GERAL

A Ford queria a fábrica de graça

Flávio Ilha / Publicado em 25 de junho de 1999

O secretário estadual do Desenvolvimento e Assuntos Internacionais, Zeca Moraes, conheceu o céu e o inferno nas recentes negociações que empreendeu com as duas montadoras que têm contratos de instalação assinados com o estado. No caso da GM, adaptou o acordo às possibilidades do governo e saiu-se vitorioso. No caso da Ford, levou a culpa de ter expurgado um investimento de R$ 1 bilhão que, segundo alguns cálculos otimistas, poderia gerar 200 mil empregos no Rio Grande. Nesta entrevista, Zeca acusa a Ford de intransigente, desdenha das insinuações de que estava habilitado a negociar apenas com camelôs e faz uma revelação: o custo da montadora com a renegociação seria de apenas 10% do valor total do investimento. A seguir, os principais trechos da conversa do secretário com o Extra Classe

Extra Classe – Secretário, por que a Ford deixou o Rio Grande do Sul?

Zeca Moraes – Devido à mudança na conjuntura econômica para as montadoras. Há alguns anos, quando se iniciou o processo de corrida dessas fábricas para se instalarem no Brasil, havia uma avaliação de que no ano 2000 seriam comercializados no país algo como 3,5 milhões a 4 milhões de veículos. Só que houve uma reversão brusca nessas expectativas. Elas devem comercializar no máximo 1,2 milhão de carros no ano que vem. Isso, evidentemente, alterou a estratégia das empresas. Aquelas que estão com as fábricas prontas têm de entrar imediatamente no mercado, mas a fábrica que não está nem no alicerce pode perfeitamente retardar o seu processo de implantação e buscar melhores condições. Foi o que a Ford fez.

EC – O senhor quer dizer, com isso, que a empresa não saiu pela razão alegada, ou seja, pela quebra no contrato, mas pela conjuntura econômica desfavorável?

ZM – Sim, porque renegociar o contrato a Ford já havia renegociado com o governo anterior. O contrato inicial previa que a empresa buscaria R$ 700 milhões necessários ao investimento junto ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e que o governo do estado pagaria a diferença dos juros que passassem de 6% ao ano. A mudança da conjuntura econômica naquele período (setembro de 1998, durante a crise russa) levou o governo do estado a concluir que não podia manter a equalização porque os juros haviam disparado e que, portanto, o contrato se tornaria demasiadamente oneroso. Isso na avaliação do governo anterior. E, em função disso, houve uma nova negociação em que o governo passou a emprestar R$ 210 milhões de capital de giro e à Ford coube buscar o restante (cerca de R$ 500 milhões) no BNDES sem a equalização dos juros. Portanto, não havia na verdade porque não renegociar. É hábito. E isso já havia sido feito uma vez.

EC – Isso então foi usado como álibi para a Ford desistir de um investimento que não era mais interessante do ponto de vista econômico?

ZM – Na minha avaliação, a Ford só construirá uma nova fábrica no Brasil, na conjuntura atual, se ganhá-la de presente do poder público.

EC – Como o senhor reage às acusações de ser um mau negociador? De estar acostumado, na prefeitura de Porto Alegre (onde foi secretário da Indústria e Comércio) a tratar com camelôs?

ZM – Reajo com tranqüilidade porque essas críticas seriam feitas a qualquer pessoa que estivesse no papel que eu desempenhei no episódio. Além de ser uma crítica preconceituosa, porque não há demérito nenhum em negociar com camelôs. Como secretário durante quase dez anos em Porto Alegre, negociei sim com ambulantes – que, aliás, são uma escola muito interessante – mas também com comerciantes estabelecidos, com os permissionários do Mercado Público, com os empreendedores de shopping centers, com a Coca-cola. Estou tranqüilo porque tenho clareza de que, nas críticas que me foram feitas, havia a intenção apenas de enfraquecer a posição do governo na negociação. Quanto mais enfraquecida estivesse a bancada do governo, mais vantagens as empresas poderiam auferir no processo.

EC – O que deu errado nas negociações com a Ford?

