CULTURA

Um olhar para T´angá riru

Os índios guaranis se protegem da invasão simbólica à sua cultura e tentam usar a televisão a seu favor
Publicado em 17 de dezembro de 2010

Crianças indígenas são educadas para a liberdade e passam pouco tempo diante da TV

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Numa casa de madeira onde vivem dez índios guaranis de três famílias, três homens em pé e quatro crianças sentadas no assoalho convergem seus olhares para um mesmo lugar na manhã do sábado, 20 de novembro, em Tekoá Anhetenguá, Aldeia Verdadeira, na Lomba do Pinheiro em Porto Alegre. Sem emitir palavras, apenas risos a intervalos que coincidiam com o final de uma piada em guarani, eles se divertiam com DVDs chegados do Paraguai um dia antes. Dois humoristas enfileiravam anedotas na língua que os moradores daquela casa conhecem muito bem.

Se a TV surgiu no Brasil em 1950 pegando emprestado dos índios o nome Tupi, essa foi a primeira vez que Alexandre Duarte, 36 anos, assistiu na televisão da sua sala a um programa em idioma guarani. Acostumado aos noticiários das TVs de canais abertos e aos programas esportivos em português, divertia-se com as piadas na língua mãe. A cena revela bem mais do que uma inocente tradição da vida moderna.

Nesse detalhe da vida de índios guaranis da Grande Porto Alegre está em jogo uma cultura calculada em 3 mil. Nômades, os guaranis transitam entre a tradição de sua cultura e a invasão estrangeira sob a forma de uma caixa com imagens que eles tiveram que aprender a decifrar. Mas arregimentam estratégias de defesa, estruturam sua tradição com foco nas crianças, usam a barreira da língua e começam a navegar pelo mundo da internet.

Não é a primeira vez que enfrentam invasões. Há pouco mais de 250 anos, foram desgarrados de suas terras nas Missões Jesuíticas por soldados espanhóis e portugueses. Em 6 de fevereiro de 1756, o líder Sepé Tiaraju tombaria ferido mortalmente na Metade Sul do estado. As Guerras Guaraníticas produziram um contingente de exilados. Depois de mais de dois séculos de isolamento, os guaranis tentam se integrar. Estão mudando lentamente sua forma de ver o seu mundo e o dos outros. A começar pelo uso de uma palavra nova em sua língua. T’angá riru (saco de imagens) é como chamam a TV, o que revela muito de como a concebem.

Os guaranis, antes de a energia elétrica circular pelas redes das aldeias, praticamente desconheciam a televisão. Tanto que a percebiam como algo estranho, ridículo até. Ainda hoje se perguntam como os brancos, os não-indígenas, ficam horas em frente a uma caixa cheia de gente que ninguém consegue tocar. Mas essa concepção já faz parte do passado. Os índios acompanham os noticiários, as mulheres assistem às novelas e não é mais tão incomum ver meninas de dez e 12 anos em frente à TV assistindo desenhos animados na penumbra de uma cabana.

É fato que lutam contra esta invasão branca na aldeia e por manter a riqueza de sua religião muito ligada à natureza. Preservam espaços de brincadeiras entre as crianças, educam seus filhos para a liberdade, mas a TV está ali a espreitar este mundo singelo. “Não é porque tem luz e televisão que vamos virar branco”, diz o cacique geral da nação Guarani no Rio Grande do Sul, José Cirilo Pires Morinico.

Seu nome guarani remete a uma luz mais poderosa do que aquela emitida pelo aparelho na sala de casa. Kuaray Nheery significa Sol com Vários Espíritos. O cacique José Cirilo é homem de diálogo, mas defende que o índio não pode mais se isolar da vida fora da aldeia. Sua teoria reflete uma convergência de culturas, mas também um cuidado especial com a própria tradição. Conta que seu filho mais velho aprendeu a lidar com filmadoras e ilhas de edição para construir um olhar guarani na forma de ver o mundo pela lente de uma câmera.

