GERAL

Paz impossível, guerra improvável

Por Gilson Camargo / Publicado em 10 de abril de 2017
"O interesse é pelo controle do Oriente Médio, de vital interesse para os EUA por questões políticas, influência no conflito Israel versus Palestina, conexão com a Ásia, o entorno da Rússia, o acesso ao Mar Mediterrâneo"

Foto: Divulgação

“O foco é o controle do Oriente Médio, de vital interesse para os EUA por questões políticas, influência no conflito Israel versus Palestina, conexão com a Ásia, o entorno da Rússia, o acesso ao Mar Mediterrâneo”

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O contexto de disputas estratégicas e conflitos indiretos que caracterizou a Guerra Fria no período entre o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e a extinção da União Soviética, em 1991, foi sintetizado com muita propriedade pelo cientista político francês Raymond Aron: uma disputa que inviabiliza a paz, mas também não leva à guerra. A disputa entre as duas grandes potências ganha um novo sentido com os acontecimentos envolvendo EUA e Rússia na atualidade, em relação à guerra civil da Síria. Após um ataque com armas químicas, cuja autoria foi atribuída pelos EUA ao governo Sírio, que provocou a morte de 87 civis na província de Idlib, no dia 4 de abril, o presidente norte-americano ordenou um ataque com mísseis desde o Mar Mediterrâneo, que destruiu a base aérea de Al Shayrat, em Homs, supostamente usada como depósito de armamentos químicos. Com a popularidade em baixa, Donald Trump aumentou o tom das provocações e posicionou navios de guerra na Península da Coreia. Seguiram-se acusações mútuas entre Trump e o presidente russo Vladimir Putin, aliado de Bashar al-Assad, que governa sob a ameaça de deposição por grupos armados em meio a uma guerra civil que já provocou a morte de 400 mil pessoas. Para o chefe do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP e professor do Programa de Pós-graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), Reginaldo Nasser, trata-se de uma “guerra patrocinada” por interesses estratégicos no Oriente Médio. “É uma mensagem que ele (Trump) enviou para a Rússia, principalmente, para que ela cuide dos seus apadrinhados, caso da Síria e também o Irã”, analisa Nasser nesta entrevista.

Extra Classe – Quais são as consequências do ataque contra bases do governo da Síria, justificado pelo presidente Donald Trump como de “interesse vital” para a segurança nacional dos Estados Unidos?
Reginaldo Nasser – O Trump, podemos dizer, como quase todos os presidentes dos Estados Unidos a partir da Guerra Fria, tem uma justificativa de ataque baseada na ideia de que está defendendo os interesses dos EUA. Nesse comunicado ele menciona que as armas químicas podem passar para as mãos de terroristas e, na medida em que os terroristas detenham essa arma, ela pode ser usada contra todo e qualquer cidadão norte-americano no mundo. Claro que não tem muito sentido isso. Como isso poderia representar uma ameaça a uma grande potência como os EUA? Mas é uma justificativa quase que obrigatória para todo e qualquer presidente invocar a segurança nacional.

Porta-aviões norte-americano posicionado no Mar Mediterrâneo disparou 59 mísseis contra base Síria em represália a ataque com gás sarín que matou 87 civis em território sírio

Marinha dos Estados Unidos/ Divulgação

Porta-aviões norte-americano posicionado no Mar Mediterrâneo disparou 59 mísseis contra base Síria em represália a ataque com gás sarín que matou 87 civis em território sírio

Marinha dos Estados Unidos/ Divulgação

EC – Esse pretexto oculta o real interesse – que não se resume às reservas de petróleo – dos EUA e aliados na região?
Nasser – No discurso você tem as justificativas que vão para o público em geral e tem aquilo que fica escondido, que fica subentendido que são realmente os interesses do país e das classes que o apoiam. Claro, isso não vale só para os EUA, mas para todo e qualquer país, principalmente as grandes potências. No caso do Oriente Médio, não é apenas petróleo. Os EUA já têm acesso às grandes reservas de petróleo do mundo, inclusive ao Iraque e à Arábia Saudita, com exceção do Irã. O interesse é pelo controle de uma região, no caso, o Oriente Médio, que passou a ser de vital interesse para os EUA por questões políticas, influência no conflito Israel versus Palestina, conexão com a Ásia, o entorno da Rússia, o acesso ao Mar Mediterrâneo, enfim, uma região importante do ponto de vista geográfico e também histórico. Há ainda a relação do Oriente Médio muito próxima com a Europa: veja quem são os refugiados que em casos de conflitos vão para a Europa. Há outros interesses de outros grupos que compõem o processo de tomada de decisão da política externa norte-americana.

