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Forças poderosas querem desestabilizar o Papa Francisco

Em entrevista exclusiva ao Extra Classe, Frei Carlos Josaphat fala sobre os bastidores do vaticano, a política interna da igreja e explica os embates internos ao longo da história do clero
Marcelo Menna Barreto / Publicado em 8 de setembro de 2017

As pressões conservadoras sobre o Papa Francisco

Foto: Reprodução/YouTube

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Dezesseis anos atrás, ao completar 80 anos, matéria no O Estado de São Paulo com o título Carlos Josaphat, o frade que incendiou a esquerda o retratava. Agora, o frei dominicano, mineiro de Abaeté, com 96 anos, parece congelado no tempo. No bom sentido! Com a mesma lucidez que às vésperas do golpe de 64, com o livro Evangelho e Revolução Social e a última capa do jornal Brasil Urgente (Fascistas preparam golpe contra Jango) que editava até seu fechamento pelos militares, o “velho frade” compartilha aqui um pouco do seu conhecimento sobre a Igreja Católica.

Sem dúvidas, o religioso ainda tem claro que Francisco está sabendo se movimentar dentro da intrincada rede de poder que é a Cúria Romana. Mesmo assim, alerta que forças ocultas e poderosas se movimentam para abalar a firmeza do Papa e, de uma forma muito sutil, influenciar em sua sucessão. E bota conhecimento nisto. “Convidado” a ficar 30 anos fora do país, hoje professor emérito de teologia da Universidade de Friburgo, com mais de 40 livros publicados, Frei Josaphat teve a amizade dos principais teólogos que influenciaram a renovação da igreja. Assim, acompanhou de perto o Concílio Vaticano II, que entusiasmadamente menciona nessa entrevista.

Ao encerrar a entrevista, o Extra Classe, diante da grande amizade que o frei manteve com Paulo Freire, não pode se furtar de pedir que o mesmo falasse um pouco sobre seu último trabalho, onde o grande pedagogo brasileiro é comparado nada mais nada menos com outro grande pensador: Tomás de Aquino.

Extra Classe – Vaticanistas afirmam que a Igreja funciona como um pêndulo. Hora, coloca à sua frente, um pontífice mais avançado, hora outro conservador e, assim, vai se fortalecendo como instituição que já existe há mais de dois mil anos. O senhor concorda com essa tese?
Frei Carlos Josaphat Olha, de uma modo muito geral, a gente pode ter uma análise histórica do Papado contemporâneo, uma compreensão muito mais precisa, por exemplo, a partir de Leão XIII (1878-1903). Antes dele, tivemos uma outra fase, a Igreja anti-moderna, quer dizer a Igreja contra o modernismo, contra os governos, as ideias, a imprensa, etc… A tal ponto que o Papa Pio IX (1846-1878) chegou a dizer que seria um grande erro pensar que a Igreja pode se reconciliar com o mundo moderno. Então, nesse caso nós teríamos aí um dado interessante: um Papa que estaria afirmando ‘nós estamos em conflito com o mundo moderno e é um erro pensar que eu não posso sair dele’.

EC – Por que esse anti-modernismo?
Josaphat  – Antes de Leão XIII, os outros Papas, todos eles estavam em conflito com o mundo. Conflito que tinha estourado com a Revolução Francesa. A Igreja, naquele tempo, a Igreja hierárquica, tinha ficado do lado da nobreza e entendia que o que a revolução queria fazer era abater o trono e o altar. Quer dizer, o Papa em Roma é um soberano e agora vem a revolução… Leão XIII, ao contrário, ao que chegou, se mostrou como um momento de abertura; de 1899 para 1900, na passagem do século, ele convidou a Igreja para rezar, para invocar que o novo século fosse um século de renovação. É outro estilo, entre Leão XIII e Pio IX.

