CULTURA

A república sertaneja da Belo Monte

Mário Maestri / Publicado em 8 de setembro de 1997

PRIMEIROS PASSOS – A fundar o arraial de Belo Monte, nos sertões do norte da Bahia, nas margens do Vaza-Barris, Antônio Vicente Mendes Maciel tinha 63 anos. Era de cor parda e estatura pequena.

Seu pai, um pequeno comerciante cearence e analfabeto, pensara em mandá-lo para o seminário. Aprendera apenas a ler e escrever, numa escola de primeiras letras. O que já era bastante incomum. Na época, ricos senhores assinavam-se com uma cruz. Jovem, trabalhara como caixeiro na loja do pai e, com a morte deste, pusera-se à frente do negócio, bastante enredado. Antônio casou-se, teve dois filhos, foi abandonado pela mulher, refez a família, teve um outro filho. Trabalho em diversas regiões, como pedreiro-construtor, domador, caixeiro, professor de primeiras letras, solicitador, advogado provisionado, comerciante e mascate. No Brasil escravista, para sobreviver, o homem livre, mas pobre, devia possuir diversas habilidades e procurar trabalho, onde se apresentasse.

Nos anos 1870 Antônio acompanhava, como vendedor ambulante, pregadores que percorriam o sertão. Na época poucas paróquias interioranas possuíam um sacerdote. Era comum que os homens e mulheres mais pios ou mais cultos da comunidade responsabilizassem-se pelas coisas da religião. Em associação com os raros sacerdotes, uma espécie de clero laico de pés descalços, formado por monges, beatos e conselheiros, ajudasse a administrar a vida religiosa interiorana.

Em meados do século 19, Pio IX (1846-1878) incentivou um amplo movimento que procurava reservar ao clero, subordinado estreitamente à Roma, o monopólio do sagrado e das práticas religiosas. Por todo o mundo, combateu-se a autonomia religiosa nacional e popular.

PREGANDO NOS SERTÕES – Antônio Maciel teria mostrado precoce vocação para as coisas da religião. A partir de 1874, com 44 anos, abandonou as atividades profanas, nas quais não tivera sucesso, e dedicou-se à vida de beato e, a seguir, de conselheiro. Nessa hierarquia religiosa informal, os beatos rezavam, esmolavam, puxavam o terço, benziam e dedicavam-se às práticas religiosas mais simples. Mais cultos e mais informados nas coisas divinas, os conselheiros pregavam e aconselhavam.

Por 20 anos, Antônio percorreu os sertões do norte da Bahia, acompanhado por alguns beatos. Levantavam os muros e as paredes de cemitérios e igrejas decaídos e construíam pequenos açudes. Seu asceticismo, carisma e cultura acima da média levaram a que alcançasse grande sucesso, atraindo a hostilidade da alta hierarquia da Igreja.

A pedido do arcebispado da Bahia, Antônio foi preso em 1876, acusado de matar a esposa e a mãe. A primeira ainda vivia e a segunda morrera quando ele tinha seis anos. Antes de ser solto e voltar aos seus, foi arrastado pelos caminhos, surrado e maltratado. É crível que, a partir de então, tenha organizado os mais decididos fiéis, em uma espécie de ordem religiosa-militar, para responder às violências policiais.

Antônio pregava pelos sertões quando, em 1888, a escravidão foi abolida e, no ano seguinte, proclamou-se a República. O país metamorfoseou-se profundamente com a transição do trabalho escravo ao livre. Com o fim do cativeiro, o centralismo imperial tornava-se desnecessário. A República foi federalista e antipopular. A constituição de 1891 assegurava ampla autonomia aos Estados. Ela determinava que as regiões ricas gerissem autonomamente seus recursos. As pobres, ao contrário, empantanaram-se na depressão.

A Bahia fora capital colonial e pujante centro açucareiro. Nos inícios da República, aprofundara-se a decadência que conhecia havia décadas. Por anos, as elites baianas digladiaram-se, sem que nenhuma facção alcançasse uma real hegemonia, quanto mais propusesse um projeto factível para a região.

CRISE NAS ALTURAS – Nessa época de vazio de poder, os grandes senhores reinavam em seus latifúndios. Em regiões ao longo do Rio São Francisco existiam verdadeiros micro-Es-tados, semi-independentes. O banditismo reinava. As classes populares viviam tempos difíceis. A inflação desenfreava-se. A queda das exportações regionais criava desemprego. As elites tentavam resolver seus problemas aumentando a exação sobre os subalternos.

A República separara o Estado e a Igreja. Determinara a liberdade de cultos. Naciona-lizara os cemitérios. Estabelecera o casamento e o registro civis. Inicialmente, o alto clero opusera-se à nova ordem, arregimentando a população crente contra ela. A seguir, acomo-dara-se às instituições republicanas.