EC – A decisão de Trump de bombardear uma base aérea na Síria desestabiliza as relações entre Washington e Moscou? Logo após o ataque, o presidente russo Vladimir Putin declarou que iria retaliar…
Nasser – Guerra Fria? O filósofo e cientista político francês Raymond Aron (Raymond-Claude-Ferdinand Aron, 1905-1983) cunhou uma frase que ela tem a sua validade até os dias de hoje, e quase sempre: “Paz impossível, guerra improvável”. Aron queria pensar como seriam as relações entre grandes potências, e no caso, potências nucleares. Como seria isso, porque no caso de potências nucleares há a possibilidade de uma guerra de proporções gigantescas, com consequências desastrosas para a humanidade. Por isso, elas sempre vão estar em conflito, mas não direto. Então a guerra é improvável, porque são grandes potências que têm arsenal nuclear. Elas não vão colocar isso a toda prova e, no caso, ainda mais pela Síria, porque não é área de vital interesse nem para os Estados Unidos nem pra Rússia. O conceito valia para a Guerra Fria, mas acho que continua vigente mesmo com o fim da Guerra Fria para aquelas potências que têm arsenal nuclear. Hoje cunhou-se uma outra expressão, “guerras patrocinadas”, em que cada país apoia um lado e eles também podem fazer negociações com esse lado. Tem acontecido isso no entorno da Rússia, caso da Ucrânia, que tem muitos problemas e será esse agora no caso da Síria.

EC – Em 2013, quando o ex-presidente Barack Obama cogitava uma ação militar na Síria em represália a um ataque químico que matou 1,4 mil civis em território sírio, o Trump empresário foi contra: “Não ganhamos nada, e só irão nos acontecer coisas ruins!”. Por que desta vez o uso de armas químicas fez o Trump presidente abandonar seu discurso reiterado de aproximação com Moscou e de não intervenção na Síria?
Nasser – Não se pode construir um cenário baseado no que uma pessoa fala. No caso, Trump falava em nome pessoal, não tinha a responsabilidade do cargo nos EUA. Mas, mesmo no cargo, qualquer que seja o presidente, ele tem um cenário à disposição e, dependendo das circunstâncias, claro, consultando os seus assessores, aqueles que o apoiam, ele vai indicar determinada medida. Portanto, podemos pensar que não foi de forma alguma a questão da morte, agora dos civis por armas químicas, isso não teria sentido nenhum, já morreram mais de 400 mil pessoas e têm morrido pessoas violentamente todos os dias na Síria. Ele quis ganhar a opinião pública e, no caso, armas químicas chamam muito a atenção, ainda mais com as imagens (das vítimas atingidas com gás sarín) divulgadas pelo mundo inteiro. Trump aproveitou essas circunstâncias para tentar aparar algumas arestas. Primeiro, a baixa popularidade que ele tem nos EUA e, em relação aos russos, acusações graves de envolvimento no serviço de inteligência russa na eleição norte-americana. Nesse aspecto, arrumar uma encrenca com os russos pegaria bem na política interna norte-americana, na opinião pública, e parece que foi isso que aconteceu. Veja só, ele declarou que fez o ataque sem consultar o Congresso e, pelo que vimos até agora, isso não teve repercussão. Os próprios democratas estão apoiando a ação (o bombardeio com 59 mísseis tomahawk contra a base aérea síria), o que leva a crer que ele fez algum acerto entre líderes, com lideranças políticas antes de fazer tal declaração. Da perspectiva internacional, foi um recado para a Rússia: “olha, vocês não vão ficar sozinhos, ditando os rumos dos acontecimentos na Síria e no Oriente Médio. Nós queremos participar disso”. Então, é um aviso. As grandes potências agem assim, bombardeando os outros. É uma mensagem que ele enviou para a Rússia, principalmente, para que ela cuide dos seus apadrinhados, caso da Síria e também o Irã.