Resultado de um projeto com cerca de 20 anos, o filme Mokoi Tekoá Petei Jeguatrá (Duas aldeias, uma caminhada) faz um percurso pela tradição guarani e já foi premiado internacionalmente. O projeto Vídeo nas Aldeias estimulou a produção cinematográfica indígena. Jorge Morinico e outros dois autores contam, em 63 minutos, como enxergam a sua própria história. “Quando o índio pega a filmadora, fica à vontade. Aparece o que o índio pensa. O filme do branco é diferente. Muda o olhar”, acrescenta o cacique da Lomba do Pinheiro.

Mas esta cultura de contato mais profundo não pode ter apenas um caminho. Para o cacique José Cirilo, os não-indígenas têm muito a aprender com a cultura da aldeia. Diz ele que a forma de educar as crianças é um exemplo. Índio guarani jamais bate nos filhos. Prefere estimular a liberdade. Deixa brincar desde cedo com fogo e facas, ensina a tradição dos antepassados, não manda para a creche nem se livra dele na frente da TV. O culto ao deus Nhaderú na opý (casa de reza) e a língua aprendida na infância, completam a pedagogia guarani e uma barreira para as invasões simbólicas, como a TV.

A 10 quilômetros da Lomba do Pinheiro, outra aldeia luta por preservação. Em boa parte das 27 casas que abrigam 34 famílias e pouco mais de 200 moradores da Tekoá Jataitý, Aldeia do Butiazeiro, no Cantagalo, em Viamão, a TV é um dos menores problemas. Recém-conduzido ao cacique, Jenício Borges Timoteo, 32 anos, o Karapi Pápá, ou Divindade da Sorte, tem uma LCD de 20 polegadas em casa. No sábado, 20 de novembro, Jenício ligou a TV para fotografias. Seu filho de cinco anos ainda não fala português, entende algumas palavras, mas parou por alguns minutos para ver o cachorro Pluto, personagem da Disney, lidar com uma galinha e seus filhotes.

Cacique José Cirilo: não-indígenas têm muito a aprender

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Jenício conta que as crianças gostam de ver o desenho do pica-pau. Mas a cultura do artesanato, a música e a dança tratam de prevenir a debilidade da tradição. “Na minha casa, não assistimos muito à TV. Só assisto quando tem jornal. Não são todas as famílias que têm TV. Não sei se quero me acostumar”, diz.

Jenício foi o representante de sua aldeia no III Encontro Continental do Povo Guarani, em Assunção, no Paraguai, entre 17 e 19 de novembro. Voltou de lá animado. Definir a demarcação das terras na Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil, lutar por liberdade para cruzar livremente as fronteiras entre estes países, promover a integração e preservar a cultura estão na ordem do dia da grande nação latino-americana.

Criança que cresceu vendo episódios do personagem mexicano Chaves na TV e instrutor de mergulho quando morou em Santa Catarina, Jenício defende que os índios precisam resistir à seca que se anuncia e lutar para poder comer. Da viagem ao Paraguai, guardou uma imagem cinzenta. Ao passar pela rodoviária da capital Assunção, viu índios guaranis morando nas proximidades em barracos como se fossem favelados. Os guaranis costumam acampar perto de rodoviárias por dois ou três dias, mas nunca para morar em condições subumanas. “Fiquei com vontade de chorar.” A TV é o menor dos problemas.

No Brasil, calcula-se uma população de 34 mil guaranis. Destes, 2 mil, distribuídos em 20 aldeias, vivem no Rio Grande do Sul. As poucas palavras do vice-cacique, Jaime da Silva, 29 anos, o Wherá, Relâmpago em guarani, demonstram o que o índio pensa sobre a sua ideia de T’angá riru: “O Guarani quer mostrar a verdadeira cultura. Não o que pensam dela”.

Cinema de índio
Em 2006, Vherá Poty Benites da Silva, o Relâmpago Flor, 23 anos, tentara materializar um projeto de TV na Aldeia do Butiazeiro no Cantagalo. Coordenador cultural, formou um coral infantil. O projeto rendeu um CD de músicas para marcar a passagem dos 250 anos da morte de Sepé Tiaraju, uma experiência colaborativa com a equipe universitária do Grupo de Estudos Musicais do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GEM/Ufrgs), em 2008. A experiência resultou no livro com CD encartado Ivý Poty, Yva’á, Flores e Frutos da Terra. O material contém músicas e diálogos, assim como uma reflexão teórica sobre a forma de os guaranis conceberem sua cosmo-sônica.

