CULTURA

Baiacu: a nova publicação de Laerte e Angeli

Os cartunistas reuniram colegas na Casa do Sol, que pertenceu a Hilda Hist, para lançar uma publicação a partir de experimentos de residência artística
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 14 de novembro de 2017

Foto: Rafael Roncato/Casa do Sol / Divulgação

Foto: Rafael Roncato/Casa do Sol / Divulgação

Dois dos mais importantes cartunistas da atualidade, Laerte e Angeli se reúnem novamente para mais uma vez marcar a história dos quadrinhos brasileiros. Lançam nesse próximo dia 18, sábado, no Sesc Ipiranga, em São Paulo, a revista Baiacu (Editora Todavia).

Os cartunistas Laerte e Angeli, autores de Piratas do Tietê (Laerte) e Os Skrotinhos e Rê Bordosa (Angeli), entre tantos outros personagens icônicos da então cena underground que definia o estilo das HQs, que floresceu na década de 1980, por meio das revistas Chiclete com Banana e Piratas do Tietê; e mais tarde, na década de 1990, Los Três Amigos. Essa última reunia Angeli, Laerte e Glauco (morto em 2010).

Na realidade um livro de luxo, com periodicidade ainda indefinida, a Baiacu conta com mais de 300 páginas onde Laerte e Angeli não são os responsáveis diretamente por todo o conteúdo em si, mas guardiões de sua concepção e criação. Ao todo, 10 grandes artistas (entre eles dois ex-colaboradores do Extra Classe) foram escolhidos a dedo pela dupla para integrar uma residência artística, sediada na Casa do Sol, antiga casa de Hilda Hilst (1930-2004), ficcionista, cronista, dramaturga e poeta brasileiro, considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século 20), em Campinas.

Baiacu: a nova publicação de Laerte e Angeli

Foto: Divulgação

Foto: Divulgação

A proposta de uma residência artística, conceito mais consolidado na Europa e Estados Unidos, mas que começa a se solidificar no Brasil, tem o objetivo de oferecer um espaço físico para que um grupo de artistas possa conviver durante um determinado período, sendo um incentivo para a produção individual ou coletiva e também de intercâmbio entre os artistas. A Casa do Sol, mantida pelo Instituto Hilda Hilst, além de sua infraestrutura simbolicamente acabou contribuindo com o novo projeto de Laerte e Angeli pois nas décadas de 70 e 80, a Casa do Sol foi frequentada por grandes nomes da intelectualidade brasileira, como o Maestro Jose Antônio de Almeida Prado, os escritores Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, a poeta Olga Savary, os críticos Léo Gilson Ribeiro, Nelly Novaes Coelho, os físicos Mario Schenberg, César Lattes e Newton Bernardes, o diretor de teatro Rofran Fernandes, a pintora e gravurista Maria Bonomi entre outros.

Projeto Baiacu

Baiacu, além de uma nova publicação, é de fato, conforme os organizadores, um experimento artístico. Foram, ao todo, vinte dias de trabalhos no mês de julho passado, onde os artistas residentes também ministraram cursos e workshops no Sesc Ipiranga, em São Paulo, além de uma instalação criada para os espaços da unidade.

A residência reuniu por duas semanas na Casa do Sol os artistas Eloar Guazzelli, Fabio Zimbres, Pedro Franz, Juliana Russo, Rafael Sica, Mariana Paraizo, Gabriel Góes, Laura Lannes, Power Paola (Colômbia) e Ilan Manouachse (Grécia). Orientados por Laerte, Angeli e Rafael Coutinho (filho de Laerte), os artistas conceberam e produziram a revista, que teve ainda a participação dos escritores Bruna Beber, André Sant’Anna e Daniel Galera.

Para o gaúcho radicado em São Paulo Eloar Guazelli e o paulista radicado no Rio Grande do Sul Fabio Zimbres, que colaboraram com o Extra Classe em seu início, no final dos anos 90, a residência artística para a produção da Baiacu foi algo muito singular. Rafael Sica, atual colaborador do Extra Classe, também participou do coletivo.

Segundo Zimbres, suas lembranças dos doze dias de trabalho na Casa do Sol “são sempre bem confusas porque não chegamos a criar nenhuma rotina. Não ficamos o tempo todo fechados em casa, havia muita movimentação”.
Para ele isso foi uma coisa boa. “Foi mais relaxado e nossas conversas iam para todo o lado e não para a revista em si”, destacando que acredita que isso acabou filtrando para a revista. “Foram coisas individuais, visões distintas sobre a vida, o mundo e sobre o que pode ser quadrinhos e o que pode ser uma revista, mas que foram geradas em parte pela convivência”.

