GERAL

“O homem vale pelo que é, não pelo que produz”

por: Marcia Camarano fotos: René Cabrales / Publicado em 28 de abril de 1999

Com o fim do carnaval, caiu a máscara. A realidade que os brasileiros tentaram esquecer nas folias de Momo voltou com toda força já na quarta-feira de Cinzas. Quem tratou de refrescar as memórias foi a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), através da Campanha da Fraternidade deste ano, “Sem Trabalho, por quê?”. A campanha que chega nesta Páscoa a seu final mostrou preocupação com os rumos econômicos do país, ao privilegiar a economia de mercado em detrimento do emprego, da sociedade e do homem. Em 40 dias, a CNBB alertou o país sobre a falta de dignidade que existe no desemprego. “Optamos por um assunto de forte apelo social para avivar a consciência das pessoas, discutir com a sociedade os caminhos alternativos”, diz o secretário-executivo da CNBB no Rio Grande do Sul, padre Vitor Hugo Gerhard. Ele afirma que a campanha da fraternidade não foi apenas mais um discurso. “A pregação de Jesus Cristo valorizava o homem pelo que ele é, não pela sua capacidade de produzir esta ou aquela mercadoria”, explica.

Extra Classe – Por que o tema do desemprego na campanha de 1999?

Padre Vitor Hugo – A CNBB nacional tem uma assessoria permanente que faz não só uma análise da conjuntura do momento, mas também uma análise da estrutura da sociedade e da Igreja no Brasil e no mundo. Há dois anos, nos pareceu que o projeto econômico do país, muito enfocado na economia de mercado (alguns preferem chamar de neo-liberalismo), iria provocar esse tipo de situação, que é o desemprego em massa. Por uma série de razões. Uma delas é a tecnologia de ponta, que envolve a informatização, a robotização, a modernização dos parques industriais. Uma segunda razão é que a lógica de mercado dos últimos anos é excludente. Costumo usar uma figura de linguagem: um alambique, para produzir uma garrafa de cachaça da boa, pura, azulzinha, deixa para trás uma montanha de bagaço. Essa é a lógica da economia de mercado. Para existir uma pequena quantidade de burguesia, com todas as benesses da modernidade, é necessário uma imensa quantidade de marginais que não têm acesso a nada.

EC – E não há nada a fazer?

PVH – Enquanto prevalecer essa lógica de mercado, a coisa vai ser assim. Aí é que podemos falar do tema da Campanha da Fraternidade, que aborda o emprego e não o trabalho. É diferente. Quando se fala em emprego, queremos dizer “esquemas ocupacionais da população”, isto é, estabilidade, um determinado posto de onde se tire o sustento. Só que esse tipo de ocupação na atualidade não vale mais. O que vale hoje – e esse é o coração que está sendo discutido na Campanha da Fraternidade – é a valorização da produção humana. Isto é, postos de trabalho onde a pessoa possa se valorizar e ser valorizada. A questão do desemprego, no fundo, é a necessidade de uma nova ordem social e econômica que contemple não só alguns setores da sociedade civil, mas todos. Quando num país como o nosso você vê mais de 50% da população economicamente ativa mergulhada no submundo do trabalho, ou trabalho informal, é sinal de que alguma coisa não vai bem. São pessoas que vendem sua mão-de-obra ao preço da tabela do mercado negro e não mais sob a proteção das leis.

EC – Como a doutrina cristã trabalha esta questão?

PVH – Pegamos em cheio aquilo que foi um dos eixos da pregação de Jesus Cristo, que é a valorização do ser humano pelo que ele é e não pela sua capacidade de produzir ou não produzir para o mercado. Jesus Cristo, em várias ocasiões no Evangelho, fala nos trabalhadores.

EC – Há alguns anos, o desemprego recaía sobre uma parcela explícita da população: com pouco estudo, sem qualificação profissional, negra ou com idade avançada. E agora?

PVH – Até há bem poucos anos se falava nas dificuldades da mulher no trabalho. Se fosse negra, pior, mão-de-obra não qualificada etc. Hoje esses parâmetros continuam existindo, mas não são exclusivos. A situação é muito mais complicada. Há distorções como advogados trabalhando de motorista de táxi ou arquitetos trabalhando em lancheria. Um dado da Pastoral do Migrante informa que há mais de 2 milhões de brasileiros no exterior. Você encontra muita gente qualificada limpando pratos lá fora. E o que eles ganham lá corresponde ao que ganhariam aqui no exercício de suas profissões. Hoje em dia, a valorização ou a depreciação da mão-de-obra e do trabalho é um problema nacional e internacional ao mesmo tempo. Porque não se sabe para onde o vento vai soprar nos próximos três ou cinco anos.

EC – É um problema global?

PVH – Hoje não se fala tanto na dependência do Terceiro Mundo, mas em interdependência internacional, onde a questão das fronteiras geográfica nacional está submetida à fronteira da dívida externa. A dívida brasileira é impagável e não é só a CNBB que diz isso. Não pelos juros absurdos e seu volume, mas porque ela já foi paga mais de uma vez ao longo de anos e anos. Quando foi deflagrado o movimento golpista, em março de 64, a dívida internacional do Brasil era de US$ 2 bilhões. Hoje, se fala em números astronômicos e impagáveis, além dos US$ 300 bilhões. Então, de fato, a conjuntura internacional, as relações dos países hoje em dia sofrem muito mais a interdependência marcada pela questão econômica, mercadológica e de consumo do que propriamente de antigos colonialismos nacionalistas.

