JUSTIÇA

Juristas condenam julgamento político de Lula

Especialistas em Direito e intelectuais que participam de debate sobre processo contra ex-presidente denunciam falta de provas e violações do Estado Democrático de Direito
Por Stela Pastore / Publicado em 22 de janeiro de 2018
Pleno do TRF4, que será palco do julgamento de Lula em segunda instância: restituição do Estado Democrático de Direito ou Tribunal de Exceção?

Foto: Sylvio Sirangelo/TRF4

Pleno do TRF4, que será palco do julgamento de Lula em segunda instância: restituição do Estado Democrático de Direito ou Tribunal de Exceção?

Foto: Sylvio Sirangelo/TRF4

Dezenas de juristas e intelectuais brasileiros se reúnem nessa segunda-feira, 22, em Porto Alegre, para denunciar as violações do Estado Democrático de Direito e as ameaças à democracia pela inconsistência jurídica e partidarização do processo que estará em julgamento nesta quarta-feira, 24, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). A 8ª Turma analisará recurso do ex-presidente e Luiz Inácio Lula da Silva à condenação em primeira instância, pelo juiz federal Sérgio Moro, a nove anos e seis meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex no Guarujá. “Inúmeros juristas, como eu, realizaram a leitura detalhada da sentença do juiz Sérgio Moro e não encontramos provas de que o ex-presidente tenha praticado os crimes que lhe são imputados pela acusação. Se essas provas existissem deveriam constar expressamente na sentença. Se não há provas da prática de crime no processo, impõe-se a absolvição de Lula. Essa é a nossa expectativa em relação ao julgamento no TRF4”,  registra a professora de Direito Penal da Ufrgs, Vanessa Chiari Gonçalves.

Organizado pela Frente Brasil de Juristas pela Democracia, o grupo defende os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, que determinam que não poderá haver condenação sem que todas as formalidades legais sejam estritamente cumpridas, com amplo acesso à defesa. O encontro inicia às 18h, no auditório da Fetrafi (Rua Fernando Machado, 820), e repudia medidas autoritárias próprias de um Estado de Exceção.

Politização do judiciário

Margarida Camargo: politização do judiciário

Foto: Divulgação

Margarida Camargo: politização do judiciário

Foto: Divulgação

Para Margarida Lacombe Camargo, mais do que a culpa ou a inocência de alguém, está em jogo a vida política do país.  Para a doutora em Direito pela Universidade Gama Filho e coordenadora do Observatório da Justiça Brasileira, houve pressa em colocar na pauta na segunda instância, antes de outros processos que estavam na fila, de forma que o resultado possa retirar da disputa eleitoral o principal líder da esquerda no país, e que vem liderando as pesquisas de opinião. “Não é por outra razão que o que mais vem repercutindo na mídia são as consequências do julgamento nas eleições. Esse quadro dá razão ao que chamamos de politização do Judiciário. Utiliza-se o Direito para afastar do campo eleitoral o inimigo político”, ressalta.

Autora do livro Hermenêutica e Argumentação (Ed. Renovar, 2003), Margarida se espanta com itens usados no processo. “Vemos profissionais do Direito, inclusive juízes, conferirem interpretação além dos limites traçados pela hermenêutica jurídica e pelos limites funcionais do Estado, quando se arvoram em criar, por exemplo, tipos legais novos, como é o caso do “ato de ofício indeterminado” e da “propriedade de fato” encontrados na sentença do juiz Sergio Moro”.

Argumentos fantasiosos

Moreira da Silva Filho: "Quando o país perde a sua base de respeito rompe com o Estado Democrático"

Foto: Roberto Stuckert Filho/Arquivo PR

Moreira da Silva Filho: “Quando o país perde a sua base de respeito rompe com o Estado Democrático”

Foto: Roberto Stuckert Filho/Arquivo PR

Para o integrante da Frente Brasil de Juristas pela Democracia e professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, José Carlos Moreira da Silva Filho, o país assiste à interferência no processo eleitoral e democrático sem nenhuma fundamentação legal. “Quando o país perde sua base de respeito, e isso já ocorreu no processo fraudulento de impeachment da presidente Dilma, viola a regra básica que sustenta o Estado Democrático de Direito, que é a própria Democracia”, alerta.

“É algo fantasioso atribuir uma propriedade que não está registrada no nome do ex-presidente Lula, da qual ele nunca teve posse, e na época que era presidente nem existia. Só tem a palavra do réu confesso preso, que não tem a obrigação de dizer a verdade e há vários meses vinham negando essa versão”, discorre José Carlos. Os juristas questionam desde a completa ausência de provas até a competência da jurisdição do julgamento relativos a assuntos ligados à Petrobras, que deve ser do Ministério Púbico Estadual.

