MOVIMENTO

“Viver como índio, não como colono”

Valéria Ochôa / Publicado em 29 de outubro de 1998

Felipe Brisoela nasceu na região das Missões e até os 14 anos de idade viveu em Camaquã. A partir daí, passou a peregrinar pelo Brasil, Argentina e Paraguai. “Queria saber como nossos antepassados viviam, como moravam, se alimentavam. Eu queria recuperar nossa cultura para que nós continuássemos vivendo com ela”, conta. Recorreu aos índios mais velhos. “Trabalhei também com os escritos dos brancos, eles têm livros, mas sabe como é, a verdade nunca está no papel. Está nas pessoas”.

Em suas andanças, Brisoela diz que encontrou uma história triste, de muitas perdas. “O Mbyá tinha a mente aberta, livre, era feliz. Hoje, sente que nunca mais vai alcançar a liberdade, as matas, o modo como vivia antigamente. A paz acabou”, revela. “Sabemos isso porque conhecemos muito bem como é a política do branco. Eles têm as leis deles e a gente respeita, mas não respeitam as nossas”, acusa.

SEM EIRA – Brisoela, que participa de fóruns e reuniões governamentais realizadas no estado para discutir a questão indígena, acredita que o primeiro passo para começar a resgatar a cultura indígena é a conquista de áreas demarcadas. “Isto é fundamental”, assegura. “Tendo nossa terra, poderemos nos organizar. Sem isso, fica difícil reunir a comunidade até para fazer a Opy. Queremos terra para vivermos com as nossas leis, para passarmos nossa tradição de pai para filho, para que nossas crianças passem a pensar mais como Mbyá-Guarani”. Com terra definida, Brisoela acredita também que vários problemas enfrentados atualmente pela comunidade indígena, como o alcoolismo e a fome, poderão também ser equacionados. “Teríamos lideranças nossas para trabalhar estas questões”, acentua.

Reduzidos a cerca de mil pessoas em todo o Rio Grande do Sul, os Mbyá-Guarani estão passando por sérias dificuldades, assegura Brisoela. Ele diz que muitas famílias estão acampadas nas margens de estradas, sem a menor infra-estrutura. Para se alimentar, dependem de doações e da venda de artesanato. É cada vez mais freqüente os que buscam arrecadar alguns trocados pelas ruas das cidades para sobreviver. “Não gosto de ver ninguém mendigando, mas o que eu posso fazer se eles têm fome? A gente orienta para não pedirem nada, mas se eu tirar eles da rua aonde vou colocar?”, indaga.

Os índios também estão a mercê da chuva e do frio, sem a mínima assistência médica. Neste ano, crianças morreram de complicações respiratórias em acampamentos do município de Passo Grande. O fato foi levado ao Tribunal Permanente dos Povos, realizado em Porto Alegre no dia 29 de julho, que acabou condenando a União e o Estado por insuficiências de ações na área da saúde.

NEM BEIRA – Brisoela afirma que hoje nas reservas onde os processos demarcatórios estão em andamento a situação não é muito diferente. Na Cantagalo, uma área de 47,2 hectares de Viamão, divisa com Porto Alegre, vivem 15 famílias guaranis. Cerca de 40% da área é de mata preservada. Para o cultivo, cada família tem à sua disposição de um a dois hectares. “Eles não conseguem sobreviver do que plantam”, conta o agrônomo Ricardo Schmitz, 43, da Fundação Gaia, ONG ambientalista que desenvolve um trabalho de extensão em agricultura ecológica na reserva do Cantagalo e da Pacheca (no município de Camaquã). “É uma área muito pequena para a agricultura. Quando chega janeiro, acaba a comida”, revela.

O agrônomo destaca ainda que o solo é arenoso e empobrecido, o que dificulta a agricultura tradicional. “Nosso trabalho é de incentivá-los a plantar, preservar suas sementes e de fazer um reflorestamento com árvores frutíferas e o cultivo de ervas medicinais”.

COLONOS – Para Brisoela, a reserva Cantagalo como está, não lembra uma comunidade Mbyá-Guarani. “São colonos. Não vivem em casa de Mbyá, mas sim em barracas”, observa. “Mas apesar de pequena, a terra já está demarcada. É nossa. E isso é um passo para nós começarmos a nos organizar. Em outro lugar não dá. Sabemos isso porque conhecemos a política do branco”.

Na Cantagalo, a Fundação Nacional da Saúde (FNS) construiu alguns banheiros de alvenaria próximos as barracas de papelão, plástico e palha. Só que não podem ser utilizados. Motivo: não tem canalização de água. Aliás, a água usada pelos moradores da reserva correm por pequenas mangueiras pretas. “A coisa não está fácil”, diz o vice cacique Teófilo Gonçalves.