EC – O senhor acha que o Brasil hoje é vítima de uma agiotagem internacional?

PVH – Sim, não tenho a menor dúvida. Enquanto prevalecer esse tipo de regra que estão sendo exercidas, o Brasil não vai dar um passo à frente. Quando os nossos governantes, salvo as mentiras que dizem, anunciam que o Produto Interno Bruto (PIB) de 1998 encurtou em 0,5%, enquanto a população cresceu 1,5%, significa que ficamos ainda mais pobres. Por causa das negociatas internacionais e por causa de um modelo interno que não valoriza o que é possível se produzir aqui. Como imaginar que um país com um território como o nosso precise importar grãos? Qualquer movimento de centavos ou dólar faz com que o pão na mesa fique mais caro.

EC – Além da criar consciência nas pessoas, existe um trabalho concreto da igreja em relação ao desemprego?

PVH – A Campanha da Fraternidade tem um texto-base, que é como a igreja aborda o assunto. O agir forma uma das partes, onde se levantam algumas propostas. Este ano, apresentamos nove propostas de abordagem prática para tentar encontrar caminhos que levem à ocupação humana. Entre elas (quem não comunga da fé cristão pode achar ingênua ou ridícula) é a solidariedade entre os fracos. Estamos propondo que as paróquias criem grupos que identifiquem famílias desempregadas e a caridade cristã seja alternativa, através de pequenas ajudas, como ranchos ou encaminhamento em caso de doença ou escola. Outra iniciativa – que não é novidade, mas reforça o trabalho da igreja – é o PAC (Projeto Alternativo Comunitário). Na prática, são grupos que se organizam para a intervenção na economia de forma alternativa. Exemplo: em Novo Hamburgo, existe uma cooperativa de agricultores e de trabalhadores. Eles mesmos produzem e comercializam o que plantam. É estabelecida uma parceria em que a lógica é a necessidade das pessoas, e não a do mercado. Outro exemplo são pequenos grupos que produzem bens de consumo, como sabão alternativo, produtos biodegradáveis ou reciclagem que a sociedade de consumo considera lixo. São projetos alternativos que na lógica do grande mercado podem ser motivo de riso, mas que podem ser a solução para a ocupação das pessoas, valorização da mão-de-obra e criação de postos de trabalho e geração de renda.

EC – E onde entra a defesa da reforma agrária nesse processo?

PVH – A reforma agrária é uma necessidade. Não há país no mundo que tenha conseguido dar passos significativos sem ter passado por um processo de reforma agrária. O Papa tem até defendido a idéia bíblica do jubileu – que tem mais de 4 mil anos – onde a cada período de tempo os bens produzidos pela humanidade eram redistribuídos para eliminar possíveis injustiças. E a terra é um bem de toda a humanidade, não pode ser submetida ao critério da propriedade particular. As terras devolutas são na verdade patrimônio do povo brasileiro e não dos governantes. A terra hoje considerada particular tem que passar pelo critério da destinação social. Há documentos da Igreja – e o Papa os tem citado muito – que diz assim: “não é licito esconder embaixo da tua terra o pão que falta na mesa dos homens”.

EC – A Campanha da Fraternidade então defendeu a reforma agrária?

PVH – A campanha deste ano incentivou muito a associação em grupos de categorias sociais. Um exemplo forte são os trabalhadores sem-terra, que têm uma certa prática em fazer ocupações como forma de pressão. Quando os trabalhadores sem-terra, um punhado de gente às vezes semi-analfabeta, mal nutrida, mal vestida, sem nenhum poder, ocupa uma terra para fazer pressão a fim de que a reforma agrária saia, todos nós gritamos e nos impressionamos porque um grupo de despossuídos se organizou. Agora é interessante. Os grandes se organizam e às vezes se armam até os dentes, investem milhões de reais em lobbies poderosos para manipular a legislação brasileira e, quanto a isso, nós não nos surpreendemos. Achamos até que é natural. Então, os ruralistas formam sua quadrilha de homens armados, contratam bandos de jagunços e bandoleiros para matar gente nesse país, como já aconteceu nos últimos anos, e nós não nos surpreendemos. Mas quando as lavadeiras, as prostitutas, alguns desempregados, papeleiros, sem-terra se organizam, ficamos pasmos.

EC – Como a Igreja deliberou sobre o tema “Sem Trabalho, por quê” para este ano?

PVH – A metodologia é assim: em junho se reúnem em Brasília 50 assessores nacionais. Avaliamos a campanha do ano em curso, aprovamos a campanha do ano seguinte e fazemos a previsão do ano posterior.

EC – Então vocês já sabem qual vai ser a campanha do próximo ano?

PVH – A Campanha da Fraternidade do ano 2000 vai ser sobre a paz e os direitos humanos. Terá como tema “Dignidade Humana e Paz”, com o lema “Um Novo Milênio Sem Exclusões” .

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