o país na 25ª posição deste ranking, segundo o International Centre for Prison Studies (ICPS). Dos 24 à sua frente, contudo, além de Estados Unidos e Rússia, se destacam 15 pequenos países do Caribe e América Central, onde os modelos de justiça não são exatamente um exemplo. Para completar o quadro, 10 a cada 10 especialistas em segurança admitem que, no Brasil, não é o Estado quem administra na prática presídios e penitenciárias, onde a sobrevivência de quem está encarcerado é improvável sem algum tipo de associação a uma das facções criminosas que dominam esses territórios.

A discussão sobre prender mais é semelhante à que ocorre sobre o porte de armas. Enquanto os Estados Unidos, onde a venda e o porte são facilitados, enfrentam neste ano os maiores protestos de sua história, com estudantes à frente do movimento que pretende aumentar o controle sobre a circulação de armas, no Brasil, a chamada ‘bancada da bala’ da Câmara dos Deputados pretende utilizar propostas de relaxamento do Estatuto do Desarmamento para turbinar sua votação nas eleições de outubro. Em novembro passado, por exemplo, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado aprovou uma proposta que permite a concessão de licença para o porte de arma de fogo a proprietários e trabalhadores rurais maiores de 21 anos. O projeto está agora em análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal.

Para Trindade, da UnB, propostas dos candidatos são mais marketing político do que política pública

Foto: Emília Silberstein/ UnB Agència

Para Trindade, da UnB, propostas dos candidatos são mais marketing político do que política pública

Foto: Emília Silberstein/ UnB Agència

Um dos principais argumentos usados pelos deputados da bala, repetido por parte da população, é de que as regras atuais impedem que o “cidadão de bem” se defenda caso um “bandido” invada sua casa. Na verdade, o Estatuto do Desarmamento permite a manutenção de armas de fogo dentro de casa e, até mesmo, em locais de trabalho. A lei é rigorosa em relação à compra e restringe o porte. Outro argumento é a suposição de que, em dúvida sobre se o cidadão está ou não armado, o “bandido” não vai atacar. Na prática, ganharam destaque casos de pessoas que foram mortas durante assaltos porque os criminosos identificaram movimentos como tirar o cinto de segurança ou tentar abrir a porta de um carro com a possibilidade de a vítima sacar uma arma.

“A novidade não é a preocupação do eleitorado com a violência, mas sim o tema ocupar espaço na agenda dos candidatos, que geralmente tiravam o foco do assunto, porque ele é difícil. Nesta campanha, há algumas candidaturas cujo tema é segurança. Em função disso, o próprio governo federal decidiu levantar a bandeira, apesar de sabermos que é pouco provável que ocorra um encaminhamento diferente do que já se viu, e que as propostas que aparecem não diferem em nada daquelas que estão no ar há 10 ou 15 anos”, resume o conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Arthur Trindade Maranhão Costa.

Manutenção da ordem e repressão aos movimentos sociais fragilizam a legitimidade do Estado no enfrentamento das questões da segurança pública

Foto: Christian Braga/ Jornalistas Livres

Manutenção da ordem e repressão aos movimentos sociais fragilizam a legitimidade do Estado no enfrentamento das questões da segurança pública

Foto: Christian Braga/ Jornalistas Livres

Ex-secretário de Segurança Pública e Paz Social do Distrito Federal e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (Nevis) da Universidade de Brasília (UnB), Trindade diz que o país não faz o fundamental: tirar as boas propostas do papel e aplicar mecanismos que as mantenham de pé. “Falta planejamento. Talvez algo revolucionário mesmo no Brasil seja fazer um planejamento. As propostas, elas são muito mais de marketing político do que de política pública. É como se a questão da violência fosse um saco onde há de tudo: ideias importantes, ideias sem cabimento, populismo penal e, claro, um discurso alarmista que resulta em uma montanha de dividendos eleitorais”, sintetiza.

