EDUCAÇÃO

O cliente tem sempre razão

César Fraga / Publicado em 25 de agosto de 1999

Crescem agressões a professores em aula, tratados com tolerância pelas escolas

Uma professora de informática, ao cumprir determinação da escola onde leciona, impede que o aluno com trabalhos atrasados entre em aula para usar os computadores do laboratório. Como resultado, tem seu nariz quebrado por um soco do estudante. A reação da direção é ainda mais surpreendente: dá uma suspensão de uma semana para o agressor. Menos de 15 dias depois, a mesma professora está em sala de aula diante do mesmo aluno.

Em outra escola, um professor é agredido verbalmente pelo pai e pelo próprio aluno. No final do bate-boca, o educador recebe uma cotovelada no rosto desferida pelo rapaz. O pai argumenta: “Deixa pra lá, foi só um esbarrão”. Já um terceiro professor tem as notas dadas aos alunos alteradas pela direção. O motivo alegado é que a escola não poderia ter reprovações, pois perderia alunos. Ao discordar, o professor é demitido. Todas estas situações são verdadeiras e aconteceram recentemente em escolas da rede particular da região metropolitana de Porto Alegre. Os nomes dos profissionais, assim como das escolas envolvidas, são omitidos por motivos óbvios: os profissionais temem represálias.

Casos como esses têm sido comuns na rotina das escolas do estado, assim como cresceu o número de fatos comunicados ao Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS). Adiretoria colegiada da entidade avalia que o medo de perder alunos faz com que os estabelecimentos privados aumentem a pressão sobre os professores. Por outro lado, o medo de perder o emprego faz com que muitos profissionais aceitem situações como essas, de desrespeito e até agressões físicas.

“Quando a escola passa a se comportar como uma empresa, deve satisfazer os seus clientes. Desta forma os professores ficam subjugados a uma espécie de lei de mercado, muitas vezes endossando um falso êxito do aluno”, adverte o diretor do Sinpro/ RS Ângelo Dal Cin. “A escola é uma empresa e deve ser administrada como tal. Portanto, o aluno é o nosso cliente sim”, rebate o presidente do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino (Sinepe), Francisco Jardim. Para ele, não adianta querer mascarar a realidade: a escola que não se preocupar com qualidade fecha.

“Mas, por outro lado, este tipo de conduta é condenável pois atenta contra a qualidade que todos nós almejamos no ensino privado. É lamentável que coisas como estas ainda aconteçam”, justifica, referindo- se aos exemplos flagrados pela reportagem do Extra Classe. Por trás dos episódios, ressalta uma realidade: os estabelecimentos de ensino se pontuam cada vez mais pelo conceito de empresa, envolvendo seus projetos pedagógicos nessa estratégia.

As titulares da Faculdade de Educação da Ufrgs e doutoras em Educação Maria Beatriz Luce e Carmem Maria Craidy criticam a visão de que a escola deve se organizar como uma empresa. “A função da escola é formar cidadãos para o mundo”, defendem. Esta visão, de mercado, reduz o conceito de educação. “Isso é resultado de uma crença neoliberal de que tudo é mercadoria e de que o mercado regula todas as relações. Só que existem relações que são impossíveis de serem reduzidas, aquelas que dizem respeito ao desenvolvimento humano”, explica Carmem, que atua na área de Políticas e Gestão da Educação. “O homem deve ser sujeito e não objeto no processo e, com a mercantilização, esta ordem fica completamente invertida”, complementa Maria Beatriz, especialista na área de Educação e Exclusão.

Aos que criticam a visão de gerenciamento empresarial Jardim responde: “O que nós defendemos é que a escola particular tenha um compromisso com a educação e não necessariamente se veja esta educação como mercadoria”. Para ele, a acusação de que o comportamento adotado pelas escolas particulares é mercantil não procede. “O que queremos é mais qualidade para termos maior número de alunos”, questiona o dirigente.

Na verdade, a qualidade sempre é uma reivindicação de todos os setores envolvidos na questão educacional. “O que se quer é qualidade e maior democratização nas decisões da escola”, reforça o professor Ângelo Dal Cin.

Experiência australiana é criticada

Uma experiência avançada no que diz respeito à mercantilização da educação foi criticada pela professora da Faculdade de Educação e da Escola de Estudos Culturais e Política da Queensland University of Tecnology, (Austrália), Erica Mc William. Ela criticou o modelo corporativo “perfeito” e o conceito de escola empreendedora. Graças a essa visão, a noção tradicional de conhecimento vem sendo substituída pela idéia de que educação e treinamento devem ser contínuos.

Na Austrália, a corporativização das escolas, colégios e universidades aumentou na última década. A pesquisadora diz que no seu país o governo já não é o dono da educação, mas um comprador de serviços de diversos fornecedores. Segundo Erica, nem sempre estes fornecedores são escolas ou universidades. “Pode ser qualquer um”, adverte. O resultado é que as escolas públicas, com verbas reduzidas, são obrigadas a adotar as chamadas parcerias com a iniciativa privada para se tornarem “empreendedoras”. Com isso, estas escolas passam a se preocupar com nichos de mercado, inclusive com cursos pagos, e cada vez mais com resultados quantitativos.

No Brasil e na Austrália, de acordo com Erica, existe uma clara evidência desta corporativização. Tanto escolas públicas como privadas estão adotando estratégias mercadológicas, como gerenciamento de qualidade total e obtenção de certificados de qualidade. “Práticas, diga-se de passagem, já desacreditadas até mesmo no mundo empresarial”, lamenta a teórica.

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