AMBIENTE

Carne ecológica, mas só para inglês ver

Com proliferação da enfermidade da “vaca louca”, sem falar na ameaça da febre aftosa, a criação de gado com alimentação 100 % natural do pasto ao uso de homeopatias apontam para um novo estilo de pecuária
Por Paulo César Teixeira / Publicado em 31 de julho de 2001

Foto: Reprodução

“A proposta do boi ecológico é boa, mas é preciso verificar se, no final das contas, ela não acabará beneficiando só as grandes empresas do agrobusiness”.

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O discurso caberia na boca de um militante xiita do movimento ecológico, do tipo que invade McDonald’s ou ateia fogo em plantações de transgênicos.

“O consumidor está preocupado com a segurança alimentar. Ele quer também garantias de que o alimento que está ingerindo não está comprometido com nenhum tipo de agressão ao meio ambiente.”  Mas quem fala é o presidente do Sindicato Rural de Pelotas, Roberto Zago.

Sinal dos tempos: um apetitoso mercado está transformando os pecuaristas da região sul do Estado em ferrenhos defensores da natureza.

Acuados com o mais recente surto de febre aftosa, que abalou as exportações brasileiras, nossos criadores de gado estão rezando a cartilha verde para tentar recuperar a contabilidade.

E o motivo é simples: do outro lado do Oceano Atlântico, apavorado com o surgimento de doenças transmitidas pela carne bovina, como a vaca louca, o consumidor europeu de alto poder aquisitivo agora só quer cravar o garfo em bifes acima de qualquer suspeita.

É daí que nasce a ideia do boi ecológico – o animal criado em pastagens naturais, sem o consumo de anabolizantes, antibióticos ou alimentos vegetais derivados de transgênicos.

Os produtores gaúchos planejam exportar a carne com o selo verde cravado na embalagem a partir de 2003 – tempo necessário para consolidar o sistema que começa a ser adotado.

A grande vantagem é o preço no mercado europeu, cerca de 30% superior ao da carne com resíduos químicos.

A convite da Embrapa, da Farsul e dos sindicatos dos produtores, técnicos da empresa certificadora holandesa Skal visitaram recentemente pecuaristas da região da campanha, onde estão 60% das 14 milhões de cabeças de gado do Rio Grande do Sul.

“Atualmente, a carne com certificado de produto orgânico representa de 3% a 5% das importações em 40 países da Europa e nos Estados Unidos. A expectativa é que o nicho irá se expandir, com um crescimento de 20% a 50%”, prevê o representante da Skal na América do Sul, o peruano Jaime Mendivil.

Credenciada pelo governo holandês para carimbar o selo ecológico nos produtos que desembarcam no porto de Roterdã, a Skal tenta arrebanhar adeptos do boi verde no sul do Brasil.

A ideia é incentivar projetos-piloto em Bagé, Aceguá, Lavras do Sul e Pelotas. No Uruguai, cerca de 40 produtores já aderiram à novidade. Os europeus estão de olho também nas pastagens da Argentina e consideram o cone sul do continente americano um verdadeiro “oásis” para a modalidade.

“A Europa não tem mais campos nativos. O solo está contaminado”, diz o engenheiro agrônomo Antônio Carlos Gonçalves, do Sindicato Rural de Pelotas. As raças de origem britânica Abeerdin Angos e Hereford, que ocupam nossas pastagens, são as mais adequadas para a implantação do projeto.

Gado com qualidade de vida resulta em bifes sadios

Para ganhar o selo ecológico, o gado precisa ser monitorado do nascimento ao abate. O sistema tem que obedecer a rígidas regras.

A primeira delas é a de que o boi não pode ser confinado. Esta é uma vantagem indiscutível da região da campanha, onde é costume arraigado a criação do gado dentro da vastidão da paisagem natural.

“Para ter uma ideia do que isso representa, basta citar que, nos Estados Unidos, 85% da carne consumida pela população é procedente de animais que cresceram em regime de confinamento.

Quando os holandeses olharam nossas pastagens, perceberam que estamos muito perto de receber a chancela de produto ecológico”, relata Gonçalves.