DESCRÉDITO – Nas reservas do Salto do Jacuí (no município do mesmo nome) e da Pacheca a situação está um pouco melhor, segundo Brisoela. “Nestas áreas, já estamos conseguindo resgatar um pouco de nossa tradição. Também, a área é maior e tem menos famílias vivendo lá. Mas há muitas coisas ainda que temos que mudar. Precisamos manter nossos alimentos naturais. Muitos índios estão morrendo por causa da comida do branco. Hoje se usa até óleo para fazer a comida”. Na reserva da Pacheca, que tem 1.780 hectares e ainda está sendo demarcada pela Funai, moram quatro famílias.

Brisoela diz que não gosta muito de dar entrevistas. “Muita gente vem aqui, pergunta as coisas, estuda a gente e depois vai embora. Não sabemos nem o que foi feito do que dissemos e acabamos sempre nos virando sozinhos mesmo”, explica. Ele acredita mais no trabalho das lideranças na preservação da cultura Mbyá-Guarani junto à sua comunidade. Também, concentra suas forças na conquista de terras demarcadas. “Queremos 36 áreas em todo o estado para colocar todas nossas famílias nelas”, declara.

Casado com Nélida, pai de Luiz, 6, e Liliane, um ano e três meses, Brisoela está organizando uma área, de 10 hectares, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, para o atendimento médico-odontológico dos guaranis. O trabalho está sendo realizado com o apoio das demais lideranças Mbyá-Guarani, o Ministério da Saúde e a prefeitura de Porto Alegre. Doada à comunidade Mbyá-Guarani pela extinta organização não governamental PMG, essa área também serve como base para encontros e reuniões da tribo.

500 anos de invasão

O Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (Capoib) condena os festejos triunfalistas em torno dos 500 anos de descobrimento do país, que está sendo preparado pelo governo federal, empresas e instituições. “Para nós, povos indígenas, não se trata de descobrimento, e sim de uma invasão”, assinala o texto do Capoib remetido ao papa João Paulo II e ao presidente Fernando Henrique Cardoso.

A carta denuncia a situação de miséria imposta aos índios brasileiros nestes 500 anos, sublinhando que, em 1500, quando os portugueses chegaram, havia uma população de 5 milhões de índios que hoje está reduzida a 330 mil. Conforme o documento do Capoib, estes números revelam o sistemático genocídio dos indígenas. Através de crimes violentos como as mortes do cacique Chicão Xucuru e do pataxó Galdino Jesus, que compõem uma lista de 40 assassinatos recentes de líderes indígenas. “Nenhum desses assassinatos foi condenado pela Justiça porque matar índios no Brasil nunca se constituiu crime”, assinala a carta. Mas o igualmente dramático é a ausência de políticas adequadas de saúde, educação e garantia de terras.

Por tudo isso, o Capoib está organizando um evento paralelo às comemorações do descobrimento. Nos dias 22 e 23 de abril do ano que vem vai reunir 2 mil lideranças indígenas do país em Coroa Vermelha, o local da Bahia onde os portugueses rezaram a primeira missa em território brasileiro.

Notas 

Recorde
A taxa média de desemprego em setembro ficou em 7,65% da População Economicamente Ativa (PEA) no Brasil. O dado é do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa é a maior taxa de desemprego já registrado num mês de setembro pelo IBGE.

Agricultura regenerativa
Acontece nos dias 9 e 10 de dezembro, o curso sobre Agricultura Regenerativa promovido pela Fundação Gaia. O curso será realizado no Rincão Gaia, sede rural da entidade, em Pantano Grande. Dirigido aos pequenos agricultores familiares, técnicos e agrônomos, veterinários, professores, estudantes e ambientalistas, o curso será ministrado pelos engenheiros agrônomos Ricardo Schmitz e Deniandro Rocha e pelo educador ambiental Alexandre de Freitas. As inscrições estão abertas a um custo de R$ 40,00 (incluindo café da manhã, lanche, almoço, janta e pernoite). As vagas são limitadas. Informações e inscrições pelos telefones (051) 331-3105 e 330-3567, diretamente na sede da entidade (Jacinto Gomes, 39, bairro Santana, Porto Alegre) ou pelo e-mail fundgaia@zaz.com.br.

Desenvolvimento Alternativo
Nos dias 21 e 22 de novembro, será realizado o seminário Projeto de Desenvolvimento Regional Alternativo, no auditório da antiga sede da Unisinos (Rua Brasil, ao lado da prefeitura municipal de São Leopoldo). Informações pelos telefones (051) 233-4101, 590-1611 e 568-2548.

Protesto
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) está organizando uma série de protestos contra o ajuste fiscal e de defesa do emprego. A sexta-feira, 13, servirá como termômetro. Se as manifestações tiverem sucesso, a CUT quer organizar uma greve geral. Durante as atividades, serão discutidas propostas para enfrentar a crise.

Energia limpa
Mais de 3 mil delegados de 174 países participam, em Buenos Aires, Argentina, da 4ª Conferência Mundial sobre Mudança Climática, organizada pelas Nações Unidas. O principal objetivo da conferência, de 3 a 13 de novembro, é adotar medidas para conter o aquecimento da Terra. Também se buscará aplicar o Protocolo de Kioto, compromisso assumido por diversos países, em dezembro do ano passado, para a redução gradual das emissões de gases produzidos por combustíveis fósseis.

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