Vherá Poty está de mudança para Santa Catarina. Será na Aldeia Amaral, em Biguaçu, perto da capital Florianópolis, que ele tentará de novo. Vherá criou uma trilha aberta na mata para mostrar o seu povo. Em três espécies de palcos distantes cerca 500 metros um do outro, queria abrir a aldeia para a visita dos brancos. Cada um dos espaços seria um canal com apresentações de dança e músicas do coral. O projeto não prosperou.

O ex-cacique do Cantagalo tenta concluir o segundo grau, montar o projeto que sempre sonhou e estudar cinema. Quer fazer com que as telas trabalhem para a cultura de seu povo. “O cinema abre muitas portas. Existe índio na história, mas só no passado. O índio era assim e não o índio é assim”, discursa.

Entre o real e o virtual
Na casa em que ele mora com a família, a televisão não tem mais lugar. Confesso fã de filmes e documentários, Vherá Poty conta que há seis meses mandou a TV embora. Sobroulhe mais tempo para visitar parentes, pensar e contar histórias à sua filha de três anos. No lugar do pica-pau na TV, a menina passou a brincar mais com o papagaio da família. “Nada de picapau azul e vermelho”, e sua sonora gargalhada na sala.

No documentário Nhandé va’e kue meme’i, Os seres da mata e sua vida como pessoas, Vherá juntou seus avós em volta do fogo para que eles contassem a relação do povo guarani com os animais da floresta. Os bichos são tratados como gente. A onça é o animal-símbolo da cultura guarani, mas ela não existe mais na mata.

Conta a lenda que um guarani, certa vez, subiu em um ingazeiro. Quem estava embaixo, pedia que ele jogasse ingás para baixo. Debochado, ele comia o fruto, jogava as cascas e ria lá de cima. Nhaderú transformou-o em papagaio.

Antropofagia da tela
Professor do Departamento de Antropologia da Ufrgs, José Otávio Catafesto de Souza convive com a cultura indígena gaúcha há 25 anos. Para ele, a tradição indígena é poderosa para impedir que a televisão represente uma ameaça.

A TV representa algum risco para os guaranis?
Não representa porque a distância de linguagem é tão díspar que as mensagens subliminares dirigidas a um público branco acabam não repercutindo na aldeia. O tempo necessário para que o guarani passe a ser um consumidor passivo da televisão é posterior ao fato de ele ter ingressado ao português. Boa parte das vezes, eles veem a TV pela sonoridade e musicalidade. Existe uma maneira interna de regular o aprendizado do português que tem um efeito de proteger da TV. Eles chegam imunizados, cheios de estratégias e alertas do que é. É claro que se observa uma repercussão. No âmago da cultura, existem dispositivos para se precaverem das invasões materiais e simbólicas.

E em relação às outras etnias?
Entre os caingangues também é assim. Eles tratam da TV como outras coisas da vida deles. Eles fazem rodas para assistir. A TV está chegando muito dessa forma coletivizada. Já têm entre os caingangues influências de igrejas, principalmente as pentecostais. Os pentecostais têm restrição à televisão. Em muitas aldeias caingangues, a religião pentecostal refreia o uso da televisão.

Os índios estariam imunes à influência da TV?
O problema trazido pela TV não é mais o canal aberto. É uma questão não mais de TV, mas de uma tela. Os efeitos negativos podem ser pequenos, na medida em que ela está chegando nas aldeias no mesmo momento que o computador e a internet. Não chegou com uma defasagem de 50 anos como foi para nós. Hoje os índios estão primeiro acessando a internet. E a tendência é que eles se apropriem dessas mídias, que eles consigam degluti-las no sentido antropofágico e fazer com que elas se transformem numa ferramenta de sobrevivência.

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