Manter o boi em seu habitat natural é importante para evitar o estresse, preconizam os adeptos da cartilha ecológica. Sim, senhor, porque o bicho não pode se submeter às agruras da vida moderna.

“Temos que pensar na qualidade de vida do animal”, exagera Zago, líder dos pecuaristas bageenses.

A Skal exige que o pasto seja adubado sem produtos químicos. É dogma. Por isso, só é permitida a aplicação de adubos de origem natural, com base em fosfato de rocha.

A empresa holandesa também expurga das receitas veterinárias qualquer tipo de antibiótico.

Nosso boi precisará ser tratado com remédios homeopáticos. Para mantê-lo saudável, a saída será prevenir as enfermidades. Formas de manejo alternativas também serão úteis para a substituição dos vermífugos convencionais.

“Um exemplo é o controle de carrapatos através da rotatividade de bovinos e ovinos. Como estes últimos não são transmissores do carrapato, reduzem drasticamente a incidência da doença na área que depois será ocupada pelo gado”, explica o economista agrícola Roberto Collares, chefe de pesquisa de pecuária da Embrapa na região sul do Estado.

Boi verde exige sistema cooperativado de produção

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O bife ecológico gaúcho terá certificação internacional para avalizar o produto

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O boi ecológico alimenta a fome de lucros dos produtores, mas o sistema também tem desvantagens. A primeira delas é a redução em 30% da produtividade. O arsenal químico hoje disponível – que inclui a utilização de herbicidas, vermífugos, hormônios e antibióticos – mantém o gado livre de doenças e apressa o abate do rebanho.

“Estamos levando o animal para o frigorífico com 14 ou 15 meses de idade. No novo sistema, teremos que esperar pelo menos até ele completar dois anos”, diz Zago, do Sindicato de Bagé.

“É evidente que um controle natural tem menor eficiência no curto prazo. Mas o preço de comercialização compensa.”, afirma Collares, da Embrapa. “A sociedade chegou a uma encruzilhada. Precisa escolher se quer rapidez no abate ou produtos de maior qualidade”, acrescenta o técnico.

Algumas dificuldades se colocam a nossos pecuaristas ecológicos. Uma é de natureza subjetiva e tem a ver com o temperamento individualista do produtor. “O gaúcho é meio arisco. Não gosta de parcerias.

Mas, para viabilizar o projeto, ele terá que trabalhar em conjunto com os outros produtores e também com os frigoríficos, que precisarão comprovar sua assepsia”, diz o engenheiro agrônomo Gonçalves.

O sistema cooperativo é necessário para dividir os custos da monitoração feita pelos técnicos da Skal em toda a cadeia produtiva. “O projeto do boi ecológico é excelente, mas não é para cabeças fracas.

É uma chance de sair da mesmice e não ficar na mão dos frigoríficos, que ditam o preço do mercado”, adverte Gonçalves. A mudança do modelo, por isso, depende da conscientização dos pecuaristas e leva tempo para ser concretizada.

“O produtor que não recebe a informação adequada termina gastando muito dinheiro para produzir uma carne problemática. O gado chega ao frigorífico com fígado e pâncreas estourados, de tanto consumir produtos químicos”, afirma ele.

Outra dificuldade para a implantação do projeto é bem objetiva. Cada produtor terá que desembolsar US$ 300/ano para pagar os técnicos holandeses.

O ecologista José Lutzenberger – um dos pioneiros do movimento ambientalista, do qual recebeu críticas ao ocupar o cargo de ministro do Meio Ambiente no governo de Fernando Collor – aprova a iniciativa dos pecuaristas e lembra que, graças a seus costumes e sistema de produção, a paisagem do pampa não foi destruída.

Mas teme pela lucratividade dos produtores e lamenta que a carne ecológica seja destinada apenas à exportação.

“A proposta do boi ecológico é boa, mas é preciso verificar se, no final das contas, ela não acabará beneficiando só as grandes empresas do agrobusiness, que dominam o mercado internacional. E é uma pena que, em vez de alimentar nosso povo, a carne sem veneno esteja sendo dirigida exclusivamente ao estrangeiro.”

O consumidor brasileiro, mais uma vez, ficará com água na boca.

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