CULTURA

Carijada na Lomba Grande revive ritual indígena para produzir erva-mate

Encontro reuniu comunidade, produtores e pesquisadores em torno da mística que envolve o mate popularizado pelos mbyá-guarani e kaingang
Da Redação / Publicado em 30 de março de 2022

A produção de erva-mate passa pela secagem e trituração das folhas, um ritual que dura uma noite e envolve todos os convidados

Foto: Bruno Prates/ Divulgação

Depois de 17 horas de secagem, a erva-mate já estava sendo degustada no chimarrão servido ali mesmo, na fonte, direto do carijo. A lenha atribui um sabor peculiar às folhas. A erva fica um pouco defumada, mais sapecada pelo processo artesanal e isso é bem marcante, principalmente para aqueles que vivenciam o processo todo. O ritual vai desde a construção do carijo e consiste em fazer a poda, o fogo, o sapeco, a ronda durante toda a madrugada de secagem da planta, o cancheamento ou fragmentação dos galhos, o soque ou moagem e, por fim, a degustação do mate cevado com a erva-mate recém produzida.

Encontro em Lomba Grande reuniu aficcionados do chimarrão, comunidade, estudantes e pesquisadores

Foto: Divulgação

Cerca de 50 pessoas oriundas de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Campo Bom, Sapiranga, Rolante, Antônio Prado, Muitos Capões, Panambi e da capital gaúcha participaram da carijada na Lomba Grande durante o último final de semana de março. Dentre elas, estudantes de agronomia da Ufrgs e produtores agroecológicos e agroflorestais motivados em conhecer a prática do carijo.

Ronda teve apresentação do músico Zé Martins, do grupo Unamérica

Foto: Bruno Prates/ Divulgação

A vivência coletiva e acampamento ocorreram no Quilombo, no organismo agrícola de Erno Bühler, na zona rural de Novo Hamburgo, bairro Lomba Grande. No sábado, 26, atividades de reconhecimento da planta e aprendizagem sobre todo o processo. Noite de cuidado com o fogo e a erva que ficou secando na estrutura do carijo. Durante a ronda noturna teve uma roda cultural com apresentação do músico Zé Martins, do grupo Unamérica.

No domingo, os participantes carregaram o carijo com a erva até o outro lado do campo de futebol onde estava a máquina de soque. “Foi uma aventura. Nunca tinha visto um carijo itinerante”, comentou Gustavo Türck, integrante do Coletivo Catarse – responsável pelo projeto Carijo, que culminou com a produção do documentário Carijo, o filme, além de livro, cartilha e diversos eventos para a multiplicação destas culturas indígenas mbyá-guarani e kaingang.

Contato com as origens

O biólogo Moisés da Luz, que veio de Panambi para repassar seus saberes na arte do carijo, vem fazendo retomadas desta cultura indígena desde 2005 e formando multiplicadores no processo de fabricação artesanal de erva-mate (Ilex paraguariensis).

Para sua dissertação de mestrado Carijos e Barbaquás no Rio Grande do Sul: resistência camponesa e conservação ambiental no âmbito da fabricação artesanal de erva-mate, Luz pesquisou 24 experiências no RS de carijos, barbacuás e assemelhados.

“A retomada dos carijos proporciona a autonomia de produzir a própria erva para o chimarrão, com sabor original e novos e ancestrais sentidos em nossa vida”, resume.

Experiência mística

Carijo: contato com o fogo, a fumaça e a comunhão em torno da bebida ancestral

Foto: Bruno Prates/ Divulgação

“A vivência em si acaba sendo uma mística. As pessoas dormem no local. A tradição é iniciar a secagem no final da tarde, momento de celebração, adentrar a noite e a madrugada, com outras sensações e percepções, observar a lua e as estrelas. Outra potência que o carijo possibilita é este contato com o fogo, a fumaça e a comunhão em torno da bebida,” descreve o pesquisador.

“Essa experiência que tivemos juntos foi mágica, foi revigorante, foi muito especial. Quando saí do acampamento, me senti um alienígena em nosso próprio planeta, senti que meu mundo era outro”, expressou o produtor Fábio Junges.

A carijada no Vale do Sinos foi promovida pelo Araçá – Grupo de Consumo Responsável, com parceria de Agrofloresta Garupá, Produtos Biocêntricos e Circular Alimentos e apoio do Coletivo Catarse, do organismo agrícola da Família Bühler e do Banco de Tempo Lomba Grande.

A erva-mate processada neste carijo foi colhida na sexta-feira, 25, por três produtores: Susi Grings, em Dois Irmãos; Mozar Dietrisch, em Santa Maria do Herval; e Fábio Dias, em Sapiranga.

A origem do chimarrão

A erva-mate é uma árvore que habita o Brasil, Argentina e Paraguai. O seu habitat nativo são as florestas, tais como a Floresta com Araucária (que contém o pinheiro-brasileiro) e a Floresta Estacional, que acompanha os rios Paraguai, Paraná, Uruguai e seus afluentes. A origem do uso da erva-mate se deve aos povos indígenas dessa região, entre eles os Guarani e os Kaingang. A palavra mate tem origem quéchua, a qual os espanhóis pegaram emprestada para denominar o recipiente (cuia), o conjunto do chimarrão ou a própria bebida. Já o termo chimarrão provém do termo espanhol cimarón, que quer dizer selvagem, amargo, sem dono, bravo.

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