EC – Um recado extensivo ao Irã e à Coreia do Norte?
Nasser – Sim, o Irã é aliado à Síria, o Irã é aliado à Rússia. Então, ao fazer isso, ele dá um recado, sem dúvida nenhuma, ao Irã. Mas isso é muito diferente da Coreia do Norte. O contexto do pensamento do filósofo Raymond Aron se aplica aqui, numa proporção menor, mas também para a Coreia do Norte, que é uma potência nuclear. Você não ataca uma potência nuclear. Não há um caso registrado até agora no mundo. Essa coisa da Coreia também é um jogo de cena, as manobras dos porta-aviões para dizer à opinião pública que os EUA estão presentes, mas isso não vai ter maiores consequências…

EC – O apelo às “nações civilizadas” para acabar com o terrorismo e a “carnificina na Síria” indica que os EUA costuram uma coalizão para intervir no país?
Nasser – Improvável que surja uma coalizão para atuar dentro do território da Síria. A Síria está em guerra civil, com o território repartido em vários grupos. Seria muito arriscado para qualquer país, para qualquer tropa tentar intervir. Guerra civil se resolve muito mais com acordo político, pode ser patrocinado por EUA e Rússia, aí sim é que pesaria, mas fazer uma coalizão intervir no território sírio é praticamente impossível e eu acredito que até o momento isso está fora de cogitação. Repito, a não ser que haja um pacto, haja um consenso, um cessar-fogo. Aí sim, a partir de um cessar-fogo, essas tropas poderiam começar a tomar e dimensionar o território, mas até chegar a isso tem um longo caminho.

EC – Para o presidente russo, a ação dos norte-americanos foi uma “agressão contra uma nação soberana” com um “pretexto inventado”. Faz sentido pensar que o ataque com gás sarín não tenha partido das tropas do presidente Sírio Bashar al-Assad?
Nasser – No terreno dessas questões que envolvem guerra civil, arma química, tudo é possível. Olhando depois de quase 40 anos o caso de uso de armas químicas na guerra Irã-Iraque (1980-1988) – veja que era guerra inclusive entre países, entre nações, não era guerra civil –, até hoje não se sabe direito o que houve e parece, inclusive, que todos os lados usaram. De qualquer modo, podemos dizer que o ataque com arma química ocorreu no território da Síria, em uma vila dominada pelos rebeldes. Então, a responsabilidade recai diretamente sobre o Assad, ainda que possa não ter sido ele. E, claro, com o patrocínio da Rússia. A possibilidade de isso ter acontecido é grande. Mas temos que analisar o contexto. No que se refere à forma pela qual os EUA retaliaram, está completamente fora do direito internacional, como sempre. Não passou nem pelo Congresso americano, até por uma questão interna, e nem pela ONU. O Bill Clinton fez isso, o Bush fez isso, o Trump, qualquer presidente dos EUA vai passar por cima de toda e qualquer norma do direito internacional, como, também, por vezes a Rússia já fez, a China já fez. Quem tem que, obrigatoriamente, respeitar o direito internacional são aqueles que estão abaixo dos grandes, os grandes não cumprem essa determinação.

Ativistas sírios inspecionam corpos de vítimas de ataque com armas químicas que matou 1,4 mil civis em 2013

Foto: Médicos Sem Fronteiras/ Divulgação

Ativistas sírios inspecionam corpos de vítimas de ataque com armas químicas que matou 1,4 mil civis em 2013

Foto: Médicos Sem Fronteiras/ Divulgação

EC – Por que o uso de armas químicas e bombas de fragmentação é crime de guerra?
Nasser – São proibidas porque não provocam dissuasão na força beligerante, quer dizer, não têm efeito militar propriamente dito. Seu efeito maior é contra civis, provocando terror, seja arma química ou fragmentação. Esse tipo de arma não vai destruir um blindado, não vai dissuadir o inimigo de usar a força aérea, recuar ou entregar suas armas. Ataca preponderantemente civis, por isso é proibida. A questão está mais balizada pelo direito humanitário que, diferente dos direitos humanos, é muito pragmático ao propor: ocorrendo a guerra o que se pode fazer para minimizar os seus efeitos para os civis.

