OPINIÃO

Tudo a ver

Publicado em 29 de novembro de 1998

Há uma demanda e alguém disposto a satisfazê-la. Nada demais, apenas a clássica relação entre a oferta e a procura. De um lado, a legítima aspiração. Do outro lado, a oportunidade de explorar um bom nicho de mercado que, além da quantidade de consumidores potenciais, não conta com a concorrência sempre intrometida do Estado. Estaria tudo perfeito não fosse o acesso à educação um direito fundamental estabelecido na Constituição do Brasil e na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Não fôssemos o país que somos nem compreenderíamos termos como o analfabetismo. Nem teríamos cunhado expressões como “educação de adultos”. Mas somos irremediavelmente brasileiros vivendo no Brasil das desigualdades e da ausência de políticas sociais.

Essa negligência do Estado, parceira do fracasso escolar, explica o fenômeno da expansão da educação privada para adultos que não tiveram condições de estudar quando criança. Essa história de adulto analfabeto ou com formação incompleta de primeiro grau sempre lembra instituições como o Mobral, expressões como artigo 99 e Madureza. Na certa, os modernistas pensarão que se está falando de dinossauros. Mas os dinossauros estão vivos, faturam muito dinheiro, têm sedes nos locais mais valorizados da especulação imobiliária e se dedicam a ganhar dinheiro.

A reportagem de capa desta edição mostra um vertiginoso crescimento das escolas de suplência. Detectado o fato econômico visível em materiais promocionais e de publicidade, fomos verificar as razões desta expansão, que só poderia ser justificada por uma volumosa demanda de adultos por educação. O resultado da investigação revela números impressionantes. Conforme esses dados oficiais do próprio MEC, mais da metade dos brasileiros matriculados este ano no ensino médio, o 2º grau, já completaram 18 anos. Isto é, 53,6% de uma população de 6,9 milhões de estudantes deveria estar concluindo o curso e ingressando na universidade. As estatísticas denominam estes alunos de atrasados, apresentam defasagem na relação idade-série.

Este quadro do ensino médio é conseqüência do que se verifica no ensino fundamental, o 1º grau: dos 35,8 milhões de alunos brasileiros matriculados no ensino fundamental este ano, 16,7 milhões já repetiram pelo menos uma vez. Deste total de repetentes, 8,5 milhões já completaram 14 anos e deveriam estar cursando o ensino médio. O atraso ocorre em cascata, pressionando jovens e adultos que precisam elevar a escolaridade para disputar as reduzidas vagas do mercado de trabalho. Apesar disso, apenas um estado brasileiro, Minas Gerais, implantou programa de “classes de aceleração”, em que o aluno conclui o ensino médio em três semestres. É a versão pública do supletivo. Em relação ao ensino fundamental, há classes de aceleração na esfera pública que atinte 1,18 milhões de brasileiros. Mas o Rio Grande do Sul, que tem mais de 640 mil analfabetos e 2,12 milhões de pessoas que estudaram menos de quatro anos, ficou fora do programa do governo federal porque tem a menor taxa de alunos defasados, 22,6%, inferior à media nacional, que é de 46,7%. A esses milhões de brasileiros e gaúchos não resta outra alternativa: os supletivos privados. Os empresários da educação comemoram as potencialidades do mercado. Tudo de a ver com esses tempos em que o mercado virou deus.

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Mas nem tudo é perverso neste país. Entrevista com o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, descrevendo a trajetória deste religioso que enfrentou a ditadura militar no país, demonstra que a palavra solidariedade não está morta. Aos 77 anos, este franciscano de hábito, mesmo tendo deixado a Diocese de São Paulo, uma das maiores do mundo, diz que ainda há muito trabalho por fazer. E fazer pelos pobres, claro, fiel ao seu voto de pobreza.

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