“Se o problema é o tráfico, temos que repensar a política antidrogas”, propõe Ghiringhelli, da PUCRS

Foto: Igor Sperotto

“Se o problema é o tráfico, temos que repensar a política antidrogas”, propõe Ghiringhelli, da PUCRS

Foto: Igor Sperotto

O planejamento apontado pelo sociólogo, medido, debatido e sistematizado por pesquisadores que se dedicam a estudar a violência em todo o país, inclui políticas sociais de prevenção feitas a partir de indicadores verídicos, existência de bancos de dados robustos, análises e planos de ação para cada um dos problemas, fiscalização sobre práticas policiais e procedimentos, cumprimento de metas e transparência nas atividades. “Na caixa chamada segurança pública hoje, 82% dos gastos estão a cargo dos governos estaduais. Isso estrangula qualquer um. Então, talvez deva se debater cofinanciamento e aumento da participação dos governos federal e municipais”, destaca ele.

Segundo o pesquisador, outro exemplo de como o debate acaba distorcido é o dos investimentos. Na realidade, o Brasil não gasta pouco com segurança. O problema é a qualidade do gasto. “É comum que governadores resumam suas ações a aumentar o efetivo e comprar viaturas. Faria muito mais sentido distribuir esses efetivos acertadamente, a partir da identificação das manchas criminais, e ter controle de fato sobre sua eficiência. É assim que se faz policiamento. Quando você simplesmente aumenta o efetivo, gera outros problemas para o futuro em uma realidade na qual pagamento de pessoal, custeio e aposentadorias já consomem quase 100% dos orçamentos e o poder das corporações é conhecido”, lista Trindade.

Estado desacreditado e hiperviolência social

Sete pessoas são assassinadas por hora no país, mas as forças policiais são usadas pelo Estado como instrumento de repressão social

Foto: Sérgio Silva/ Divulgação

Sete pessoas são assassinadas por hora no país, mas as forças policiais são usadas pelo Estado como instrumento de repressão social

Foto: Sérgio Silva/ Divulgação

As estatísticas da violência no Brasil explicam, em parte, a sensação que tomou a população. Em 2016, ano dos últimos dados sistematizados, o país teve sete pessoas assassinadas por hora e registrou o maior número de mortes violentas intencionais de sua história: 61.283. Os latrocínios (roubos seguidos por morte) fizeram 2.666 vítimas. Outras 4.222 morreram em decorrência de intervenções policiais. Não é só a morte que assusta. Foram registrados 49.497 casos de estupro em 2016, e sabe-se que milhares não são notificados. Os crimes contra o patrimônio tornaram-se parte do cotidiano. A cada minuto, um carro é roubado ou furtado no país: mais de um milhão em 2016. E a violência chegou às escolas. Segundo avaliadores da Prova Brasil, em 2015, 70% dos professores e diretores já haviam presenciado agressões físicas ou verbais entre alunos.

Governantes se apressam em atribuir a escalada da violência ao avanço do tráfico. Apesar disso, houve redução de 63,4% nos recursos destinados ao Fundo Nacional Antidrogas em 2016. “Se o problema é o tráfico, então é necessário repensar nossa política antidrogas. Qual é nossa política?”, questiona o professor dos programas de pós-graduação em Ciências Criminais e Ciências Sociais da PUCRS e líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC), Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.

O professor lembra que a identificação reducionista de uma causa mais atrapalha do que contribui para soluções, enquanto a baixa resolutividade dos crimes faz crescer a frustração entre a população. O levantamento ‘Onde Mora a Impunidade’, publicado pelo Instituto Sou da Paz no final do ano passado, mostrou, por exemplo, que 80% dos crimes de homicídio nos estados não são solucionados pelo poder público. Na verdade, só seis estados informaram ter condições de fornecer números à pesquisa: Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo. Diferentes fontes de dados apontam para taxas de resolução inferiores a 10%. Quando se trata de crimes sem morte, a expectativa de retorno quase inexiste. Não raro, vítimas ouvem de agentes de segurança uma espécie de bordão: “Pelo menos não mataram ninguém”.

