CULTURA

Os escritores segundo Elias Canetti

Livro revela textos inéditos que o autor – um dos mais vigorosos do pós-guerra – queria que fossem mantidos no anonimato até 2024
Por Gilson Camargo / Publicado em 18 de abril de 2018
Canetti: avesso a rótulos, autor transita entre gêneros literários

Foto: Divulgação

Canetti: avesso a rótulos, autor transita entre gêneros literários

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Para o escritor e ensaísta búlgaro Elias Canetti (1905-1994), ícone das gerações de amantes da crítica literária do pós-guerra e um dos intelectuais europeus mais relevantes e controversos por seu rigor literário e posições extremadas, não há meio termo quando se trata de avaliar livros e autores sob a perspectiva da leitura enquanto matéria-prima para a escrita.

Uma postura moderada ou pretensamente sóbria nada têm a ver com literatura. O que importa é amar ou odiar o autor e sua obra, dizia. O pensamento de Canetti, nesse sentido, está sintetizado em Über die Dichter, coletânea de aforismos, notas de leitura e conferências, organizada por Penka Angelowa e Peter von Matt, publicados no Brasil pela editora José Olímpio sob o título Sobre os escritores. O livro coincide com outros dois lançamentos que reúnem textos inéditos do autor, Festa sob as bombas – Os anos ingleses e Sobre a morte, ambos pela editora Estação Liberdade. Dos textos bíblicos ao pensamento de Freud, Kafka, Joyce, Pessoa e dos grandes filósofos, poucos escapam ao rigor da crítica ou de uma fina ironia destiladas por Canetti, que não oculta suas preferências: “Experiência de vida não é muito, e mesmo que não existisse vida, poderia ser aprendida somente por meio dos romances, de Balzac, por exemplo”, elogia.

São anotações de leituras que o autor queria que fossem mantidas inéditas até 2024, conforme pediu em seu testamento, em 1994, ao entregar seus escritos ao acervo da Biblioteca de Zurique com a condição de que só fossem publicados três décadas depois. Os textos inéditos equivalem a dez vezes a obra conhecida do autor. Em 2005, ano do centenário do escritor, sua filha Anna decidiu divulgar parte desse acervo para responder às críticas da ex-amante de Canetti, a escritora irlandesa Iris Murdoch, que havia esboçado um retrato negativo do intelectual em seus romances, qualificando-o como “misógino prepotente”.

A publicação antecipada de Party im Blitz acabou revelando detalhes do tempestuoso relacionamento, mas acima de tudo reascendeu o interesse sobre a obra de Canetti, Nobel de Literatura em 1981 com o ensaio filosófico-etnográfico Massa e poder. Ao se debruçar um a um autores clássicos e mesmo escritores de língua alemã pouco conhecidos no Ocidente, o autor usa a erudição para expressar todo o seu amor pela literatura, como repara Ivo Barroso na apresentação de Sobre os escritores: o livro traz ao leitor brasileiro uma expressiva amostra da riqueza literária de Canetti sobre poetas, escritores e vultos notáveis que enriqueceram a sua própria experiência.

Canetti transitava por gêneros literários com a mesma desenvoltura com que se relacionava com os idiomas e os países pelos quais transitou desde a infância. Escrevia em alemão. Mas sua primeira língua fora o ladino, uma variante medieval do castelhano que os judeus expulsos da Espanha em 1492 adotaram no sul europeu e no norte da África; depois o búlgaro e o inglês. Descendente de judeus sefarditas e de monarcas austro-húngaros, passou a juventude na Áustria, na Alemanha e na Suíça, antes de morar na Inglaterra. Sua principal obra, o romance Auto de Fé, mostra um homem que só tem interesse no contato com livros e termina se casando com a sua governanta, que o explora até sua autodestruição. Avesso a todo tipo de especialização, abandonou a carreira de romancista e passou a explorar o ensaio, produzindo Massa e poder, e outros segmentos, como evidencia este Sobre os escritores.

Como se fosse a primeira vez

Imagem: Reprodução

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Com um estranho misto de admiração e desdém, Canetti passeia pelos clássicos gregos e latinos e mede o pensamento de grandes escritores das principais literaturas, como afirma Ivo Barroso no prefácio de Sobre os escritores, “sem qualquer intenção de crítica literária, de julgamento de valor, mas numa espécie de toma e larga, de um puxão apropriativo e de um afastamento repulsivo, nesse gesto meio inconsequente de quem lê e depois atira o livro fora”:

Bíblia
A resistência obstinada contra a Bíblia, que durante décadas me manteve afastado dela, deve-se ao fato de eu nunca ter querido ceder à minha origem. Não importa em que parte eu abria a Bíblia, ela sempre me parecia familiar.