EC – Leão XIII é o primeiro Papa a escrever uma encíclica que versa sobre as condições dos trabalhadores (Rerun Novarun – Das coisas novas), falando sobre a distribuição da riqueza, enfim, considerada a Carta-Magna do Magistério Social da Igreja, mas, voltando a tese do pêndulo…
Josaphat  –  Ele escreveu umas cinquenta encíclicas! O importante entender aí é o seguinte: que há de fato uma certa oscilação, mas mais de personalidades. Por exemplo, o Leão XIII vem e diz ‘esse mundo tem estado errado, meu predecessor falou sobre isso’…. Agora, ele pega os temas e os trata positivamente, de modo que ele vai tratar positivamente a questão do poder, a ideia dos direitos do povo, que ele considera que estão mal compreendidos pelo mundo e aponta que a Igreja tem uma doutrina. Então ele fez o seguinte: tranquilamente expôs a doutrina, dizendo, entre outras coisas, ‘olha, vamos voltar à São Tomás de Aquino’. Eu, por exemplo, estudei e lecionei em Friburgo (Suiça), numa universidade fundada sob a inspiração de Leão XIII. Uma universidade do Estado, sob a tutela dos Dominicanos.

EC – Pelo visto Leão XIII é um marco para o senhor nesse ‘Pêndulo’…
Josaphat  – Leão XIII para mim é um começo forte! Depois, Pio X (1903-1914), por exemplo, na parte boa, fez muita coisa para a liturgia, mas ele voltou a condenar muitos “hereges”. Chegou a condenar como herege Vitandus! Vitandus em latim é aquele que deve ser evitado ou seja uma pessoa que devia ser totalmente isolada, o que é um absurdo, que é contra todos os direitos humanos. Imagina uma pessoa a quem não se pode nem oferecer uma xícara de café?  Foi um grande erro. Agora, quem vai pegar o Leão na unha é Pio XI (1922-1939). Ele chega, por exemplo, em 1931, nos 40 anos da Rerum Novarum a escrever a Quadragesimo anno, que, para mim, é uma das melhores encíclicas, propondo coisas concretas. Por exemplo, no sentido de afirmar que o sistema de salários era totalmente injusto pois, se o trabalhador contribui para o lucro, porque ele vai receber uma medida e o dono do capital vai receber todo lucro? Ele tem é que participar do lucro. Uma ideia que poderia corrigir a monstruosidade do capitalismo, se houvesse um sistema mais justo. Pio XI retomou o progresso e foi um pontificado que eu considero que melhor preparou o Vaticano II. Já Pio XII (1939-1958) retomou muita coisa, mas com a preocupação de cuidar, tipo ‘todas as associações são boas, a Ação Católica não deve ser melhor que as outras’. Ou seja, ele avançava, mas…

EC – O Senhor falou que o pontificado de Pio XI talvez teria sido o que melhor preparou o Vaticano II. O sucessor imediato de Pio XII, este que falaste que tinha ‘todo cuidado é João XXIII (1958-1963), que convoca o Concílio. Como ele fica nessa história?
Josaphat – Ele tinha uma ideia, tem uma declaração muito interessante no diário dele: ‘eu tenho umas ideias de renovação da Igreja e se eu fui eleito Papa é porque Deus quer que essas ideias sejam propostas para a Igreja’. Então, o curioso do Papa João XXIII é que a revolução de Deus, que foi o Concílio, parte da seguinte ideia: vamos dar a palavra à Igreja! Daí ele propõe fazer um sínodo em Roma, depois um novo Direito Canônico, mas antes fazendo um Concílio. Aqui entre nós, temos que ter muito cuidados com os jornalistas porque eles contam tudo (risos)…. A coisa interessante é que ele chega, faz o sínodo de Roma e: fracasso total! Você nunca ouviu falar desse sínodo. Sabe por que? Foi feito pela Cúria. Então aí veja o problema! É importante entender que se um sínodo for feito no palácio do Arcebispo, com a turma do Arcebispo, etc.. Perdido!!! Agora, se for com as comunidades de base, se der a palavra a Igreja…