Nos sertões, Antônio Conselheiro prosseguiu recrimi-nando o desrespeito do princípio da monarquia por direito divino e a separação da Igreja e do Estado. O Peregrino foi mais além. Em 1893, na vila de Bom Conselho, ao pronunciar-se contra os novos impostos, já que desconhecia a legalidade da ordem republicana, sua pregação assumiu um caráter polí-tico. O movimento de desobediência civil teria abarcado regiões bem mais amplas.

De Bom Conselho, Antônio retirou-se, com seus fiéis, após bater partida policial, em Masseté, para os sertões do norte da Bahia, onde se estabeleceu na miserável povoação de Canudos, por ele batizada de Belo Monte. O arraial possuía uma igrejinha em ruínas, prontamente reerguida. Feito isto, Antônio empreendeu a construção da Igreja Nova.

O POVO DE DEUS – Ao chegar a Canudos, duzentos ou trezentos beatos seguiam o peregrino. A partir de então, os fiéis começaram a se mudar para perto do pregador. Em torno de Antônio, protegidos pela Companhia do Bom Jesus, surgiu uma florescente povoação, local de romarias e centro de uma feira regional.

Fora as igrejas Nova e Velha, uma grande rua e algumas casas centrais telhadas, Belo Monte desenvolveu-se como um arraial desordenado. Os recém-chegados levantavam pobres cabanas, onde quisessem, como pudessem. Em torno de Antônio e da Companhia do Bom Jesus desenvolveu-se uma espécie de república sertaneja, informal, crescentemente independente do débil poder estadual.

Das regiões e dos Estados vizinhos, moradores meeiros, pequenos proprietários arruinados, ex-escravos vendiam o pouco que tinham, se o tinham, e partiam para Belo Monte. O arraial santo prometia-lhes a elevação da alma e do corpo. As várzeas do Vaza-Barris foram plantadas. Nas pobres terras dos arredores, criaram-se grande quantidade de cabritos.

Os latifúndios eram abandonados. Se prosperasse o êxodo, inevitavelmente, os aluguéis da terra cairiam e aumentariam os salários. Nas abandonadas fazendas das cercanias de Belo Monte, prosperava o princípio do uso útil da terra. Criava e plantava quem quisesse, segundo suas forças. Em Belo Monte e arredores, ninguém pagava impostos ao governo do Cão.

A primeira expedição contra o reduto santo foi religiosa. O frei capuchinho italiano João Evangelista de Monte Pascal, e dois outros sacerdotes, foram enviados para convencerem os sertanejos a retornarem à vida de antes. Por mais de uma semana pregaram, casaram, batizaram, ouviram confissões. Tiveram que se retirar apressadamente, quando insistiram em pregar contra o Conselheiro e Belo Monte.

DÍVIDA NÃO PAGA – Acontecimento trivial iniciaria a Guerra de Canudos. Em 1896, Antônio encomendara, em Juazeiro, a madeira que cobriria a Igreja Nova. O juiz de Direito local determinara a não entrega do pedido e exigira, a seguir, da capital, tropas para defenderem a vila dos conselheiristas.

Como os fanáticos não chegassem, a tropa, com três oficiais, um médico e 113 soldados, comandada por um tenente, partiu confiante de Juazeiro para desbaratar o reduto místico. Na madrugada de 21 de novembro, no povoado de Uauá, a meio-caminho de Belo Monte, foi desbaratada por um grupo se conselheiristas.

Apesar da oposição do governador da Bahia, o chefe das tropas federais exigiu que a honra das forças armadas fosse restaurada. Nova expedição, sob as ordens de um major, com dez oficiais, 609 praças, médico, farmacêutico, enfermeiro, metralhadoras, canhões e mais de um milhão de cartuchos, travou dois combates, nas proximidades de Belo Monte, nos dias 16 e 17 de janeiro, de onde conseguiu recuar em relativa ordem.

Por primeira vez a presidência da República era ocupada por um civil, o paulista Prudente de Morais, representante dos cafeicultores. Ele sucedera aos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. A destruição de Belo Monte, agora apresentado como a ponta de lança do restauracionismo monarquista, foi vista pelos militares jacobinos como o melhor caminho para o golpe de Estado e a volta ao poder.

Para acabar com a comuna sertaneja, partiu um exército de 1.300 homens, com artilharia, cavalaria, médicos, engenheiros militares, ambulâncias, etc. Era comandada pelo mais prestigiado militar florianista – o temível coronel Moreira César.

A HONRA PERDIDA – Moreira César optou por um ataque frontal a Belo Monte, em 3 de março de 1897. A ofensiva tresloucada transformou-se numa estrepitosa derrota e a expedição passou a defensiva. Na manhã de 4 de março, sob o fogo das milícias conselheiristas, a retirada transformou-se em um salve-se-quem-puder. Nas mãos dos inimigos, foram deixadas a artilharia, as armas, as munições, os próprios corpos dos oficiais comandantes. O exército brasileiro acabava de sofrer sua maior derrota.

Apressadamente, o presidente Prudente de Morais, licenciado por doença grave, reassumiu o governo, temendo a deposição orquestrada por seu vice, aliado aos florianistas. A agitação militar jacobina chegava ao paroxismo.