EC – Acredita que os responsáveis pelo ataque sofrerão sanções da ONU
Nasser – Muito difícil. Para ter sanção da ONU é necessário passar pelo Conselho de Segurança que, no caso, a Rússia exerce o direito de veto. Mesma coisa com sinal trocado quando acontece com Israel, que sempre jogou bomba de fragmentação nos palestinos, bomba com fósforo, e nunca acontece nada.

EC – Assad é de fato o ditador sanguinário que a propaganda norte-americana e a mídia vendem para o mundo?
Nasser – Sim. Não há como negar. Não é porque os EUA querem e sempre quiseram derrubar o Assad em virtude de ele ter uma política exterior em desacordo com os EUA que seu governo não seja uma ditadura. Uma ditadura de muito tempo, herdada do pai, Hafez, que já tinha um histórico de massacres de sírios, de palestinos, de ir contra a esquerda libanesa na guerra civil do Líbano (Hafez al-Assad presidiu a Síria de fevereiro de 1971 até sua morte, em 10 de junho de 2000, sendo sucedido no poder pelo filho, Bashar). Se você perguntar para os refugiados da Síria que aqui estão, incluindo os palestinos que viviam em campos de refugiados na Síria, verá que eles são unânimes em condenar o Assad. Eu conversei com vários deles. Inclusive era proibida qualquer manifestação política dentro da Síria pela Palestina. Então, é uma ditadura. Vários aqui têm relatos de tortura, de morte de gente da família. Repito, são palestinos refugiados na Síria. Por outro lado, claro, os EUA não têm nenhum objetivo de implementar a democracia em lugar nenhum. EUA, Arábia Saudita, França, Inglaterra, todo mundo sabe disso, alimentaram esses chamados grupos radicais para derrubar o Assad. E aí surge o Estado Islâmico que é muito particular nesse sentido. Quando ele começa a ter mais poder, aí é aquela história do blowback (alusão ao sistema operacional em armas de fogo que dispensa o travamento da culatra). É um termo que a própria CIA criou, e que depois vazou e todo mundo ficou conhecendo, para qualificar o que houve no Afeganistão. Eles alimentaram a guerrilha afegã contra os russos e depois ela se voltou contra os EUA.

EC – No meio desse cenário, entre o teatro de guerra patrocinada por EUA e Rússia e o ditador Assad e o terror do Estado Islâmico, quem leva a pior são os sírios, a população civil…
Nasser – Maior prejudicado nisso é a população civil. Mas eu diria, dentro da população civil, grupos políticos, principalmente os grupos de esquerda que iniciaram a revolta contra Assad e não pegaram em armas. Esse pessoal ficou absolutamente fora da jogada, eles que iniciaram os movimentos, a mobilização, a revolta, foram massacrados pelo Assad, não havia guerra civil ainda, era o pessoal desarmado.

EC – Como equacionar essa crise?
Nasser – Tenho dito que a solução para a crise da Síria passa pelo rompimento da economia de guerra. A gente sabe, se parar de chegar armas lá, a coisa para, cessa a circulação de recursos, atinge quem compra, quem vende, quem fica com mais poder. Você pode dizer que isso é uma ingenuidade, pode ser, mas é por aí, quebrar o fluxo de armas que alimentam a guerra civil. Em um grande acordo político entre os vários grupos, algum lado vai ter que ceder. Então, pode sair uma solução, vamos ser otimistas aqui, algum cessar-fogo no qual entrem em acordo a Rússia e os EUA para não derrubar o Assad agora, mas fazer uma substituição gradual, que houvesse uma transição para um outro governo. É uma medida razoável? É. Mas como a gente sabe, a razoabilidade não impera na política. De toda forma haverá em breve uma reunião do secretário de Estado dos EUA com o governo da Rússia. Vamos ver o que sai desse encontro.

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