Zimbres ainda diz que de certa maneira estar lá representou um pouco o porque dele fazer desenhos. “Gosto do trabalho solitário, no atelier, isso é importante, mas para mim tem também um peso a coisa compartilhada. Lembra que passar horas desenhando com amigos é uma dimensão desse ofício que os artistas não praticam muito e “todas as vezes que eu faço isso, me renova essa emoção pelo desenho que pode ser uma coisa tão coletiva quanto a música”.

Para Eloar Guazelli, mais conhecido por seus amigos como Alemão Guazelli ou simplesmente Guazelli, a experiência foi uma grande honra e responsabilidade, que “ao nos colocar em intensa convivência permitiu a mais saudável das contaminações, uma troca de experiências incrível, além de reencontrar velhos amigos e parceiros”. Para ele, no que chama mítica Casa do Sol, descobriu que o amor obsessivo pelo desenho não era uma característica pessoal, “eu estava no espelho e foi incrível descobrir que num ano de tanta covardia e iniquidade, quando a atividade criadora e criminalizada e o país vive uma crise aguda de autoestima o pulso ainda pulsa no amor de vários artistas por seu ofício”.

Guazelli destaca que o resultado pode ser comprovado em um livro revista que vai ficar como uma marca positiva de criação “num ano tão desgraçado. Não falo por meu trabalho… falo do resultado do empenho de profissionais que conseguiram a proeza de transformar um confinamento em algo muito melhor que mais um infame reality show”. Guazelli acredita que o projeto Baiacu prova que dá para transcender contextos e egos para criar uma obra comum e inspiradora. “Foi intenso, mas me fez bem participar”, conclui.

Entrevista | Laerte

Baiacu: a nova publicação de Laerte e Angeli

Foto: Divulgação/Rafael Roncato

Foto: Divulgação/Rafael Roncato

Extra Classe – Porque Baiacu?
Laerte – Baiacu é um nome lindo, e isso deveria bastar, mas – como se não bastasse -, o baiacu (ou alguém que se faz passar por ele) tem o ritual de acasalamento mais sublime do universo. Ele esculpe na areia do fundo do mar uma mandala perfeita, usando seu corpo como cinzel. Isso nos ensina e inspira muitíssimo.

EC – Para você, como foi a experiência de montar uma residência artística, com várias cabeças talentosas para conceber uma nova revista?
Laerte – Pra mim, sozinha, seria impossível, eu não monto nem o jabuti da Lego. Sem o concurso das cabeças do Angeli, da Carol, do Rafael, do André Conti e do Bruno Giarello, as cabeças seguintes não teriam se encontrado e não teriam produzido o material pra mover mais cabeças ainda, como uma mandala progressiva. Como um baiacu.

EC – O projeto Baiacu vai ter continuidade?
Laerte – Sim, já estamos planejando os movimentos seguintes, seja uma Baiacu 2 mais ou menos no formato dessa, sejam outras alternativas.

EC – O Laerte da época do Piratas do Tietê para a Baiacu mudou muito, além de passar a ser a Laerte?
Laerte – Acho que não. Sou uma mulher experimental, mas a fórmula ainda é a mesma.

Entrevista | Angeli

Baiacu: a nova publicação de Laerte e Angeli

Foto: Divulgação/Rafael Roncato

Foto: Divulgação/Rafael Roncato

Extra Classe – Como foi ou está sendo o processo de sair de um gibi na linha undergound para uma revista como a Baiacu?
Angeli – A revista Chiclete com Banana que levava essa batida mais underground rolou na década de 80. A Baiacu acontece 30 anos depois. É uma revista-livro experimental. Fala de assuntos atuais. Arrisco a dizer que talvez não tenha nada em comum com as revistas antigas, a não ser ao abrir caminhos para novas empreitadas e apresentar novas possibilidades para novos discursos. Talvez a filosofia underground possa se repetir aí.

EC – Para você, como foi a experiência de montar uma residência artística, com várias cabeças talentosas para conceber uma nova revista?
Angeli – Inusitada. No entanto, os artistas convidados são pessoas que admiramos muito e tínhamos certeza de que coisas bacanas sairiam dali.

EC – Angeli continua em crise?
Angeli – Sempre.

EC – O Angeli da época do Chiclete com Banana para a Baiacu mudou muito?
Angeli – Muitíssimo. A começar pelo traço até a visão de mundo que acompanhou a evolução de tudo. Já não sou mais um moleque, envelheci e fiquei mais rabugento, se é que isso é possível.

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