EC – E como se deu a palavra à Igreja?
Josaphat  – Primeiro, o Concílio comportou uma consulta geral de todas as dioceses. ‘O que vocês querem?’. A maior parte do povo não estava preparada. Os bispos, não estavam preparados. As vezes pediam ‘ahhhh, devoção’… Então, não tinham uma ideia. Entregou-se, então, a segunda etapa à Cúria Romana. A Cúria preparou 71 projetos. Todos eles no sentido de apertar cada vez mais a orientação da Igreja e, sobretudo, aumentar a autoridade nos vários pontos. Por exemplo, falava-se sobre matrimônio; quais são os deveres, como se precisava viver… Então esses 71 projetos foram entregues. O Papa tinha a seguinte ideia: eu vou consultar a igreja como ela é e na hora que chegar os bispos, os projetos bons ele deverão valorizar, o que não for….. A ideia que ele teve, eu acredito, foi ‘vou jogar a rede’. Esses 71 projetos foram entregues aos bispos na primeira seção do Concílio. Nessa hora, em 1962, dia 11 de outubro, o Papa faz um bonito discurso e os entrega. Quando os bispos viram disseram ‘Mas é a coisa mais conservadora desse mundo!’ (Risos). Já os conservadores diziam é a vontade do Papa que isto seja discutido. Ou seja, eles estavam matando o Concílio no seio do próprio Concílio.

EC – Como se portou João XIII nesse impasse?
Josaphat – Nessa hora, veio a coisa interessante. Durante a primeira seção do Concílio, em uma semana nós tivemos a reação do Papa que, entre os amigos dele, disse que estava tendo muitas dificuldades para a renovação da Igreja. Então uns oito Cardeais, que o Papa também fala em seu diário, se reuniram e disseram: ‘nos vamos chegar e entrar com um jogo forte, dizendo que se isto é proposto, quando um projeto é proposto ao Concílio, o Concílio tem que votar se isto é aceito ou não’. Eles jogaram com a democracia! Daí a Cúria Romana, de outro lado, dizia ‘isto é um absurdo, o Papa mandou, o Papa está acima de todos’, mas a assembleia disse não: o Concílio é acima de tudo, com o Papa na frente. Então se passou outra semana, com a ideia crescendo, crescendo, quando foi no dia 20 de novembro – esta data está no meu coração – foi a data do Natal do Concílio, eles resolveram votar. Queremos receber ou não as propostas para discussão? O não ganhou de maioria! Mas como os dois terços necessários não foram atingidos, comunicaram ao Papa e ele disse “Eu completo os dois terços”.

EC – O senhor teve a oportunidade de acompanhar o Concílio Vaticano II de perto, não?
Josaphat – Acompanhava através do padre Chenu (Marie-Dominique Chenu, Teólogo francês com grande influência no Concílio Vaticano II). Todo  papel que circulou, que era importante, ele me passava. Eu tenho os textos originais que foram entregues aos bispos quando se imprimiram os 16 documentos do Concílio. O Concílio foi a coisa mais democrática de que eu, pelo menos, tenha conhecimento porque tudo foi discutido e só com a autoridade do argumento. De modo que se Dom Hélder Câmara, por exemplo, dizia ‘eu quero tal coisa, assim, assim’, se perguntava sempre ‘quais são as razões de sua excelência?’. Foi muito interessante, não havia essa coisa assim eu tô dizendo, etc e tal. Foi um Concílio que trabalhou com a democracia. Paulo VI (pontífice que concluiu o Vaticano II, após a morte de João XXIII) disse que foi o maior e mais excelente de todos os Concílios. Eu o considero uma verdadeira obra do Espírito, que inaugurou essa época de pentecostes na Igreja em que estamos vivendo hoje.

EC – Poderia ter avançado mais?
Josaphat – Infelizmente, não se tinha chegado antes do Concílio a valorização das mulheres enquanto cabeças, exemplos, de modo que participaram poucas mulheres, mais apenas como consultoras. Nesse ponto, eu acho que a teologia tem que aprofundar muito. É óbvio que no tempo de Cristo, devido as imperfeições na sociedade,  seria impossível se lançar uma igreja com mulheres como apóstolas, por exemplo. É triste dizer isto, mas seria algo encarado como ridículo. Agora, com o progresso da humanidade, bem na linha dos princípios evangélicos, hoje as mulheres poderiam estar numa camada da hierarquia e não apenas como colaboradoras, fazendo o bem, etc.

