CULTURA

Um pintor na cozinha

Por Valéria Ochôa / Publicado em 9 de junho de 1997

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Telas, tintas, pincéis, massas, molhos e vinhos. Nos últimos quatro anos e seis meses, o artista plástico Gelson Radaelli, 36 anos, tem se desdobrado “em pelo menos três” para atender ao restaurante, à família e seu atelier de pintura. A maratona diária não é rigorosamente definida, mas, na maioria da vezes, não é nada convencional. Começa geralmente por volta das 11 horas da manhã, quando ele pula da cama em seu apartamento, no bairro Partenon. Ao meio-dia está no restaurante, na rua Riachuelo, no centro. Sempre que pode, dá um pulo em seu atelier de pintura, distante poucos metros do Atelier de Massas, no intervalo da tarde. O retorno para casa não ocorre antes das 2 horas da manhã, quando aproveita alguns momentos com a pequena Túlia, a filha de dois anos de idade, e a esposa, Rogéria, 29. Também é comum encontrar a menina e a mãe no restaurante.

Com a renda do restaurante, Radaelli conseguiu alugar um atelier e admite que tem muito mais tempo para a pintura do que antes de se tornar dono de restaurante.

“Mas não o suficiente”, exclama com uma ponta de ressentimento. Revela-se aí uma certa ambivalência, uma relação angustiada que o artista trava com a casa de massas. Inaugurado em novembro de 1992, este empreendimento foi uma escolha casual e experimental. Radaelli queria garantir o sustento e financiar o trabalho artístico.

Batizado de Atelier de Massas, expressando a ideia de artesanato, dotado de uma elaboração cuidadosa como uma obra de arte, o restaurante deu mais certo do que ele mesmo esperava. Entre os objetos de decoração, queijos, salames e copas, muitas obras de arte.

No final de 1994, o jornalista e especialista da boa mesa, José Antônio Pinheiro Machado, o Anonymus Gourmet do extinto jornal Diário do Sul, o classificou como um dos cinco melhores restaurantes da cidade. A clientela – quase toda do meio intelectual, artístico e político da cidade – se tornou assídua. “Imagina um lugar onde tu vais, tens espaço para criar, desenhar e que sempre tem pessoas interessantes para conversar. Para mim, o restaurante é assim”, define o artista.

“Ele está sempre bolando alguma coisa”, descreve o garçom Pedro Roberto Carpin, 38 anos, que está no Atelier de Massas desde a sua inauguração. “Se tem uma coisa com que o Radaelli é rigoroso aqui, é com o bom trato com o cliente e com a comida. Ele sempre está envolvido em servir o melhor, com qualidade”, assinala Carpin.

“Hoje, estou próximo de conseguir a minha linguagem, o meu passaporte para a expressão.”

Logo no início, na falta do cozinheiro, Gelson Radaelli assumiu e descobriu a cozinha. Acabou mexendo nas receitas, experimentando ingredientes e hoje a maioria dos pratos servidos pela casa são de sua criação. “Ele fica rabiscando num papel e tu podes contar que dali sempre vem uma ideia nova, quer para o restaurante quer para seus quadros”, expõe Carpin.

“Eu não perturbo mais o cozinheiro. Quando quero comer, vou pra cozinha e faço exatamente o que quero degustar naquele momento”, afirma Radaelli, este descendente de italianos que todos os dias come massas e bebe religiosamente uma garrafa de Cabernet. “E a Túlia também adora massas”, diz com o peito inflado. Até aí, ótimo. A angústia até parece inexplicável.

O problema é que o restaurante lhe toma a maior parte do tempo, sobrando poucas horas diárias para seus quadros e para a família.

“Precisaria ter umas dez horas para a pintura, sem necessariamente ter que pintar nestas dez horas. O processo de criação exige tempo”, explica. Radaelli, no entanto, não gosta de se queixar e aposta no futuro. “Minha aposentadoria será a pintura”, garante.

Até lá, o jovem artista não deixa por menos e em tudo que faz, abusa da criatividade. Houve uma época em que chegou a pincelar molhos nos pratos, empregando diferentes cores no momento em que servia o pedido. Também, o trato com o pessoal que atende é espirituoso, espontâneo.

