OPINIÃO

Enxugando a língua

Sandra Costa / Publicado em 6 de abril de 1998

“Ars longa, vita brevis; sol lucet omnibus; fama volat; verba volant, scripta manent.”1 Apesar de nunca ter aprendido o falar do Lácio remoto, numa folga que outra bisbilhoto. Mas que fascínio é esse que o latim exerce não só sobre mim, com certeza? Ele é enxuto. Diz mais com menos. É isso. Talvez também pela prosódia ? o que é mais conciso é mais marcante, incisivo. Além de, é claro, fazer parte da família ? ele é nosso ancestral.

Se me fosse dado o poder, eu fazia o mesmo com o português: enxugava. Minha primeira ação seria abolir o hífen (o travessão, não) porque nós temos mais o que fazer do que quebrar a cabeça para saber se sem-cerimônia tem hífen, bem-querer, amarelo-escuro, decreto-lei. Junta tudo, simplifica, todo mundo vai entender.

Em seqüência eu aboliria o trema. (Confesse, você usa? Em tranqüilo? Argüir? Agüentar?) E aboliria todos os acentos não diferenciais, incluindo a crase, mas o til eu preservava por nos ser tão peculiar (sem o til, como escreveríamos hã?). A pontuação eu tornaria estética – cada um pontua como sentir e os “porquês” seriam sempre juntos e sem acento, pela mais singular das razões ? porque sim. Num primeiro momento, apenas isso me satisfaria. Posteriormente, eu padronizaria o uso de c, ç, s, ss, sc, x, ch, z, etc. de acordo com a fonética, mas jamais obrigaria ser vivente a decorar símbolos fonéticos, salvo os que tivessem vocação.

O passo natural seguinte seria enxugar a gramática, mas nisso eu nem me meteria. Então o que mais? Talvez enxugar as idéias, o que refletiria na linguagem, seu veículo. Mas como ensinar? Instituir uma disciplina de Clareza Mental no currículo escolar? Talvez melhorar o ensino de composição porque, para escrever de verdade, tem que pensar de verdade. Alguns professores, aliás, já fazem isso. Estimulam a gurizada a escrever a partir da própria experiência como uma forma de conversar consigo mesmos, se entender, entender a vida e então discutir com os colegas, entender tudo de novo, escrever de novo e, no processo, se integrar, fortalecer.

Mas por esta lógica de enxutez será que os antigos pensavam melhor do que nós? Eles tinham valores mais estabelecidos, parece, honra, principalmente, e os valores ficam impressos nos pensamentos e no discurso. Então talvez a solução fosse ensinar organização de caráter, estudar os próprios valores explicitamente: o que eu respeito? Com o que eu coopero? O que eu tolero? O que não?

Pois é. Eu gostaria, sim, que o nosso meio não atrapalhasse o nosso fim. Mas se, além disso, concluíssemos que o nosso fim são os nossos valores (os quais, junto com a linguagem, também não deixam de ser os nossos meios) ? e exatamente que valores são esses ? quem iria nos segurar?

1 A arte é longa, a vida é breve; o sol brilha para todos; a fama passa; as palavras passam, a escrita permanece.

* Sandra Costa é tradutora de Inglês e freqüenta a Oficina de Criação Literária da PUC/RS. Porto Alegre.

 

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