EC – Vivemos hoje um paradoxo na Igreja devido aos 30 anos de pontificados conservadores. Vemos hoje um clero jovem, porém, com raras exceções, muito conservador, que toma o lugar de um clero mais progressista, com idade, digamos, mais avançada, que viveu de perto a experiência da construção do Concílio Vaticano II. Como o senhor analisa isto e acha que o Papa Francisco pode reverter esse quadro?
Josaphat – Sobre o paradoxo que você colocou, de fato eu tenho notado isto, mas não tenho uma maior explicação. Uma análise. Sobre a reversão, olha, na realidade há muitas forças ocultas, poderosas. Por exemplo, existe uma sociedade que se chama União Internacional das Associações Patronais Católicas (Uniapac), que hoje se tornou uma organização ecumênica, congregando outras confissões cristãs). Isto é grave. Essa Uniapac é uma das financiadoras da Igreja. É uma coisa curiosa. Na minha opinião, praticamente a única coisa que deveria haver seria o dízimo – que é bíblico – para que o povo anonimamente mantenha sua Igreja. O benfeitor (pausa), gente, o benfeitor é o Inferno! O benfeitor não quer contribuir desinteressadamente. Os grandes bancos, etc, essa gente não dá ponto sem nó. Eles não chegam a atacar o Papa Francisco, mas com certeza ajudam todos aqueles que podem abalar a firmeza do Pontífice.

EC – Lobby de empresários na Igreja…
Josaphat – Veja você, em 1959 quando estavam preparando a revolução para derrubar aquilo que eles chamavam de populismo eu estava conversando com o Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos de Motta. Eu fazia um trabalho social e ele dizia ‘você não diz que vem aqui, nem que eu estou apoiando você’. Não queria levar paulada (risos). Mas eu estava lá quando chegou a secretária e  disse ‘Senhor Cardeal há uns senhores dizendo que estão com uma audiência marcada’. Então eles chegaram ali, cheios de ‘Senhor Cardeal é uma honra ser recebido’, etc e tal, e cada um colocou um cheque na mesa. ‘O senhor precisa nos apoiar’; o Cardeal os esperou falar e eles disseram ‘nós estamos aqui muito especialmente porque uma parte do Clero está se deixando levar por ideias de esquerda’. Eu estava ali quietinho e eles pedindo ‘vossa eminência podia os destituir de suas paróquias. O Cardeal deu um soco na mesa e disse ‘eu não aceito que vocês venham aqui para denunciar os meus padres; eu os coloquei nas paróquias e esses padres são bons padres’, se levantou e deu a mão para eles saírem. Eram ricos empresários, diretores das grandes empresas e o Cardeal ainda disse ‘se os senhores quiserem podem levar esses cheques’. Aí, quando eles foram embora, pensei: esse é o problema, as grandes paróquias de São Paulo. Todas elas são muito dominadas pelo dinheiro.

EC – Realmente muito sério. Imagino as pressões sobre Francisco.
Josaphat – Pra você ver, esse é o problema. Logo depois do Concílio (Vaticano II), Paulo VI chamou os nobres de Roma e disse assim ‘eu quero agradecer todo o serviço que vocês fazem para a Igreja, mas agora vocês não vão mais servir a Igreja como nobres, mas como todos os cristãos. Não haverá mais a categoria da nobreza romana’. Eles ficaram fulos. Estou dando exemplos de várias formas, de pessoas que exercem influência e que são muito difíceis de a gente combater, pois, além do poder econômico, são gente inteligente, que agem com toda uma técnica.

EC – Cite outros, por favor…
Josaphat – Eu tive a ocasião,  quando estava lá na Europa de participar de uma reunião dos patrões com os bispos representando a Igreja. Teólogos assessorando os bispos e técnicos em economia assessorando os patrões. A reunião foi em Constância, num daqueles hotéis que eu nunca comi tão bem (risos). Do ponto de vista do restaurante eu voltava lá (risos). Como teólogo eu estava lá. Então eu vi aquilo e cheguei a fazer um texto, que hoje integra um livro meu em francês. Nele eu falava do problema dos ricos a serviço da Igreja.

EC – Como foi a recepção?
Josaphat – Bem, entreguei o texto aos bispos que passaram para os patrões que pediram 24 horas para estudar. No dia seguinte, o texto é muito teórico, é uma teoria, nós estamos aqui para as coisas práticas’. Nem aceitaram discutir. Falo isso para dizer que há esse problema. A Igreja de Cristo, a Igreja dos pobres, nunca pode aceitar os interesses dos ricos contra os dos pobres. Ela tem sempre que pegar as necessidades dos pobres para jogar na cara dos ricos.