“Os próprios clientes me inspiram”, revela.

Cozinhar é arte? Depende, diz Radaelli. “A arte tem uma coisa para arrebatar, para transcender. A cozinha não é tudo isso, mas acho que ela chega próximo.”

Entre as conversas com amigos e clientes também surgem projetos, como foi o caso do livro de poesias eróticas Sobre corpos e ganas (72 páginas, 1995, Mercado Aberto), com poemas do poeta Dois Santos dos Santos e desenhos de Radaelli.

Para fazer as ilustrações, o artista foi a campo. Buscou inspiração na sacanagem mundana presente nas casas de massagens, nos shows de sexo ao vivo, nas telenovelas e nos filmes pornográficos.

“Neste trabalho, resgata duas perspectivas perdidas ou edulcoradas na arte contemporânea: o traço e o erotismo”, escreveu o escritor Tabajara Ruas na apresentação do livro. “O desenho em Radaelli nunca foi delicado, mas sempre foi verdadeiro. Radaelli mostra as coisas com convicção e espontaneidade, com a garra e a paixão tão necessárias e tão ausentes.”

Este não é o único trabalho editado. Radaelli ilustrou com ternura e força pictórica outras obras como Tigres no quintal, uma deliciosa reunião de poesias editada pela Kuarup com que o escritor Sérgio Caparelli brinda o público infanto-juvenil.

Sentado, em uma cadeira de balanço em seu atelier de pintura, alugado em 1994, Radaelli se diz um privilegiado. “Quantos não têm um espaço destes nem para morar?”, indaga.

Por isso mesmo, ele sabe o valor deste lugar perto do Atelier de Massas e vizinho do atelier das duas (artistas plásticas) Alices – a Brueggmann e a Soares. É ali, em sua fortaleza da solidão, como ele define, que se encontra com a pintura – sua grande paixão.

“Eu gosto muito do super-homem porque ele tinha esta fraqueza. Ia para o Polo Norte quando queria chorar, refletir”, revela. “A pintura é isso, é o espaço em que sou livre, honesto comigo mesmo, sem regras; é o meu Polo norte”.

A liberdade e o atrevimento, talvez, definam melhor o trabalho de Radaelli. Ele pinta o que quer, com os traços e com a textura que quer – independente de modismos demandados pelo mercado de arte ou pelas simpatias transitórias de quem está na direção dos órgãos oficiais de cultura.

A maioria de seus quadros são grandes – em média dois metros por um e meio. Já pintou em telas de dimensões menores, mas não gosta. Também já pintou colorido, mas as tintas usadas de uns oito anos para cá são impreterivelmente o preto e o branco.

“Se algum dia quiser colocar cor, colocarei. Agora não”, comenta. “Chega um momento em que você tem de ter estilo, a tua personalidade no trabalho. Aí se procura isso, elementos, temas, cores, uma maneira que leve a pessoa a reconhecer o teu trabalho mesmo sem ele estar assinado. Acho que meu trabalho já tem uma identidade. Eu assino atrás das telas e muitas pessoas me falam que viram meus trabalhos em tal lugar.” E Radaelli põe o preço, sem concessões. Na média, suas telas custam R$ 2 mil.

“Não pinto para vender. Se vender, muito bom”, faz questão de assinalar, deixando claro que a relação com os galeristas não é de pura simpatia. “Se eu começasse a pintar certas coisas bonitinhas, certamente estaria vendendo, mas não vou poluir esse corredor que me leva para a alma”, argumenta. São as paredes de seu restaurante que expõem permanentemente seus trabalhos. Também é ali, basicamente, que vende seus quadros, sem deixar de aproveitar os espaços institucionais.

Rebeldia, desencanto, reflexão

Imagem: Reprodução autorretrato

Imagem: Reprodução autorretrato

Pessoas em queda ou com dificuldade de se erguer tomaram as telas de Gelson Radaelli. Surgiram da impressão do artista quando observou num dia qualquer, em um lugar qualquer, a figura de alguém inclinado – com as costas mais altas que a cabeça, levando a crer que não suportava mais o peso da vida. A imagem ficou, marcou e depois começou a aparecer em seus quadros. Hoje, estão lá, multiplicadas, com a plasticidade própria do artista.

