CULTURA

O mar e a bússola

Luiz Carlos Barbosa / Publicado em 25 de junho de 1999

Entre 21 de julho e 24 de agosto transcorre o centenário de Ernest Hemingway e Jorge Luis Borges. Por razões distintas, esses dois escritores arrebataram também diferentes leitores neste século. O mar de Hemingway é a saga do homem em combate. A bússola de Borges é o movimento da alma ordenadora, comentando hipóteses e conjeturas

Cada um deles domina um elemento essencial à literatura. Hemingway, a concisão – linguagem direta e enxuta, livre de floreios desnecessários. Borges, a profundidade – pensamento reflexivo de perspectiva filosófica. A par disso, um não tem nada a ver com o outro, a não ser o fato de terem nascido no mesmo ano de 1899. No mais, a distância que separa Illinois, nos Estados Unidos, e Buenos Aires, na Argentina, os lugares onde eles nasceram, é equivalente ao estilo dos dois escritores, cujo centenário transcorre em 21 de julho e 24 de agosto, respectivamente. “Jorge Luis Borges anda ombro a ombro com um James Joyce, um Franz Kafka, ao passo que Ernest Hemingway constrói o solo básico para uma literatura despojada”, resume o escritor e crítico Paulo Bentancur. A bússola de Borges é o movimento da alma ordenadora, do filósofo propondo hipóteses e comentando conjeturas. O mar de Hemingway é o do combatente, dos músculos do velho pescador em ação.

Segundo Bentancur, Borges é o único gênio latino-americano neste século, porque abre portas, caminhos até então inéditos. O escritor gaúcho faz eco à opinião não menos balizada de outro dos grandes da literatura americana de língua espanhola, o poeta mexicano Octávio Paz: certa vez ele afirmou que Borges fora o criador de uma “obra única, edificada sobre o tema vertiginoso da ausência de obra”. Bentancur atenta que personagens, situações e citações – reais ou não – na ficção borgeana são comentados de tal forma que se parecem à referências para uma pesquisa sistemática.”A ficção de Borges é como um verbete de enciclopédia, transformando o narrador em um crítico a serviço do ficcionista”, compara. “Convenhamos, não é fácil fazer emergir de um personagem épico – pressionado pela ação e pelo tempo – o homem como um exemplar único de todos os tempos”, acrescenta Bentancur. Ele sustenta que somente a síntese de um estilo de filósofo e poeta poderia produzir este resultado que, para o cientista Ivan Izquierdo, argentino naturalizado brasileiro, não é apenas conto ou poesia. “É literatura, igual que Dante e antes que Shakespeare”, esclarece.

O doutor em Medicina, pesquisador e professor da UFRGS concorda que os contos de Borges estão no mesmo patamar de Kafka. “É um mundo onde se entra e é difícil sair, porque o leitor de Borges passa a ser personagem”, expressa Izquierdo, leitor dedicado de Borges porque, afinal, o escritor argentino – que morreu em 1986, depois de viver 30 anos quase cego – trata do que ele chama de temas fundamentais da vida: tempo, memória, amor. Ele acredita que Borges criou mais do que uma escola, mas seus muitos imitadores chegaram apenas à caricatura, porque não atingiram a magia de personagens que, sonhando, criam outra pessoa ou reinventam o mundo. O vínculo à tradição da literatura fantástica que o antecedeu – expressa, por exemplo, na obra do contista uruguaio Horacio Quiroga – foi amplificada por um procedimento ensaístico que o faz herdeiro do conto filosófico do século XVIII, de Voltaire. A observação é do crítico Davi Arrigucci Jr. no prefácio da edição brasileira de “Ficções”, publicada pela editora Globo, com tradução do escritor gaúcho Carlos Nejar.

Semelhante opinião tem o poeta, ensaísta e crítico de arte Armindo Trevisan. “Ele realiza um desvendamento do mundo, através de uma “meta física”, não uma metafísica ontológica”, analisa o professor Trevisan, completando: “poderíamos pensar em surrealismo filosófico, que advém de interrelações oníricas, mágicas, que transfiguram objetos do cotidiano – a chave, a moeda, o relógio, a bússola – em um inventário de imagens e abstrações”.

Nem mesmo quando prevalece este domínio conceitual e digressões sobre aforismos reais ou fantásticos, recolhidos de obras existentes ou não, nunca desaparece a cadência do ritmo. “Que a prosa não deixa de ser poesia é uma profunda verdade. A poesia pode ser escrita de muitas maneiras, com versos de certo tamanho ou através da prosa”, argumenta Izquierdo, citando os exemplos de Machado de Assis e Victor Hugo.

“Borges nunca abandonou o verso clássico. Poderia cair no preciosismo, mas não, é sempre inconvencional. Tanto na prosa como na poesia, nunca se encontra uma palavra sobrante”, arremata Armindo Trevisan.

Hemingway, rito de passagem

Jornalista de talento singular e precoce, Ernest Hemingway chegou a elaborar regras de estilo que empregou com obstinação e orientou toda a produção do escritor. Jamais renúnciou às frases curtas, às construções claras e à economia de adjetivos. “Ele constitui um rito de passagem, construiu um solo básico, é um autor necessário à literatura deste século, mas prestou um serviço ainda maior ao jornalismo”, avalia o escritor e crítico literário Paulo Bentancur.

Segundo ele, a grande contribuição do autor norte-americano é a depuração da linguagem, ao subtrair as palavras desnecessárias à narrativa. Neste processo, analisa o crítico, o diálogo foi alçado a uma categoria rara. “O diálogo é um desvio da situação dramática e frequentemente opera como uma legenda da ação”, ensina, considerando: “em Hemingway o diálogo é verdadeiro, é a própria ação”.

Porém, Bentancur pondera que a crítica foi exagerada com o autor de “Do outro lado do rio entre as árvores”. Analisa que a idéia de “iceberg” de Hemingway – isto é, de que o difícil é não escrever tudo e deixar algo escondido – acaba condenando a obra literária a um caminho curto demais. Mas ele reconhece que “O velho e o mar”, escrito em Cuba, em 1952, e uma das obras mais conhecidas – até porque transposta para o cinema -, é uma bela realização do autor que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1954.

Talvez o escritor mais aplaudido em vida – chegou a receber do grupo Life US$ 250 mil por uma reportagem -, Hemingway foi protagonista e deliberadamente espectador privilegiado dos fatos que marcaram este século – para servir na 1? guerra mundial mudou o registro de nascimento para 1898. Depois lutou na 2? guerra e se incorporou às forças antifranquistas na revolução espanhola. Destas vivências resultaram pelo menos duas obras, “Por quem os sinos dobram” e “Adeus às armas”. A exemplo de seu próprio pai, Hemingway também se suicidou, em 1961.

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