Filósofos
Filósofos nos quais nos dispersamos: Aristóteles. Filósofos com os quais oprimimos: Hegel. Filósofos para se gabar: Nietzsche. Para respirar: Chuang Tse.

Montaigne
O que há de mais belo em Montaigne é que ele não se apressa. (…) Seu interesse por si próprio é inabalável, ele nunca tem vergonha de sua pessoa, não é um cristão. (…) Ficar consigo mesmo é para ele uma espécie de liberdade.

Cervantes
Dostoiévski sabe muito da humilhação, é o seu verdadeiro conhecedor. Sinto-me mais próximo do grande conhecedor do orgulho, Cervantes. Para mim, este é o único critério de uma tendência épica: conhecer a vida até em seus aspectos mais tenebrosos e mesmo assim ter-lhe um amor apaixonado, um amor que nem é desesperado, pois mesmo em todo o seu desespero é intocável.

Hobbes
Entre os pensadores que não estão presos a uma religião só me impressionam aqueles cujo pensamento é suficientemente radical. Hobbes está entre eles; no momento é o mais importante para mim.

Goethe
Se, apesar de tudo, permaneço vivo, devo isso a Goethe, da forma que só se deve a um deus. Não é uma obra, é o estado de espírito e o zelo de uma existência cumprida que subitamente me arrebataram. O que frequentemente parece enfadonho em Goethe é que ele é sempre completo.

William Blake
Somente desde que li o poema de Blake sei o que é um tigre. Stendhal Acho que não existe ninguém a quem eu ame tanto quanto a Stendhal. Ele é o único que invejo. Talvez pudesse ser parecido com ele, se eu não fosse eu.

Flaubert
Flaubert – hipopótamo que geme.

Dostoiévski
É preciso lembrar que Tolstói chegou aos 82 anos e Dostoiévski só aos 59. O poeta cuja arte consiste em sua falta de distanciamento: Dostoiévski.

Tolstói
Ainda prefiro Deus a Tolstói. Às vezes penso que ele se agarra a Deus para não assumir a sua fé em si próprio, para não se dar um peso excessivo.

Nietzsche
Os ataques de Nietzsche são como um ar venenoso, mas um ar que é inofensivo para mim. Inspiro e expiro este ar com orgulho e desdém e lamento pela imortalidade que o aguarda.

Freud
Freud só se tornará interessante depois de ficar totalmente esquecido durante muito tempo. Se eu fosse Freud, sairia correndo de mim mesmo.

Proust
Não quero jamais me render aos adjetivos, mesmo aos triplos. Eles são o que há de oriental em Proust, o prazer pelas pedras preciosas. Estas não me importam absolutamente, pois amo todas as pedras. (…) A sociedade, em que Proust encontrou o seu caminho, o seu esnobismo, foi sua maneira de experimentar o mundo.

Robert Walser
Diante dele, Kafka empalidece. Robert Walser me toca mais e mais, especialmente em sua vida. Ele é tudo aquilo que não sou: desamparado, inocente e, de uma maneira sedutoramente pueril, genuíno. Ele é genuíno sem atacar a verdade, ele se torna verdade ao rodeá-la. (…) Ele quer ser pequeno, mas não suporta ser acusado de pequenez.

Kafka
Kafka realmente carece de qualquer vaidade de poeta, jamais se gaba, não sabe se gabar. Enxerga-se como sendo pequeno e anda com passos pequenos. (…) Não existe nada na literatura mais recente que nos torne tão modestos. (…) Tornamo-nos bons quando o lemos, mas sem ter orgulho disso. Para ele, os mandamentos se tornam dúvidas. De que te envergonhas tanto ao ler Kafka? – Envergonhas-te da tua força.

Musil
Diante de Kafka, estou prostrado, Proust me preenche, Musil é, para mim, exercício espiritual.

James Joyce
Os mitos representam mais para mim do que as palavras, e é o que mais profundamente me diferencia de Joyce.

Fernando Pessoa
Como posso crer que, durante trinta anos, fui contemporâneo de Pessoa? No fundo, nunca nada me importou mais do que me dividir – como pessoa – em alguns poucos personagens, aos quais me apego coerentemente.

Sartre
Jamais o considerarei um poeta, e sim um analista (…). Sempre me repugnou o seu “engajamento” como um tipo de atividade. Nenhuma de suas formulações foi um pensamento. Nada seu foi novo. Ele tinha logo uma resposta, que existia já antes da pergunta.

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