CULTURA

A história de resistência das fundações gaúchas

Por Gilson Camargo / Publicado em 26 de setembro de 2018
Servidores e movimentos sociais mantiveram mobilização em defesa das fundações e alertaram que extinção traria prejuízos para a ciência, a documentação, a gestão e conservação da biodiversidade no estado

Foto: Cássio Peres/ ALRS/ Divulgação

Servidores e movimentos sociais mantiveram mobilização em defesa das fundações e alertaram que extinção traria prejuízos para a ciência, a documentação, a gestão e conservação da biodiversidade no estado

Foto: Cássio Peres/ ALRS/ Divulgação

O livro-reportagem Patrimônio Ameaçado (Já Editores, 2018, 200p.), do jornalista Cleber Dioni Tentardini, relata o processo de extinção de oito fundações públicas estaduais e de uma empresa estatal pelo governo de José Ivo Sartori (MDB) e a luta dos movimentos de resistência que se mantêm e ainda questionam na Justiça a decisão – amparada pelo parlamento gaúcho – de liquidar o patrimônio público do estado numa única cartada. E constata que, para além do discurso vazio da austeridade, não existem argumentos razoáveis para o encerramento das atividades das fundações de Ciência e Tecnologia (Cientec), Piratini (rádio e tevê públicas), de Economia e Estatística (FEE), de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan), Zoobotânica (FZB), de Recursos Humanos (FDRH), de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps) e Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (Corag).

A obra resgata a história de pioneirismo dessas instituições e mostra que a extinção pura e simples, feita de forma improvisada, com a distribuição de suas atribuições, serviços e funcionários estáveis para outros órgãos da administração direta, representa grave ameaça a um patrimônio público, material e imaterial, cujo valor é incalculável. Traz ainda uma síntese das ações do Ministério Público Estadual, das negociações das entidades sindicais com o governo e os processos judiciais nas esferas civil e trabalhista, alguns ainda em andamento. “Serão perdas que se incorporam a um período histórico de retrocessos, sem que se perceba claramente o quanto significam. Mais tarde, as novas gerações vão se dar conta de que houve um tempo sem rumo, em que andamos para trás”, alerta o jornalista Elmar Bones, da Já Editores.

ENTREVISTA | Cleber Dioni Tentardini

Extinção da FEE deixa o RS sem cálculo do PIB

"Ficou claro em todo o processo que o governo não sabia o que fazer depois que obteve autorização da Assembleia Legislativa para extinguir as fundações. Isso, sem falar nas outras fundações, incluídas em um segundo Projeto de Lei de extinção, que os servidores batizaram de pacote de maldades"

Foto: Igor Sperotto

“Ficou claro em todo o processo que o governo não sabia o que fazer depois que obteve autorização da Assembleia Legislativa para extinguir as fundações. Isso, sem falar nas outras fundações, incluídas em um segundo Projeto de Lei de extinção, que os servidores batizaram de pacote de maldades”

Foto: Igor Sperotto

Repórter e editor de jornais e portais de notícias, Tentardini conquistou 11 prêmios jornalísticos com reportagens históricas sobre meio ambiente, entre os quais o segundo lugar do Prêmio Fiema de Jornalismo Ambiental 2010 com a reportagem Estudo aponta riscos de poluição e redução do Aquífero Guarani, publicada na edição de março de 2009 do Extra Classe. Escreveu os livros O menino que se tornou Brizola, Usina Eólica Cerro Chato e é coautor dos perfis de João Goulart e Brizola, além de atuar como pesquisador para os livros Golpe mata jornal, Histórias da Santa Casa, História ilustrada do Rio Grande do Sul e Getúlio Vargas, o lado oculto do presidente, entre outros. Para contar a história da extinção das fundações e a resistência dos movimentos sociais, o jornalista entrevistou dirigentes, servidores e comunidade intelectual e investigou as estatísticas de cada órgão público, os serviços que eram prestados e o retorno que davam para o estado. “São imensuráveis as perdas que representa o fim de instituições que há mais de meio século prestam relevantes serviços aos governos e à população, assim como a dispersão do acervo e da experiência, as pesquisas que ficam truncadas, as séries estatísticas que se perdem, a produção de conhecimento que estanca. O RS está sem pesquisas”, enfatiza o autor nesta entrevista.

Extra Classe – Qual foi a motivação para escrever esse livro?
Cleber Dioni Tentardini
– Comecei cobrindo uma reunião dos servidores da Fundação Zoobotânica, no dia 8 de agosto de 2015, um sábado, dois dias depois do anúncio pelo governo da intenção de extinguir quatro fundações estaduais. Ali, um grupo de funcionários decidiu organizar na semana seguinte um abraço simbólico ao Jardim Botânico e programar uma audiência pública que envolvesse deputados, cientistas, estudantes e apoiadores da causa ambientalista. Nessa audiência começaram a ser avaliados os prejuízos para o Estado com o desmonte de uma estrutura de conservação da biodiversidade rio-grandense e da pesquisa científica.