“Quando se tem um Judiciário que não respeita esses limites, condições e garantias e se arvora a ser aquele que vai atender o clamor popular instigado pelos meios de comunicação, esse juiz deixa de cumprir sua tarefa central de ser a voz contramajoritária que zela pelo respeito às leis e à Constituição. Infelizmente não assistimos a isso no país”, lamenta o jurista.

Punitivismo vingativo

Luiz Eduardo Soares: estão em jogo as garantias individuais

Foto: Roberto Navarro/ ALESP

Luiz Eduardo Soares: estão em jogo as garantias individuais

Foto: Roberto Navarro/ ALESP

Para o antropólogo, cientista político e escritor Luiz Eduardo Soares, o que está em jogo nesse julgamento é muito mais do que uma decisão sobre a culpabilidade ou não de um homem, é o Estado Democrático de Direito. “Estão em jogo as garantias individuais e a possibilidade ou não de interrompermos esse ciclo de violações que tem caracterizado o punitivismo vingativo brasileiro encarnado no Ministério Público e em alguns membros do judiciário”.

Soares ressalta que é o risco para a democracia que promove a unidade desse movimento de intelectuais e juristas, independente do voto nas eleições de 2018, das relações com Lula, da aprovação ou reprovação de seus atos.  “Estamos diante de uma situação crítica: as instituições estão com a sua legitimidade corroída. Há muito ceticismo da sociedade e, portanto, não é uma hora de brincar com a democracia e colocá-la sob risco”, observa Soares.

O réu como inimigo

"Em um modelo de persecução penal, o réu não é visto como sujeito de direito, mas como inimigo e alvo", alerta Bustamante

Foto: Enamat/ Divulgação

“Em um modelo de persecução penal, o réu não é visto como sujeito de direito, mas como inimigo e alvo”, alerta Bustamante

Foto: Enamat/ Divulgação

“Para punir alguém é preciso juízo de culpabilidade, são necessárias provas, imputação clara na lei, enquadramento num delito pré-existente, devidamente configurado, caracterizado, provado. Esse sentido se perde um pouco quando a justiça brasileira se partidariza e abandona sua função de magistrado para atuar como uma espécie de protagonista do direito penal do inimigo, num modelo de persecução penal e onde se vê o réu não como sujeito de direito, mas como uma espécie inimigo, como um alvo”, registra o professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Thomas Bustamante. Para ele, o que temos nesse caso é a continuação de um processo que poderia ter sido abortado com mais facilidade em 2015 e 2016, antes do impeachment, quando iniciou a desconstrução das amarras que o Estado de Direito é capaz de impor às forças políticas que atuam na sociedade.

Segundo o jurista, é desnecessário ler os autos para constatar que Sérgio Moro não atua como magistrado, mas como parte, e se coloca mais como vingador e não como magistrado. “Esse sujeito não tem autoridade moral para dizer que Lula é inocente ou culpado. Ele está numa posição de alguém que deverá apresentar explicações muito graves se Lula for inocentado. No fundo, virou uma espécie de ator institucional, alguém que ganha ou perde. Ele se colocou para a mídia e a sociedade dessa maneira. Teve todas as oportunidades de trazer o processo para a legalidade. Mas construiu uma série de artefatos estrategicamente concebidos para poder se manter como juiz do processo e poder mobilizar os outros juízes a seu favor, e acreditava que conseguiria mobilizar inclusive as massas. A pesquisas mostram que não consegue mais. Quanto mais Sérgio Moro atua contra Lula, quando mais Lula é condenado, mais cresce a popularidade de Lula e a sociedade começa a duvidar da justiça e quando isso acontece, esse princípio de Estado de Direito fica enfraquecido”, sustenta Bustamante.

Ele vê com muito pessimismo o processo que iniciou com a destituição da presidente Dilma sem provas, e o fascismo alimentado por esse tipo de discurso e a prática judicial. “Esse fascismo está num patamar mais difícil de ser revertido do que estava em 2015. Espero que possamos revertê-lo sem traumas maiores do que vivemos nesse processo”.

 

ENTREVISTA | Magda Barros Biavaschi

“Há juízes em Porto Alegre?”

"Há vozes que afirmam que eleição sem Lula será uma farsa. Daí meu desejo e minha crença de que os desembargadores do TRF4 farão um julgamento justo, à luz do Direito, recusando-se a se aliar a uma geopolítica que massacra nossa soberania"

Foto: Unicamp/ Divulgação

“Há vozes que afirmam que eleição sem Lula será uma farsa. Daí meu desejo e minha crença de que os desembargadores do TRF4 farão um julgamento justo, à luz do Direito, recusando-se a se aliar a uma geopolítica que massacra nossa soberania”

Foto: Unicamp/ Divulgação

Para a desembargadora aposentada do TRT4, Magda Barros Biavaschi, “os artífices e apoiadores do golpe em andamento pretendem é retirar a força normativa da Constituição de 1988”. Doutora e pós-doutora em economia do trabalho pela Unicamp, Magda é pesquisadora no Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) e professora convidada em programas de pós-graduação da Unicamp. Nesta entrevista, a magistrada recorre a diversos argumentos para expressar sua crença na Justiça contra a arbitrariedade e cita o clássico O moleiro de Sans-Souci em que um operário injustiçado exclama ao final da absolvição: “Há juízes em Berlim!”.

