CULTURA

Festa também é política nas ruas

Como uma nova geração de jovens está fazendo da festa uma proposta política de ocupação dos espaços públicos e de humanização da cidade
Por Leo Felipe / Publicado em 14 de setembro de 2016
Festa também e política nas ruas

Foto: Divulgação/Batô/Marcelo Nunes

A juventude que está nas ruas não se identifica com maneiras tradicionais de protestar

Foto: Divulgação/Batô/Marcelo Nunes

Numa noite de agosto, um grupo de doze jovens na casa dos vinte e poucos anos se reuniu numa pracinha da Cidade Baixa. Havia uma pauta a ser cumprida e o ar gelado e úmido (o termômetro marcava 13 graus) não impediu que a reunião se estendesse por quase duas horas. Quem freqüentasse os eventos do coletivo Arruaça sem conhecer o grupo sequer imaginaria a complexidade das discussões envolvidas na produção de suas festas. Não apenas problematizações sobre a questão central do coletivo – a ocupação do espaço urbano – mas também sobre as relações entre seus integrantes, tensões de ordens subjetiva e afetiva, discordâncias de estratégias, além, claro, de temas mais banais, mas não menos fundamentais: como os R$ 130 que sobraram da venda de catuaba da última festa. “Mas tem os vinte e oito do Uber que a Nalu pegou”, alguém lembra, fazendo reduzir o montante.

Com pouco mais de dois anos de atividades (comemorados com um festão com a presença de mais de mil pessoas em quatro de junho, na Praça da Alfândega), Arruaça é um dos principais coletivos que produzem festas de rua em Porto Alegre. O grupo tem um número aproximado de 15 integrantes, a maioria egressa do circuito universitário. “Nosso objetivo sempre foi o de levar a festa para lugares não frequentados por falta de incentivos da administração pública, desmistificar as festas ‘mais do mesmo’ que aconteciam na época, explorar novos signos para a festa como ato político”, conta a DJ Kika Lopes, integrante do coletivo. Kika começou sua atuação no ativismo na organização do evento Largo Vivo. De estrutura horizontal e sem liderança personalista, Largo Vivo teve sua primeira edição em outubro de 2011 em resposta à crescente privatização dos espaços públicos da cidade, ocupando com ações culturais o Largo Glênio Peres. Da movimentação do Largo Vivo surgiram muitos dos coletivos que produzem festas e eventos nas ruas.

Um dos pioneiros dessa movida em Porto Alegre, em 2012, foi o Ovos e Llamas. O músico e agitador Mario Arruda, integrante do grupo, que se notabilizou também pelas experimentações com fotografia, conta: “Fizemos o primeiro evento na frente de casa. Em seguida fomos percorrendo diversos espaços da cidade, desde a rótula em frente à Redenção, até o corredor de ônibus em obras na Osvaldo Aranha. Depois começamos a encontrar alguns outros espaços para os eventos, como um estacionamento em funcionamento no centro.” Dois projetos saíram dessas experiências: o Geramor, festa de rua de ocupação que teve edições também em Torres, Carlos Barbosa, Caxias do Sul e Atlântida, e a FESTA FESTA DADA, pensada para espaços privados “com o intuito de propor novas práticas e agir de forma crítica em relação a um mercado de eventos”, explica Mario.

Ruas em Transe (documentário) registrou a cena dos coletivos que promovem festas de ocupação em São Paulo, Rio e Porto Alegre

Foto: Divulgação /Batô/Marcelo Nunes

Documentário Ruas em Transe registrou a cena dos coletivos que promovem festas de ocupação em São Paulo, Rio e Porto Alegre

Foto: Divulgação /Batô/Marcelo Nunes

Fenômeno ocorre em várias capitais
O fenômeno contemporâneo das festas de rua não é exclusividade de Porto Alegre e está relacionado à forte tradição de festas populares do país, a exemplo do carnaval, o mais brasileiro dos festejos. As festas se articulam como uma resposta ao processo de abandono e privatização dos espaços públicos e sinalizam a cidade como um território de disputas.  Diferente de gerações anteriores que buscaram no espaço privado das casas noturnas a transgressão dos costumes e a expressão de sua identidade é na rua que a geração de hoje opera. Rousseau já havia nos ensinado que a festa sempre foi política. O filósofo iluminista a considerou expressão fundamental da República. Mas se hoje também a identificamos com o espetáculo dos megaeventos, isso somente reforça a importância dos coletivos em repolitizá-la. Há também o dado micropolítico da festa – a politização do desejo e do corpo – e é por isso que o feminismo e as questões de gênero são tão importantes para os coletivos. “É uma forma de a gente se posicionar politicamente como mulheres e isso se estende a todos os meios que a gente habita e convive”, diz Nalu Rossi, DJ da Arruaça, “então foi uma consequência lógica que acontecesse esse movimento dentro do coletivo, afinal estamos construindo juntos novas maneiras de se pensar o feminismo dentro da nossa sociedade”. Seja nas reuniões onde as mulheres tiveram que conquistar o direito à fala ou na própria equipe de DJs, em que a presença feminina é um dado notável, Arruaça faz do feminismo um de seus pilares.