EC – Como fica Francisco no meio deste lobby?
Josaphat – Com Francisco, não sei se eles vão conseguir alguma coisa. O que é certo é que eles já devem estar estudando, eventualmente até uma coisa inteligente: porque não escolher como Papa um negro, da África, que foi formado em Roma?

EC – Um Cardeal Sarah, por exemplo?  (Cardeal africano Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos). Apesar de Francisco ter jogado um balde de água fria nos tradicionalistas ao afirmar que “A reforma litúrgica é irreversível”, deve lhe preocupar que um Cardeal, considerado, inclusive no último Conclave, a ser o primeiro Papa negro da história, tenha aventado a possibilidade de que o sacerdote em certas partes da Missa celebrassem Ad Orientem, ou seja, para o altar e de costas para os fiéis, como antigamente não?
Josaphat – Não há dúvidas. Aí eu acho que a gente considera o seguinte: Muitas vezes qual é a história da formação desses Cardeais? Nesse caso, qual é a verdadeira monumentalidade, a espiritualidade que ele tem? Isso é uma coisa difícil de apreciar, tanto que, para mim, essa gente, assim, é tão, tão complicada. Pra você ver, eu estive 27 anos como professor, à frente da faculdade de Teologia, e, nesse caso, a minha resposta é que, diante da complexidade de hoje, assim,  e sobretudo  a complexidade no meio do Clero, eu te confesso que eu fico até um pouco embaraçado.

As pressões conservadoras sobre o Papa Francisco

Foto: Reprodução/YouTube

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EC – O teólogo Leonardo Boff  escreveu que o Papa Francisco encontrou uma Igreja moral e espiritualmente em ruínas, além de uma acirrada disputa por poder dentro dos quadros da Cúria romana, a ponto de levar Bento XVI à renúncia. O senhor concorda?
Josaphat – Eu digo uma coisa, primeiramente, no começo disto tudo: A culpa é de Paulo VI! quando, depois do Concílio ele manteve a Cúria, os bispos e deixou à frente da Cúria o maior inimigo de toda a reforma da Igreja, o Cardeal Ottaviani (Alfredo Ottaviani). Ottaviani tinha como lema Semper Idem (Sempre o Mesmo), e ele entendia o Sempre o Mesmo no sentido de oposição a toda renovação. O que existe, existe, pode ter suas imperfeições mas tem que continuar, não me venha com ideias para mudar não. Semper Idem, a pessoa não pode mudar. Semper Idem, para as instituições e Semper Idem para trabalhar que a Igreja seja Semper Idem. Essa era a filosofia dele. Esse homem, fez tudo para barrar o Concílio. Aquela papelada que eu falei antes, os 71 projetos, foi ele que orgulhoso fez praticamente sozinho, sem chamar os teólogos. O Congar (Yves Marie Joseph Congar – considerado um dos maiores eclesiólogos do século XX, que abriu a Igreja Católica ao ecumenismo) foi designado para integrar a comissão com ele e ele não deixou o Congar fazer nada. E ainda disse que ‘quero me encontrar pessoalmente para consertar algumas de suas ideias’. Congar disse ‘igualmente’ (risos). Congar com aquela capacidade enorme, com uma formação muito grande.

EC – Pois é, com o Sempre o Mesmo é difícil mesmo trabalhar (risos)
Josaphat – Então a Cúria Romana continua depois do Concílio?! Eles esmagaram, por exemplo, alguns teólogos que tinham sidos mais ativos; tentaram condenar esses teólogos. Eu acompanhei um pouco isso na nossa ordem, pois estava numa posição boa, em uma universidade confiada aos dominicanos, sempre consultado pelo nosso Superior Geral. Trabalhamos muito em defesa desses teólogos.

EC – E o cerco continuou?
Josaphat – Em 1966, em julho, o Cardeal Ottaviani, mandou uma carta para todos os presidentes de conferencias dos bispos do mundo inteiro indicando o abuso que estava ocorrendo na utilização do Concílio. O Concílio terminou em dezembro de 65! Em 66, em julho, já deu tempo de acontecer todos esses abusos, de ele examinar e enviar uma carta? Eu tenho essa carta, falando da série de abusos que já estava ocorrendo na Igreja depois do Concílio. Ele estava é prevenindo. O erro estava na cabeça dele! Isso aí eu, olha, Paulo VI fez muitas boas coisas, mas essa de conservar a Cúria Romana com o Ottaviani na frente é a causa de todo esse mal-estar que nós temos ainda hoje na Igreja. Nós temos uma Cúria Ottaviani. A Cúria não chegou a ser efetivamente renovada e é muito difícil, por exemplo, um Papa chegar e dizer ‘vou renovar a Cúria Romana’, usando os mesmos elementos. Não muda!