Extra Classe – Qual o significado do processo contra o ex-Presidente Lula?
Magda Biavaschi – Vivem-se tempos regressos em nível mundial. Aliás, algo impensável há poucos anos atrás. Nesse cenário, os direitos sociais duramente conquistados e as instituições públicas com a incumbência de fiscalizar sua aplicação e de concretizá-los na sentença sofrem profundo abalo. No Brasil, país de resiliente herança escravocrata, essa onda regressiva própria de um capitalismo hegemonizado pelos interesses das finanças até então resistida encontrou na tecitura social condições favoráveis ao seu aprofundamento. Tanto que seus efeitos deletérios atingem, hoje, todas as esferas da sociabilidade humana. O cenário é de uma hecatombe sem precedentes, verdadeiro “assalto de moinhos satânicos”, para usar a metáfora de Polanyi (o húngaro Karl Polanyi, 1886-1964, filósofo e historiador da economia, autor de A Grande Transformação (1944), que retrata as convulsões sociais e políticas ocorridas na Inglaterra durante a ascensão da economia de mercado).

EC – Que outros sinais dessa regressão a senhora vê no país?
Magda – O impeachment da presidente Dilma Rousseff e as reformas Trabalhista e da Previdência são expressões dessa onda que, aliás, não passou pelo crivo do voto popular. O desemprego atinge níveis alarmantes. A informalidade cresce de forma avassaladora. A terceirização se espraia, ampliando as inseguranças no mundo do trabalho. As desigualdades se aprofundam, colocando em risco a soberania e a democracia. É disso que se trata. O que os artífices e apoiadores do golpe em andamento pretendem é retirar a força normativa da Constituição de 1988.

EC – Por quê?
Magda – Deixando claro que o Direito não se interpreta em tiras (citando o ministro do STF, Eros Grau, 2002) penso que o processo contra o ex-presidente Lula precisa ser compreendido e analisado a partir desse cenário e desse enfoque. Condenado em primeiro grau sem crime e sem provas, trata-se de um julgamento próprio de um Estado de Exceção. Não à toa, o cineasta Costa Gravas, diretor de Sessão Especial de Justiça, assinou o manifesto/denúncia do desrespeito ao estado democrático de direito que o processo contra o ex-presidente Lula representa. Esse filme, Sessão Especial de Justiça, relata um julgamento de exceção na França de Vichy (Governo de Vichy, regime político instaurado na França durante a Segunda Guerra Mundial, de 1940 a 1944) em que magistrados condenarem à morte cidadãos já condenados com penas menores, o que somente foi possível com aplicação retroativa da lei, verdadeira afronta ao estado de direito.

EC – Por que a condenação de Lula em primeiro grau foi uma afronta ao Direito?
Magda – O julgamento em primeiro grau de Lula afronta o Direito e desrespeita a Constituição. Mas há forças que apoiam essa decisão. Forças, aliás, contrárias a um conjunto de políticas estruturais que, com muitas dificuldades, foram responsáveis por uma caminhada de início de superação das desigualdades que marcam nossa tecitura social. Medidas que inegavelmente ampliaram as possibilidades de acesso aos bens da vida aos mais necessitados, que habitam a base da pirâmide social, acesso esse historicamente sonegado. Trata-se de retirar a força normativa da Constituição de 1988, de impedir que um líder popular possa ser candidato em um processo eleitoral, em afronta à democracia e à soberania. Trata-se de nos subordinarmos aos desígnios do mercado. Ou, como recentemente alertou a professora doutora Herta Däubler-Gmelin, ex-ministra da Justiça da República Federal da Alemanha: “Em suma, a confirmação da sentença não prejudicaria apenas a credibilidade e eficácia do combate à corrupção, mas ao mesmo tempo revelaria a inexistência do Estado de Direito no Brasil.

EC – Como a senhora avalia o movimento de resistência interno e externo contra esse movimento de regressão?
Magda – Mas há vozes que começam a se colocar contra esse movimento retrógrado. Há vozes que exigem que o crescimento econômico seja retomado para que os cidadãos voltem a ter emprego, crédito, esperança e dignidade. Há vozes que afirmam que eleição sem Lula será uma farsa. Daí meu desejo e minha crença de que os desembargadores do TRF4 farão um julgamento justo, à luz do Direito, recusando-se a se aliar a uma geopolítica que massacra nossa soberania. Até porque os cidadãos brasileiros não querem ser submetidos a um tribunal de exceção. Por isso, resistem em Porto Alegre e em várias capitais do país e o fazem porque esperam que o TRF4 concretize a Justiça, permitindo que se possa afirmar como fez o moleiro: “Há Juízes em Berlim”.

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