Curioso que essa movimentação que se estende Brasil afora tenha sido disparada por um estrangeiro, o alemão Thomas Haferlach, que fundou o coletivo Voodoohop, em 2009. As festas começaram num pequeno bar da Rua Augusta e depois percorreram os mais diversos espaços – públicos ou privados.  O escracho, o hedonismo, uma extravagância hippie gay semelhante a do grupo performático dos anos 1970 Dzi Croquetes, além da música eletrônica com um tom de “brasilidade”, são as principais marcas da Voodoohop. A festa tornou-se uma instituição, influenciando diversas outras iniciativas pelo Brasil, e saiu gradativamente do circuito marginal para o mundo das artes, tendo participado da 30ª Bienal de São Paulo, em 2012, dentre outros eventos nacionais e internacionais.

Fruto da movimentação e da fragmentação da cena paulistana, a Mamba Negra nasceu em maio de 2013 criada pelas DJs Laura Diaz (CARNEOSSO) e Carol Schutzer (Cashu). O intuito era o de trabalhar no contexto de festas de rua, em locações degradadas, festivais autogeridos, ocupações estudantis, artísticas e de moradia. “Nos reunimos para explorar uma vertente marginal ao hedonismo tropical”, conta Carol, “começamos procurando as intersecções da música eletrônica com a música orgânica. Somos fruto destes encontros entre artistas e coletivos, mas sobretudo da necessidade de criar meios de produzir e circular a nossa produção, sem acabar refém da proposta limitada do mercado do entretenimento e da relação de ‘público-cliente’”. Carol é formada em arquitetura e na finalização de curso realizou um estudo dos movimentos de uso e ocupação de ruas no formato de festas e festivais autogeridos, e qual o seu impacto nas cidades. Ela conta: “Com uma análise mais focada em São Paulo, estudei como os inúmeros projetos culturais emplacados pelo governo nos últimos 20 anos foram ineficazes para melhorar a região central da cidade.” Carol estudou os aspectos positivos e negativos de eventos como Festival Parque Augusta, Terrenos Demolidos da Nova Luz, Buraco da Minhoca, Ouvidor 63, Cine Marrocos, Minhocão, especialmente em relação à eventual tensão entre os freqüentadores dos eventos e os moradores dos locais onde eles ocorrem. No última dia 10 de setembro, a Mamba Negra foi uma das participantes do SP na Rua, promovido pela Prefeitura de São Paulo (PT). O festival reuniu as principais festas da capital paulista em estruturas montadas no centro da cidade, promovendo uma verdadeira maratona festiva a céu aberto na noite paulistana.

Fenômeno ocorre em várias capitais

Foto: Divulgação Cerne/Dhidrone

Concentração de jovens da Av. Perimetral, no Centro de Porto Alegre

Foto: Divulgação Cerne/Dhidrone

Jovens buscam formas não tradicionais de manifestação

O arquiteto e urbanista Leonardo Brawl faz uma leitura dessa movimentação nas ruas do país: “Espaços urbanos são tidos pelos estudiosos de diversas áreas do fenômeno da urbanização, como a última fronteira de disputa dos cidadãos por territórios democráticos públicos. Os grandes levantes das últimas duas décadas tratam dessa fronteira entre público versus privado. Nesse panorama aparecem as ocupações festivas, com o caráter organizacional em rede distribuída, se valendo muito de alguns aspectos do modus operandi da geração nascida junto à internet. Os coletivos possuem lideranças espontâneas e criam um imaginário onde causas específicas são difusas (mas não diminuídas nem oprimidas), de modo a manter o foco na manifestação social propriamente dita da ocupação do espaço físico. Talvez a importância dos coletivos resida justamente no poder de atração das festas, pois há um número grande de pessoas (a maioria bastante jovem) que não se identifica com maneiras obsoletas de protestar. O grande volume de pessoas gera impacto, afinal é gente jovem festejando de maneira autogestionada, em espaços públicos cujo imaginário coletivo standard não cogitava sequer sendo utilizado.”