Ghiringhelli destaca que a minimização do dano não é aceitável e que há mecanismos que podem ser adotados, como a justiça restaurativa, mas ressalva: “É muito diferente de defender o modelo norte-americano de tolerância zero”. Para o pesquisador, há uma questão de fundo que permeia todo o estado de violência no qual o país se encontra. “Existe uma descrença em relação aos mecanismos democráticos de administração de conflitos. O Brasil é um país onde a legitimidade do Estado é sempre muito frágil. O foco está na manutenção da ordem. Além disso, resultados positivos que vinham sendo obtidos em políticas de enfrentamento da violência começaram a dar mostras de esgotamento a partir de 2010. Há, então, um reforço na dinâmica social que é a da lei do mais forte. Vale tudo. O efeito é muito evidente: violência policial, demanda social punitiva e, ao mesmo tempo, a percepção de que isso não vai funcionar. É este o momento que vivemos”, elenca.

A sensação de “sem saída” da população, registram os pesquisadores, é a parte mais sensível de uma questão central do país: a convicção dos cidadãos de que não podem contar com o Estado. E, por isso, ao contrário do que preconizam todos os tratados sobre a formação do Estado moderno, no Brasil, hoje, crescem as avaliações individuais de que, se alguém tem um problema, pode resolvê-lo por seus próprios métodos. O resultado tem sido a disseminação da violência.

“O contrato social pelo qual o Estado garante a segurança e o cidadão recua em sua autodefesa nunca funcionou no Brasil”, diz Sobottka

Foto: Igor Sperotto

“O contrato social pelo qual o Estado garante a segurança e o cidadão recua em sua autodefesa nunca funcionou no Brasil”, diz Sobottka

Foto: Igor Sperotto

“É fato que o contrato social pelo qual o Estado garante a segurança e, em troca, o cidadão recua em sua autodefesa nunca funcionou no Brasil. Isto foi caminhando e, na segurança, atualmente, ocorre o que ocorre no geral: o cidadão cada vez mais desacredita do papel de mediação do Estado. Sua percepção é de que está completamente desprotegido. Isto está relacionado tanto à incapacidade das políticas públicas de atender à demanda social no Brasil como a um momento mundial que mescla mercantilização total da vida, um individualismo quase selvagem e, claro, o retorno de um pensamento autoritário. Você não apenas resolve seus problemas, como o faz de uma forma extremamente violenta”, afirma o professor Emil Sobottka, do Núcleo de Estudo em Organizações, Segurança Pública e Cidadania (Nosc), da PUCRS.

As alterações nas características da violência e sua disseminação são alvo das pesquisas do coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), César Barreira, que utiliza o termo violência difusa. Ele ressalta vários pontos sobre os quais ainda não são conhecidas as consequências. “Não sabemos, por exemplo, como se comportarão as gerações sociabilizadas nesta realidade. Hoje, os jovens têm sua mobilidade e sua forma de vestir delimitadas pela violência”, adianta.

César Barreira: "A violência gera medo e o medo se fragmenta em vários fatores, entre eles quebra de valores e demanda por mais punição"

Foto: UFC/Divulgação

César Barreira: “A violência gera medo e o medo se fragmenta em vários fatores, entre eles quebra de valores e demanda por mais punição”

Foto: UFC/Divulgação

O aumento da população e sua relação com a indiferença e o individualismo, o estabelecimento das redes sociais como terreno fértil para a crueldade, a dificuldade na determinação de limites e a implosão de valores associados a respeito, moral e hierarquia também estão presentes nos estudos de Barreira. “Com o aumento da violência, vem a intolerância. O país já não tem uma tradição de resolução de conflitos por meio da prática discursiva. E, hoje, você não confia mais no outro. Ele, de certa forma, lhe dá medo”, explica.

O professor assinala que a sociologia sempre trabalhou com uma lógica linear sobre as formas como o conflito social se exacerba, tornando-se violento, e de como a violência se transforma em crueldade: violência que gera medo, que gera mais violência. “Mas, hoje, se tornou uma espiral. A violência gera medo e o medo se fragmenta em vários fatores, entre eles quebra de valores e demanda por mais punição. Para além disso, é preciso que se diga, o grau de crueldade chama a atenção. Não falo apenas do ladrão que antes roubava o celular e ia embora e hoje rouba e depois mata a vítima que não reagiu. Falo de pessoas que conhecemos que antes exigiam prisão para criminosos, depois passaram a clamar por prisão e morte e, hoje, bradam por prisão, tortura e morte.”

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