OPINIÃO

Entre o bigode e a Ford

Nei Lisboa / Publicado em 28 de maio de 1999

Aceitei com muita alegria o convite do editor do Extra Classe para escrever uma crônica mensal aqui no jornal. E também com uma ressalva que deve ter lhe soado um tanto patética, a de que talvez me faltasse tempo. Presume-se, é claro, que o prazo de um mês seja mais do que suficiente para produzir vinte linhas de livre digressão.

Acontece que já acumulo funções na música e nas artes gráficas, piloto que sou de um pequeno birô de editoração ou, como prefere um velho amigo, tipógrafo metido à besta. Servicinho chato, ou criativo e saudável contato com a literatura, certo é que ajuda a manter as falangetas em forma. Mas há também a ferrugem do estilo, a se considerar, afora outra questão essencial: escrever, então – mas sobre o quê?

Não é que me queixe da falta de assunto, nem ousaria, com tamanha e trágica pendência entre o bigode e a Ford. Pensei até em propor neste espaço alguma espécie de desagravo à montadora, algo que atenuasse o sofrimento do Busatto e do Onix. Foi quase insuportável assistir ao luto dos dois, noite dessas na televisão, intercalado por imagens de antigos carrinhos e felizes operários numa fábrica do Henry. Também cogitei oferecer meus préstimos de microempresário para ressuscitar o futuro exterminado do Rio Grande. Apenas com o dinheiro vivo da proposta que a Ford dispensou, prometo transformar meu moquifo editorial no maior parque gráfico do hemisfério sul. Sistemistas e empregos espraiados de Guaíba a Livramento. Seria capaz até de pagar ICMS, coisa fora de moda.

Enfim, como dizia, assuntos não faltam nos primeiros meses do Olívio e nos possíveis últimos dias da Iugoslávia. Difícil é encontrar um tema que não se veja exaurido, em menos de vinte e quatro horas, diante da profusão de âncoras e CNNs que povoam nosso dia-a-dia. Difícil é algo que não tenha sido dito, replicado e caducado (Deus, a Ford se arrependeu e voltou atrás?) antes do fechamento do jornal; algo que não tenha sido comentado com maior propriedade pelo Verissimo, de quem já pretendo plagiar um pouco do humor e do refinamento. E que ainda assim interesse ao leitor, prioridade máxima. Não vale dissertar sobre o próprio cachorro.

Pensando bem, o Luther merece um parágrafo. Martin Luther King III. Puro vira-lata da Restinga, é capaz de convidar o ladrão para um osso. Mas a pinta que herdou de um parente capa-preta e o barulho que faz já me custaram alguns clientes aqui do birô. Para quem viveu e se lembra, falo do sobrado da antiga Coojornal. Agora você chega, toca a campainha e avista no portão dos fundos o vulto de um lobisomem colérico. Até hoje ninguém caiu de susto e, se acontecer, temos socorro garantido – no térreo funciona uma ótima fisioterapia. Mas fica difícil se concentrar no texto quando é lua cheia. Portanto, se num desses meses à frente (agosto, digamos) a crônica atrasar, aviso de antemão que o problema não é a falta de assunto – e nem sequer a falta de tempo.

É o cachorro, Flávio. É o cachorro.

*Nei Lisboa
é músico e artista gráfico

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