De Salvador e de Aracajú, partiram duas colunas, comandadas por dois generais. As tropas da quarta expedição, chegadas de todo o Brasil, contavam com mais de 400 oficiais, seis mil soldados, poderosa artilharia e modernos armamentos.

As elites acreditavam que caboclos, negros e mestiços eram incapazes de um real esforço militar. Mais uma vez, a oficialidade pretendeu vergar o reduto com um ataque frontal, após aplastá-lo com a artilharia.

VENCER OU MORRER – Após combaterem separadamente as duas colunas, em 27 de junho, os conselheiristas concentraram-se no ataque das tropas dirigidas pelo comandante geral da expedição, o general Artur Oscar. A coluna foi cercada e batida, escapando do aniquilamento devido ao socorro providencial do segundo corpo expedicionário.

Apenas na madrugada de 18 de julho, o exército expedicionário, recomposto, lançaria o que pensava ser o assalto final ao reduto rebelde. Combateu-se com violência inusitada. A ofensiva esgotou seu ímpeto nas periferias de Belo Monte. Com mais de mil baixas, o general Artur Oscar confessou sua segunda derrota, ao pedir ao governo federal, mais cinco mil homens, para vergar os rebeldes.

Interessado em pôr fim ao foco de instabilidade política e social, Prudente de Morais enviou reforços e tensionou todos os recursos necessários para organizar a expedição definitiva.

Na época, os oficiais superiores superestimaram a dimensão do reduto rebelde e o número e as armas de seus defensores, a fim de justificar repetidos fracassos. Afirmaram que Belo Monte possuía cinco mil casas, 35 mil habitantes, quatro mil ou mais milicianos, armas modernas e instrutores estrangeiros.

Foram possivelmente muito inferiores a população e os defensores de Belo Monte. Outras razões explicariam a inexpugnabilidade da comuna sertaneja. Antônio Maciel e Belo Monte sintetizaram as esperanças de amplíssimos setores das classes subalternas nordestinas. Os combatentes conselheiristas eram homens livres lutando por suas aspirações espirituais e materiais.

O INÍCIO E O FIM – Sobretudo após as primeiras vitórias cresceram a confiança e o apoio ao movimento dos conselheiristas. O arraial santo constituiu nos fatos a capital de uma república sertaneja informal de fronteiras e limites fluídos e pouco conhecidos. Durante a guerra, o arraial foi abastecido em alimentos, armas e combatentes. Aos estudiosos permanece por estimar o número de combatentes que passaram pelo arraial e a origem dos recursos que alimentaram-no. No mundo social, tudo que não avança retrocede. Antônio Maciel e os comandantes conselheiristas atraiam para Belo Monte os meios e os recursos que podiam antepor aos atacantes. Apenas nos momentos finais do combate, enviaram um destacamento de oitenta homens, a fim de reunir tropas em apoio ao arraial. A partir de certo ponto, apenas a generalização da luta garantiria a proteção de Belo Monte. Os conselheiristas jamais teriam pensado ou tentado insurreicionar os sertões. A própria forma mística que assumiam a rebeldia e a autonomia sertanejas dificultava a compreensão da necessidade e a proposição de uma tal iniciativa.

Em fins de setembro de 1897, os assaltantes assenhoraram-se da última saída de Belo Monte, sitiando totalmente o arraial. Sem reforços e alimentos e, a seguir, praticamente sem água, os derradeiros combatentes, enfurnados nas ruínas do arraial, resistiam sem pedir ou dar quartel.

A 1º de outubro, o exército postou-se diante do que sobrava de Belo Monte. Após furioso bombardeamento, milhares de homens puseram-se em marcha. Esperava-se terminar tudo com cargas de baionetas. Acreditava-se que não mais de duzentos conselheiristas encontravam-se em armas. Os atacantes demorariam cinco dias e perderiam centenas de homens para vergar a resistência. Nesses momentos, Antônio Maciel encontrava-se morto e enterrado, havia diversos dias.

Na tarde do dia 5 de outubro, uma derradeira trincheira resistia. Arrinconados sobre camaradas caídos, eram quatro os defensores: um negro, um caboclo, um jovem de uns 16 anos, um velho. Esse seria o comandante da resistência teimosa. Portava orgulhoso, o barre-te azul da Companhia do Bom Jesus. Sem mais cartuchos, o velho armou-se de uma machadinha e lançou a última carga contra os ofensores de Belo Monte.

Encerravam-se os combates; prosseguia o massacre. Por ordem do ministro da Guerra, havia dias que se degolavam os prisioneiros capturados – homens, mulheres ou crianças. A seguir, para que não restasse nem mesmo lembrança da república sertaneja, as casas foram explodidas, incendiadas, arrasadas.

* Mário Maestri, doutor em História pela Universidade Católica de Louvain- Bélgica,
é professor na Universidade de Caxias do Sul e Universidade de Passo Fundo.

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