EC – Quais são os prejuízos da extinção?
Cleber
– Duas das três instituições vinculadas à Zoobotânica Jardim Botânico e Museu de Ciências Naturais possuem o maior acervo de material-testemunho da biodiversidade dos ecossistemas terrestres e aquáticos do estado. Há exemplares também de outros estados e países, a maioria doados. O Parque Zoológico tem mais de mil animais nativos e exóticos, de mais de cem espécies. Outras duas fundações incluídas naquele primeiro pacote do governo Sartori e efetivamente extintas foram a de Pesquisa Agropecuária, Fepagro, e de Produção e Pesquisa em Saúde, a Fepps, instituições consagradas, que traziam em seus históricos o pioneirismo e a experiência de relevantes serviços prestados aos governos e à população há mais de meio século.

EC – O governo não mensurou a importância das fundações para a sociedade e o que representa abrir mão desse patrimônio?
Cleber
– As fundações públicas são formas jurídicas que os governantes, não só no Brasil, foram adotando para escapar das regras paralisantes do orçamento público. Com mais liberdades para fazer contratos, captar recursos e tomar decisões gerenciais, as fundações públicas foram concebidas para dar mais agilidade à gestão governamental. Não houve, como constataram os juízes que estão julgando as ações dos funcionários, um estudo prévio para avaliar devidamente o impacto das extinções, tanto na área financeira quanto na funcional. Ficou claro em todo o processo que o governo não sabia o que fazer depois que obteve autorização da Assembleia Legislativa para extinguir as fundações. Isso, sem falar nas outras fundações, incluídas em um segundo Projeto de Lei de extinção, que os servidores batizaram de “pacote de maldades”. A Assembleia Legislativa aprovou esse novo projeto em dezembro de 2016 e o governador sancionou em janeiro de 2017. Neste foram incluídas FEE, a Metroplan, A Fundação Piratini, a Cientec, A FDRH e a Corag.

EC – Uma das justificativas para as extinções era a economia com o corte de pessoal…  
Cleber
– O governo sempre alegou economia para os cofres públicos, o que nunca aconteceu. Primeiro, porque ninguém foi demitido como queria o Executivo. Servidores da Fepagro e da Fepps apenas foram transferidos para as secretarias da Agricultura e Saúde. Os funcionários das outras fundações estão com seus empregos garantidos por ações judiciais no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), que discutem o direito à estabilidade dos concursados. Os celetistas teriam que ser indenizados. Também houve prejuízos para o estado com a perda de mão de obra qualificada e de conhecimento.

EC – Na prática, como essa perda de mão de obra qualificada se converte em prejuízos para o estado? Vamos pegar o caso da Fundação de Economia e Estatística (FEE) como exemplo…
Cleber
– A FEE é o principal centro de pesquisas e estudos econômicos do estado. Está extinta, seus funcionários foram transferidos para várias secretarias e permanecem sem atribuições. O RS está sem pesquisas nessa área. Nos próximos dias serão divulgados o PIB de todos os estados, referente ao segundo trimestre de 2018. Alguns já divulgaram, o do Rio Grande do Sul não será divulgado. Não há um número oficial. Os pesquisadores que faziam o cálculo do total de bens produzidos no estado a cada ano foram dispersos por várias secretarias. Para fazer o que a FEE fazia, o governo do estado contratou a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), uma fundação privada ligada à Universidade de São Paulo. Mas o IBGE não repassou os seus dados à Fipe, nem reconheceu o cálculo que ela apresentou em julho para o PIB estadual de 2017. Segundo o cálculo da Fipe, a economia gaúcha cresceu 1% em 2017, mas o IBGE não reconhece a metodologia adotada. Os economistas da FEE vão mais fundo: dizem que o cálculo da Fipe subestima o crescimento do PIB estadual por falta de dados e pela metodologia. Dizem que no acumulado do terceiro trimestre, o crescimento da economia gaúcha já havia crescido acima de 1%. Para o cálulo de 2018 também há incerteza. Por orientação da Procuradoria Geral da República, o IBGE não transferiu o convênio que tinha com a FEE para troca de dados para a Fipe. Por conta disso, o Tribunal de Contas do Estado determinou a suspensão do contrato do governo com a fundação ligada à USP. Em um recente encontro nacional dos pesquisadores que trabalham no cálculo do PIB para consolidar os números de 2016 que irão influir na distribuição dos recursos às capitais e aos municípios. O Rio Grande do Sul não estava representado.

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