EC – Existem muitas coincidências entre João XXIII e Francisco. Monsenhor Capovilla (Loris Capovilla – Secretário de João XXIII) disse que a vida do Papa João XXIII poderia se resumir na palavra misericórdia e Francisco fez questão de promulgar um Jubileu Extraordinário da Misericórdia.
Josaphat – Eu digo uma coisa a esse respeito. Há uma coisa que eu gosto de salientar. Como o Papa (João XXIII) vai falar aos bispos na abertura do Concílio. É um documento importantíssimo, porque o Papa, para o episcopado mundial, fala a eles o seguinte: A Igreja, no fundo com ele, muitas vezes optou pela severidade, mas agora ela fez a opção pela misericórdia. Quer dizer que a conversão da Igreja à misericórdia é afirmada como ponto de partida do Concílio.

EC – Na abertura do Concílio Vaticano II, em discurso radiofônico João XXIII disse “a Igreja se apresenta e quer realmente ser a Igreja de todos, em particular, a Igreja dos pobres”. Francisco radicaliza um pouco mais e diz “Como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres”. O senhor atribui essa radicalidade de Francisco ao fato de ser latino-americano, ter tido contato com a experiências das Teologias da Libertação e a do Povo, ou um recado forte à Cúria Romana?
Josaphat – Eu aceito a perspectiva do recado à Cúria Romana. O fato de ele estar morando num quarto de hotel e a Cúria toda em palácios… Nesse caso, estou plenamente de acordo de que é uma tomada de posição tendo em conta tudo isto. Sabe, no fundo ele deve sofrer muito! Agora eu vou lhe dizer uma coisa: no Evangelho, Cristo foi morto pelos seus adversários, mas toda a preocupação dele foi que na Igreja os pastores não tivessem uma autoridade de mandar, mas uma capacidade enorme de servir, de modo de que a parte mais dolorosa da Paixão de Cristo é ele ver que ele não conseguia formar essa Igreja de jeito nenhum. Todos os apóstolos, por exemplo, perguntando quando o Reino dos Céus chegasse que lugar que teriam… Só depois de muito trabalho, depois de Pentecostes eles conseguiram engolir um Cristo crucificado. Mesmo assim, quando a Igreja foi entrando no jeito romano, se estruturando enquanto o Império Romano vai se desestruturando, quando chega a cristandade, expressão do século XIII, a Igreja passou a ser a Igreja do poder.

EC – Poder que começou com Constantino…
Josaphat – E foi indo. Quando, por exemplo, São Domingo, na Idade média, um dia foi pregar, vieram falar para ele ‘o senhor vai na carroça, quando for pregar o senhor desce’. Quando isso aconteceu todo mundo disse ‘um príncipe desceu, um nobre desceu’, ele está do lado de lá, dos mesmos que estão nos oprimindo. Para mim, nós, Pós-Concílio Vaticano II, estamos tentando passar da Igreja poderosa, aquela que na Idade Média invocava o Cristo Poderoso e queimava o herege em nome de Deus, apelando para o Espírito Santo, para uma nova era do Espírito Santo. Deixando de lado os erros deles, de fato, hoje é a nova era do Pai, do Filho e do Espírito Santo; da misericórdia do Cristo que se deu a nós, do Pai que nos dá toda a eternidade como sendo um jogo de amor. Nesse caso, eu acho que nós estamos fazendo uma passagem muito importante. É pena que nós teólogos não estamos compreendendo bem a nossa função hoje, pois deveríamos deixar outros contextos e fazer uma teologia mais evangélica mesmo. Isto é a nossa falta. Hoje, eu acho, que no Brasil uma das forças que se afirmou grandemente é exatamente a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), no entanto, ‘vamos rezar’ e tal. Uma oração com as mãos levantadas para o céu, mas sem estar calejadas por pelejar é uma oração frágil demais!