Apesar da série de figuras inclinadas mostrarem ao espectador um mundo pesado, de cansaço, dor, não é bem isso que o artista diz sentir em seu interior. E explica as formas de seu trabalho traçando um paralelo com a antropofagia: “tudo que vejo, engulo com os sentidos, depois vomito e organizo”. “Talvez, o sofrimento que meus quadros mostram seja reflexo do desencanto com que eu vejo a vida. É pavorosa a falta de dignidade, como são tratadas as pessoas. Mas não posso ser comparado ao termômetro da vida, do mundo”.

Depressivo? Radaelli diz que na adolescência até sentia alguma depressãozinha. Hoje, quando a melancolia aperta, espanta fumando um bom charuto cubano. A mesma atitude de calma que experimenta quando resolve um quadro depois de muita “briga”.

Gelson Radaelli diz que não gosta de falar sobre sua pintura. Alega que ela precisa falar por si. “Até porque não domino muito bem a Língua Portuguesa”. Vindo de uma família descendente de italianos, carrega no sotaque e, de vez em quando, comete uns trocadilhos. Acredita que seu trabalho se identifica com a escola Neo-expressionista, o que explica sua admiração pelos grandes mestres como Goya, Van Gogh e Iberê Camargo.

“O Radaelli fala que a arte dele é silenciosa. Que nada. A obra dele é uma gritaria”, diz Luiz Carlos Coelho, 62 anos, bancário aposentado e artista plástico. “Seus quadros falam”. Coelho participou de várias exposições com Radaelli. Ambos também foram “colegas” em oficinas no atelier de Fernando Baril.

Radaelli diz que apesar de não estar completamente satisfeito com seu trabalho, conseguiu destruir alguns traços redondos demais que o perturbavam. Defende que suas telas têm que ser mais secas, mais sujas. “Hoje, estou próximo de conseguir a minha linguagem, o meu passaporte para a expressão.”

“Existe uma certa unanimidade quando se fala do trabalho deste jovem talentoso”, diz o poeta dois Santos dos Santos, 49 anos. “É uma obra vigorosa que pode se firmar com o tempo. O Radaelli recusa o gratuito, não faz concessão ao óbvio, é exigente com o que faz”. “Ele só tem um problema: não pinta 10 horas por dia”, avalia Fernando Baril. “Se conseguisse dedicar todas estas horas diárias, cresceria muito mais”.

Agitação cultural para superar a timidez

Atelier de Massas rivaliza com a "fortaleza da solidão", refúgio do artista

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Quarto filho de uma prole de sete, Radaelli nasceu na pequena Nova Bréscia (cerca de 140 quilômetros de Porto Alegre), mas tem seu coração na cidade grande. Apesar de ter tido uma infância agradável junto à natureza, diz que não tinha sossego. Se sentia deslocado quando morava lá. Sentia falta de alguma coisa mais forte, mais intensa. Veio morar na cidade grande quando já era um rapazote. Assustado com o movimento e com a aparente superioridade das pessoas em Porto Alegre, diz que teve de exorcizar a timidez e o medo para descobrir a autoconfiança. Conseguiu, em parte. Ainda se considera tímido, mas garante que isso não o impede de brigar pelo que quer.

O artista plástico Fernando Baril foi seu primeiro contato real com o mundo das artes plásticas da capital. Fez três anos de cursos com Baril. “Minha formação em pintura foi esta”, revela. “Sempre foi uma pessoa diferenciada, atrevida, passada, alertada, com uma pilha a mais”, relata Baril.

Sabendo da dificuldade de se manter somente com a venda de seus quadros, ingressou no curso de Publicidade e Propaganda, que mais tarde lhe deu respaldo para abrir uma agência de publicidade, com mais duas sócias. Pensava unir aí, o útil ao agradável. O útil era a ideia de que se manteria com a profissão e o agradável é que através dela teria espaço para criar. A sociedade não durou muito, mas Radaelli fez bons trabalhos. Entre uma atividade e outra, pintava e pintava em cima de folhas de revistas, chegando a cobrir o chão da sala. Exercício este que deu origem ao trabalho que faz hoje.