Em Porto Alegre, em 12 de agosto, a festa Cerne levou centenas de pessoas para ouvir e dançar música techno embaixo da estação do aeromóvel, na região central da cidade. A maioria das festas de rua acontece de forma clandestina, sem autorização do poder público e os integrantes do coletivo enfrentaram a tensão entre os festeiros e os moradores, que ligaram massivamente para a polícia reclamando do volume do som. Em resposta a esta reportagem, o coletivo, que iniciou em 2015 como um projeto interdisciplinar propondo a vivência entre diferentes profissionais das artes e tecnologia, se manifestou da seguinte forma: “A Cerne sempre faz uma pesquisa de impacto para ver em quais lugares é possível executar o projeto, porém, no meio urbano, é muito difícil não afetar uma ou outra pessoa. Pretendemos gerar o menor impacto possível nas próximas edições. É importante que as pessoas entendam que com a ocupação de rua, o fluxo de gente no local aumenta, e com o volume de pessoas, a rua está mais segura. Ocupação de espaços públicos aumenta a segurança. A polícia costuma aparecer quando há reclamação dos vizinhos, mas vemos que existe uma criminalização das ocupações de rua, e até um pouco de intolerância. E, a partir dessa criminalização, o nosso posicionamento político se configura como um apelo pela utilização e requalificação dos espaços públicos degradados da nossa cidade.”

Poder público é omisso em muitos aspectos
O poder público, omisso em muitas questões importantes referentes ao espaço urbano, tenta intervir na questão das aglomerações, já que entre elas estão também ações de natureza mais explicitamente política, como os protestos e as manifestações. A Lei do Artista de Rua entrou em vigor em 2015, após muitas discussões, mas desde então a Prefeitura de Porto Alegre já propôs dois decretos visando à restrição de atividades nas ruas da capital. Atualmente o gabinete do vice-prefeito Sebastião Melo (PMDB) tenta, através de uma minuta, restringir eventos e manifestações na cidade, exigindo autorização prévia e pagamento de taxas para o uso das vias públicas. Em três de agosto uma audiência pública foi convocada pelo movimento Arteiros da Rua para debater a polêmica proposta. Representantes de diversas entidades lotaram a Câmara de Vereadores e, graças à pressão popular, o decreto foi suspenso, sem um posicionamento final da Prefeitura. “Existe uma problemática administrativa em relação às secretarias, que necessitam de um sistema interligado, por isso o decreto não tem viabilidade”, explica o ator Fábio Cunha, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos de Diversões (SATED/RS).  A Prefeitura propunha cobrança por metro quadrado para aglomerações de mais de 30 pessoas, seja em atividades de natureza artística, religiosa, comunitária ou política. “É preciso dialogar mais, ver quem utiliza a rua, olhar também para os grandes eventos, que causam enorme impacto”, considera Fábio, “cada bairro tem sua característica específica, é muito difícil estabelecer um decreto que dê conta de todas as regiões a partir de um só modelo”.

Enquanto isso, os festeiros seguem ocupando as ruas. Um registro de todo esse rolê, gíria dos anos 1970 que é ressignificada pela nova geração e serve para designar tanto um tipo de atividade quanto um local, está em fase final de produção. A série documental Ruas em Transe trata da movimentação festiva no espaço urbano. Os realizadores, integrantes do coletivo audiovisual Batô, por três anos gravaram (muitas vezes produzindo eles próprios) festas nas ruas de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Em cinco capítulos, Ruas em Transe tem estréia prevista para 2017 na TV Brasil. No próximo sete de outubro, a Galeria Ecarta inaugurará a exposição coletiva The Dance Party, integrando a programação do 3º Festival Kino Beat e reunindo artistas brasileiros e internacionais que irão discutir a cultura das pistas de dança. Uma das ações propostas na mostra será a realização de uma edição da Arruaça, em local ainda a ser definido. A música e as danças nas ruas não param.

Dançando techno embaixo da estação do aeromóvel

Foto: Divulgação Cerne/Dhidrone

Dançando techno embaixo da estação do aeromóvel

Foto: Divulgação Cerne/Dhidrone

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