EC – Thomas Cahill, em sua breve biografia do Papa João XXIII, escreveu que um importante religioso teria dito que a Igreja precisaria de 200 anos para se recuperar do pontificado de João Paulo II. O certo é que João Paulo II foi eleito aos 58 anos de idade e governou a Igreja por mais de 26 anos. Francisco, eleito aos 76 anos, agora com 80, tem demonstrado um certo sentido de urgência e realizado alguns movimentos fortes no sentido de reformar a Cúria Romana e de enfocar novas abordagens pastorais para casais divorciados e homossexuais, por exemplo. Na sua opinião, Francisco terá tempo de pavimentar o caminho para que a Igreja não volte a se fechar novamente?
Josaphat – A história tem um lado muito imprevisível. Eu que tinha me ordenado sacerdote para trabalhar na renovação da Igreja, no fim do pontificado de Pio XII, andava muito desanimado. É uma utopia o que eu estou querendo, pensava. Aí vem a eleição do Papa João XXIII… Quando deu a notícia, nós todos na comunidade, aguardando e eu me prostrei no chão e disse como é que um velho desses vai fazer alguma coisa! Quando  o homem começou a falar eu caí de joelhos de novo e (bate palmas) aplaudi entusiasmadamente. Agora, é claro, que vai haver uma parte do Conclave que é a conspiração para escolher um Papa bem conservador, bem piedoso e tal… Haverá essa conspiração, é claro. Bem, agora até que ponto isso vai ser da vontade de Deus, se o Espírito Santo vai inspirar aqueles para escolher é outra história. Eu, as vezes, tenho medo, sabe, vendo assim uns candidatos. Alguns que foram meus colegas, quando estavam lá embaixo (risos)… eu penso Meu Deus se um desses assim vai tentar. Mas, as vezes, acontecem umas coisas curiosas. O Arcebispo de Viena (Cardeal Christoph Schönborn)… Nós fomos colegas de ensino da Teologia; ele ensinava Teologia Dogmática e eu teologia Moral. Daí ele passou pra servir na Cúria Romana… Mas não é que ultimamente ele chegou a merecer uma repreensão do Papa anterior (Bento XVI) porque tinha tomada uma posição progressista. Daí eu penso, gente, quem sabe? Ele é um candidato forte, porque conhece bem à Cúria e é muito ligado à romanidade, etc. Aí, nesse caso, eu realmente respondo que não sei. Depois de Leão XIII, o Papa Pio X foi um Papa que do ponto de vista social foi zero. Nunca fez nada. E é um santo, segundo os Cânones da Igreja. De modo que a minha resposta aí é de uma confiança de que uma liderança evangélica prevaleça na Igreja.

EC – Sabe-se de fortes tentativas de boicote, como os dos quatro Cardeais que anunciaram recentemente um documento (dúbia) onde solicitavam que Francisco esclarecesse para a Igreja trechos da Amoris Laetitia  (Alegria do Amor, Exortação Apostólica do Papa Francisco que tem como base o resultado dos dois Sínodos dos Bispos sobre a Família, ocorridos em 2014 e 2015). Dizem estes Cardeais que a publicação do documento teria gerado uma “situação de confusão e desorientação” em grande parte da Igreja. O senhor acredita que esses quatro cardeais (aliás, três porque um faleceu recentemente) podem realmente estar ecoando um descontentamento velado dentro da Igreja?
Josaphat – A questão é a seguinte: se pode chegar a suscitar alguma coisa que seja significativa. Depois do Concílio Vaticano II, veio aquela turma dos direitistas (Marcel Lefebvre, TFP entre outros) que não tiveram recepção. E hoje em dia há uma coisa curiosa, por incrível que pareça, o jornalismo melhorou! Hoje você vê que acontece uma coisa de forma muito mais dinâmica do que antigamente, de modo que já existem elementos na sociedade que sejam mais favoráveis. Então, eu acho que há caminho de uma esperança. Deve ser nossa utopia sempre, uma esperança. Eu, na realidade, estou um pouquinho mais preocupado em organizarmos hoje lideranças. Por exemplo, aqui no Brasil até as eleições de 2018 nós precisamos fazer uma organização com uns postulados mínimos para consertar a política no Brasil. Não tem que ter dúvidas de que o financiamento tal como estava sendo feito no Brasil é o sistema norte-americano, que é a destruição da democracia. Até que ponto a gente não poderia já ter assim, de uma maneira desligada de todo personalismo, um programa concreto proposto ao eleitorado e exigir vamos cumprir isso aí?