Radaelli foi corresponsável pelo surgimento de vários jornais, entre eles o Pra Ver, dedicado às artes plásticas, que realizou com o amigo Beto Orengo. Quando o jornal era impresso, Radaelli colocava um lote deles na cabeça e saia distribuindo. Foi nesta época que começou a se integrar com o meio artístico de Porto Alegre e com a imprensa cultural. Trabalhou nos jornais Terceira Margem, no Continente. Viveu como freelance, ilustrando livros, diagramando jornais, elaborando cartazes.

A vontade de estar com a arte e com artistas, o levou a desenvolver vários projetos. O viaduto da Borges de Medeiros, escolas, a Feira do Livro, o Trensurb foram cenários procurados para expôr. Também organizou a Maratona da Pintura, onde artistas passaram 24 horas pintando. O encontro foi num galpão (próximo ao porto), preparado com lareira, bandinha de jazz, bar e modelo nu. “Meu trabalho teve um crescimento tremendo porque o cansaço das 24 horas permitiu uma maior espontaneidade”, avalia. Foi Radaelli ainda que organizou e levou para a 39ª Feira do Livro de Porto Alegre (1993), a exposição de 15 painéis assinados por vários artistas plásticos.

“Não vou poluir esse corredor (pintura) que me leva para a alma.”

O interesse pela pintura surgiu quando ainda era menino. Talvez, despertado pelas brincadeiras de seu pai, um apaixonado pela arte, que desenhava gatos, cachorros, casinhas em suas miúdas mãos. Ou, quando olhava admirado para as reproduções de Van Gogh na sala de sua casa. Ganhou a primeira tela, pincel e tintas, no dia em que foi crismado. Seu padrinho de Crisma trouxe o material de Lajeado, a maior cidade das redondezas. Depois, o gesto foi repetido várias vezes por seu pai. “Eles sempre me incentivaram”, orgulha-se.

Ainda garoto, admirava profundamente os quadros do artista plástico gaúcho Iberê Camargo. Recortava todas as pinturas do mestre reproduzidas em livros e revistas. Radaelli veio conhecer pessoalmente Iberê Camargo muitos anos mais tarde, quando conseguiu uma entrevista do artista para o jornal Pra Ver. Era o ano de 1986. “Eu conheci o cara que mais admirava. Sabe o que significou isso?”, indaga, com uma expressão que lembra o próprio jeito com que Iberê Camargo costumava falar.

Neste mesmo ano, participou da primeira exposição, uma coletiva do Salão Cidade de Porto Alegre, no Centro Municipal de Cultura, em Porto Alegre. Foi a conquista de espaço. Atrás desta exposição vieram as individuais em galerias e demais espaços culturais. Hoje, ele tem trabalhos no acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Assembleia Legislativa, Casa de Cultura Mário Quintana, prefeitura municipal de Porto Alegre, entre outros.

Os contatos com Iberê foram sucessivos e surgiu uma amizade típica entre mestre e discípulo, alimentada de ternura e lições essenciais. “Uma tarde eu vi ele pintar uns oito quadros. Cheguei a chorar com aquele espetáculo”, recorda, com emoção contida. Iberê começou, anos depois, um retrato de Radaelli, mas, com a morte do pintor, ficou inacabado. Hoje a tela integra o acervo da Fundação Iberê Camargo.

“A minha prioridade é sempre o visual”, com esta frase explica sua falta de memória para datas, números, nomes. As únicas datas que lembra são as dos aniversários de Rogéria e da filha Túlia, natal e primeiro do ano. Aliás, ele é incisivo quando diz que poucas emoções foram tão fortes quanto descobrir que da barriga de Rogéria iria sair uma menininha. Acompanhava a esposa num exame rotineiro de ecografia e literalmente chorou com a notícia. “Se dependesse de mim, teria oito filhas”, confidencia. “Acho as mulheres especiais, mais humanas, mais verdadeiras, suaves”. O que é comprovado pela profunda admiração que tem por Rogéria, a quem atribui também o sucesso do restaurante.

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