CULTURA

Que realidade que nada!

Luiz Carlos Barbosa / Publicado em 25 de junho de 1999

Equívoco comum – além da idéia de bibliotecas desatualizadas – é dizer que os jovens lêem pouco porque a literatura não têm a ver com a realidade deles. A questão é falsa. Não é o grau de conexão entre a literatura e a realidade que estimula a leitura. Ao contrário, é a surpresa, a apreensão do real pela perspectiva não prosaica. Além disso, a realidade em literatura, necessariamente, é mediada pela escritura, pela abundância de imagens e pelo amplo repertório de elementos humanos – aliás, critérios de qualidade e universalidade. Se não for assim, nem é literatura. Feitas estas considerações, aos fatos.

Nem tudo está perdido

Na mesma tarde em que recebia “Uivo, Kaddish e outros poemas”, do beat Allen Ginsberg, um rapaz de uns 20 e poucos anos saia da Livraria Aurora folheando o livro. Poesia inconformada na mão de jovem é sempre alento. Ainda mais nestes tempos em que a cultura da contracultura virou chatice: coisa de velhos melancólicos. É de supor que o paradigma de que uma polpuda conta bancária dá mais liberdade do que pôr o pé na estrada ainda não venceu completamente. Está certo que a produção da geração beat foi totalmente incorporada à indústria cultural e a rebeldia virou grife de mercado. Mas o relançamento da L & PM – revisado e atualizado pelo mesmo tradutor da edição que a editora fez em 1984, Cláudio Willer – é perfeito para cativar novos leitores. Willer comenta e anota a obra, oferecendo ao público um conjunto de referências para entender não só as matrizes temáticas e estéticas da criação de Ginsberg, mas o contexto histórico que permitiu a gestação da geração beat e de seus protagonistas, como William Burroughs e Jack Kerouac. No mínimo, a rapaziada de hoje fica sabendo que nem sempre o mundo foi feito de certezas tolas. E os sessentões ou quarentões que pegaram carona nas estradas poeirentas e se embriagaram nas calçadas molhadas se dão conta que nem tudo está perdido.

Positivismo no pampa

Já está em segunda edição o mais recente trabalho do professor e historiador Décio Freitas. Também pudera. “O homem que inventou a ditaduta no Brasil” é texto histórico para ler com o prazer de romance. O aspecto metalíngüístico da obra talvez tenha sido inspirado pelo Umberto Eco de “O nome da Rosa”. A estrutura narrativa empregada se baseia nos diários de um tal jornalista norte-americano A. Bierce. Ele esteve pelos pampas cobrindo uma das mais sangrentas guerras civis do Brasil que, entre 1893 e 1895, opôs os republicanos positivistas de Júlio de Castilhos e os federalistas de Gaspar Silveira Martins. Décio Freitas suspeita ser o mesmo Ambroise Bierce, o escritor e jornalista nascido em Ohio que cobriu a guerra civil nos Estados Unidos e desapareceu depois de se incorporar às brigadas de Pancho Villa, na guerra civil espanhola, inspirando o romance “Gringo Viejo” de Carlos Fuentes. A combinação de literatura e história em “O homem…” tem um resultado excelente para ambas e se constitui em mais uma revisão crítica da historiografia oficial, que desmitifica os ídolos e a própria isenção dos historiadores. Esta reflexão sobre o positivismo no pampa demonstra que a doutrina de Comte empregada na política rio-grandense fez escola no país.

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