ZM – Nada. Não houve negociação. No primeiro encontro com a Ford, o negociador designado (Waldemar Mussi, diretor-jurídico da companhia) já chegou dizendo que não estava autorizado e não tinha delegação para conversar. Isso na primeira reunião. Ele estava autorizado única e exclusivamente a escutar o que tínhamos a colocar. E a cada proposta que apresentávamos não se instituía um diálogo em relação ao contrato. Muito diferente da GM, em que havia apresentação de propostas e argumentação e onde se preservou, de lado a lado, o que foi considerado mais importante. Com a Ford não se estabeleceu um efetivo processo de negociação. Ela foi intransigente ao exigir a manutenção integral do contrato. EC – O que o governo ofereceu de concreto à Ford? ZM – A proposta final, que até agora não recebeu manifestação formal por parte da companhia, não contestava os incentivos fiscais concedidos e propunha que o estado buscasse junto ao governo federal e à prefeitura de Guaíba os recursos (cerca de R$ 100 milhões) para viabilizar determinadas obras que estavam sob responsabilidade estadual. Propomos até um financiamento à prefeitura de Guaíba para viabilizar as obras, que seria pago somente a partir do retorno obtido na arrecadação do município. Tudo para viabilizar o investimento. O estado mantinha outros R$ 70 milhões em recursos e mais R$ 85 milhões em obras, o que dá R$ 255 milhões. Com mais R$ 75 milhões das obras no porto de Rio Grande, o custo da Ford seria de R$ 110 milhões, que além disso poderiam ser colocados no financiamento do BNDES. Isso é 10% do investimento total. As condições para um acordo estavam dadas.

EC – Então, por que o acordo não saiu?

ZM – A Ford ganhou tempo e está procurando buscar condições ainda mais vantajosas que o Rio Grande do Sul ofereceu. Se ganhar a fábrica de graça, se instala. EC – O senhor tem ojeriza a empresários? ZM (rindo) – Tenho relações pessoais com um conjunto bem razoável de empresários. O que se tentou, nesse episódio, foi estigmatizar os negociadores do governo, fossem eles quem fossem. Tenho tido vários contatos muito produtivos com empresários. É que uma parte do setor produtivo, na verdade, não reconhece esse governo como seu, de empresários. O tratamento, no nosso ponto de vista, está sendo respeitoso. Mantém o mesmo espaço de consideração que ao conjunto da sociedade e isso talvez cause estranheza na medida em que muitos estavam acostumados a governos seus, constituídos por empresários ou por seus representantes, pessoas vinculadas fundamentalmente ao interesse empresarial. Este governo tem interesse no desenvolvimento do conjunto do estado e na melhoria da qualidade de vida do conjunto da sua população. Isso pode significar contrair interesses.

EC – Com que conseqüências?

ZM – Na realidade, nosso objetivo é uma sociedade mais justa e adequada à população gaúcha no seu conjunto.

EC – A perda da Ford não traz sérias conseqüências econômicas e políticas à essa população?

ZM – Bem, nós não dispúnhamos de R$ 440 milhões para repassar à empresa. Esse é um dado. E, por outro lado, há coisas importantes que precisam ser trabalhadas nessa dimensão econômica. Na região metropolitana de Curitiba, por exemplo, onde há três montadoras instaladas e funcionando, o desemprego é de 19% (maior que em Porto Alegre). Essa idéia mágica de que a instalação das montadoras por si só resolve o problema do desemprego não é verdadeira. Os empregos diretos são poucos e, além disso, a taxa de nacionalização não é tão alta assim. Boa parte dos componentes será importada de outros estados ou de outros países. Na Navistar (montadora de caminhões que está se instalando em Caxias do Sul) a taxa de nacionalização é de apenas 40%. Ou seja, mais da metade dos componentes virá de fora do país.

EC – E em termos de arrecadação de impostos?

ZM – A Ford só pagaria ICMS integralmente ao Rio Grande do Sul em 20380.

EC – Qual a receita do senhor para desenvolver o estado?

ZM – Reforçar a matriz econômica existente aqui.

EC – Isso é suficiente para um estado com as pretensões do Rio Grande?

ZM – Os setores tradicionais da nossa economia – agropecuária, calçados, plásticos etc – têm um potencial de geração de emprego e renda muito significativo. Mas é óbvio que o estado deve também dar um salto para a frente, o que significa atrair setores que sejam estratégicos no século 21 e não que foram estratégicos neste século. A indústria automobilística jogou um papel muito importante na primeira metade do século 20 e manteve esse papel até o final. Mas não se compara mais à biotecnologia ou à informática.

EC – Na sua opinião, como estará o estado economicamente daqui a quatro anos?

ZM – Estamos construindo uma nova estratégia de desenvolvimento, em que o governo tem papel importante como indutor do investimento. O primeiro momento é de dificuldade, porque precisamos reestruturar o estado, sanear as finanças. Mas temos convicção de que teremos no Rio Grande um ambiente propício à atividade econômica, à geração de emprego e à distribuição de renda. Portanto, teremos um estado, do ponto de vista econômico, mais saudável.

EC – O senhor vai incentivar o plantio de batata e cenoura nos 932 hectares reservados à Ford?

ZM (rindo) – Vamos estudar o aproveitamento da área e as suas possibilidades econômicas, entre as quais não está o plantio de batata e cenoura.

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