EC – Se antes falamos em paradoxo, agora temos uma ironia. Movimentos conservadores que apoiaram os silêncios impostos à vários teólogos progressistas como o então Frei Leonardo Boff e Hans Küng chegaram a espalhar cartazes por Roma, acusando o Papa de ser contraditório pois, se por um lado estabeleceu o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, por outro estaria “perseguindo” uma ala da Igreja. O senhor acha realmente que Francisco está sendo impiedoso?
Josaphat – A misericórdia nunca pode ser exigida, realizada virtuosamente, se você não leva em conta o bem comum. Esta é a questão. De modo que eu não posso chegar e por ‘misericórdia’, por exemplo, dizer vou soltar esses presos todos aí. Se eles são perigosos, a misericórdia é buscar a recuperação desses ditos criminosos. Então, exatamente, a atitude do Papa deve levar em conta duas coisas, no caso que você falou: primeiro, o mal que eles (conservadores e tradicionalistas) fazem ao bem comum da Igreja – e isto deve-se opor e, por outro lado, a parte de que eles não estejam sendo totalmente maus, que possa até se abrir um diálogo. Mas aí vem a questão da prudência. Da prudência pastoral.

EC – Não poderia perder essa oportunidade de ao conversar com o senhor, uma vez que o jornal Extra Classe é um veículo mantido por professores, falar sobre o seu último livro, lançado no ano passado: Tomás de Aquino e Paulo Freire.  No seu livro, o senhor equipara esses dois personagens como pioneiros da inteligência e mestres geniais. Poderia nos falar um pouco sobre isto?
Josaphat – O livro propõe compreender o mundo de hoje a partir desses dois grandes personagens. Para mim há duas coisas que eu admiro nesses dois homens: é que tanto um quanto e outro viveram em uma hora em que a humanidade entrava em uma nova fase cultural e deram uma resposta para isto. É curioso, no primeiro milênio, quase com a humanidade ocidental engatinhando, se fundam as universidades; se descobre o papel de coisas que fizeram que, culturalmente, houvesse uma novidade no conjunto; as pessoas interpelando as categorias sociais, profissões, a religião… Nessa hora, Tomás de Aquino teve essa forte intuição. Por exemplo, na Suma Teológica ele levanta a questão do estudo como uma virtude humana. O ser humano deve estudar pra se realizar como homem dentro da sua vocação. Depois, então, ele estuda o que é inteligência, o que é transmitir um conhecimento. Quer dizer, respondeu a grande questão da Europa. Ele compreendeu bem tudo isso aí. E Paulo Freire, no nosso tempo, ele entra pelo ensino e vai vendo aí como deve ser hoje a formação do que é ensinar. De modo que eu procurei mostrar isso e dizer assim dois gênios que entenderam o seu tempo, as necessidades e valores, as possibilidades, o que há de positivo e negativo. A minha ideia foi essa.

EC – Já que falamos de Paulo Freire, existe hoje um movimento chamado Escola sem Partido. Inclusive, em meio a uma coleção de faixas estapafúrdias que ilustraram os protestos contra a então presidente Dilma Rousseff (PT) uma chamou a atenção: “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”. O que dizer disto, Frei Josaphat?
Josaphat  – A primeira coisa interessante é que é gente que não conhece Paulo Freire e que pra conhecer teria que fazer um esforço enorme para entender a realidade do seu pensamento e de sua contribuição. Há muita gente que está trabalhando com a ideologia como se fosse cultura. Para mim, é exatamente esse o erro total. Eu conheci o Paulo Freire em todas as etapas da vida dele. A minha colaboradora, Lilian Contreira, foi secretária do Paulo Freire, de modo que nós o conhecemos bem. Gente, quantas vezes eu conversei com o Paulo Freire procurando comparar a doutrina dele com a dos grandes mestres em pedagogia de hoje! Agora ninguém pode imaginar a penetração de Paulo Freire na Europa, a quantidade de escolas, prédios com o nome dele. Então, pra dizermos assim, hoje a maior desgraça da humanidade é a ditadura da ideologia. Se você pegar o meu nome na internet, tá lá que eu sou comunista.

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