MOVIMENTO

Viagem ao paraíso sitiado

Ilha de preservação de 14 diferentes etnias indígenas brasileiras, o Parque Nacional do Xingu sofre o assédio das madeireiras, do garimpo e dos turistas estrangeiros
Gilson Camargo e Marco Dierchxs (Fotos), do Xingu / Publicado em 25 de agosto de 1999

Infestado de jacarés e piranhas, com suas magníficas praias de areias finas e brancas, o rio Culuene é o único acesso entre a última cidade do Mato Grosso, Canarana, no trajeto selva a dentro em direção ao Parque Nacional do Xingu. A viagem de barco a motor até as aldeias está ficando cada vez mais lenta e perigosa por causa dos bancos de areia que em alguns trechos se estendem por todo o leito do rio e dificultam a navegação. Resultado da erosão provocada pelo desmatamento na nascente, a invasão do rio pela areia é a conseqüência mais visível da cobiça pelas terras preservadas por índios. A atividade das serrarias, que a cada semana surgem mais próximas dos limites do parque em busca de madeira nobre, e do desmatamento patrocinado por fazendeiros para a formação de novas áreas de pastagem para o gado, estão comprometendo a qualidade de vida das comunidades indígenas do Xingu.

Concebido pelos irmãos sertanistas Cláudio, Orlando e Leonardo Villas-Bôas, o parque surgiu em 1961, por um decreto assinado pelo então presidente Jânio Quadros. Localizado no centro geográfico do país, o Xingu abriga 3.200 índios de 14 diferentes etnias. Sua área de 27 mil quilômetros quadrados se estende desde São Félix do Araguaia, Canarana e Paranatinga, municípios rurais localizados no norte do Mato Grosso, até o estado do Pará. Fora dos limites do parque, a paisagem é desoladora. Aextração de madeira e a extensão das pastagens transformou o Xingu em uma ilha de preservação que ninguém -no entanto – sabe quanto tempo resistirá. “Estão chegando cada vez mais perto, desmatando as nascentes dos rios e envenenando a água que os índios bebem e de onde retiram seu alimento básico”, explica o índio Loike, da etnia Kalapalo Kuikuro. A sua aldeia está localizada às margens do Culuene.

Um levantamento fotográfico realizado pelo Instituto Sócio- Ambiental (ISA) na última semana de julho confirma que o cerco montado por madeireiras e pecuaristas não dá trégua ao Xingu. A devastação avança a cada dia em direção aos limites do parque, chegando a dois quilômetros da reserva em algumas áreas de difícil acesso para os fiscais. “Na Bacia do rio Xingu, 30% da floresta já foi devastada”, quantifica André Villas-Bôas, diretor da ONG, financiada por governos estrangeiros como o da Noruega e pelo cantor Sting e que realiza o trabalho de fiscalização e preservação da reserva em conjunto com os índios.

Os problemas da população nativa do Xingu não estão restritos à cobiça dos fazendeiros e madeireiros por suas terras ou à sistemática destruição e poluição das suas principais fontes de subsistência, a floresta e os rios. No Alto Xingu, região localizada na parte sul da reserva, estão também as nove tribos mais primitivas do parque: Kalapalo, Matipu, Nafuká, Kuikuro, Waurá, Aweti, Kamayurá, Meinako, Yawalapiti. Eles vêm mantendo intactas suas tradições graças a um isolamento maior em relação a outras regiões do Xingu. O preço disso é a falta de recursos e o assédio dos turistas.

O Posto Leonardo por exemplo – batizado assim em homenagem ao mais jovem dos irmãos Villas-Bôas – conta com escola, cozinha, posto médico e antena parabólica. Mas não há professores para alfabetizar as crianças nem médicos ou medicamentos básicos como soro antiofídico ou vacina antitetânica. Os casos de rotina são tratados com o que tiver à mão pela única enfermeira que faz plantão no posto. Doentes graves precisam ser levados para Canarana, numa viagem interminável que se divide no trajeto de oito a doze horas de barco pelo rio Culuene e mais quatro em cima da carroceria de um caminhão para chegar à cidade. Um trator, um caminhão e uma caminhonete que só pegam no tranco são os únicos meios de transporte. Quando um veículo ou lancha estragam, são abandonados porque não há mecânico no posto.

O contato com os caraíbas (que é como os nativos denominam os brancos) está ameaçando sua cultura, desagregando códigos sociais e espalhando o pânico nas aldeias. Numa visita à tribo Kamayurá, que soma 360 pessoas e foi a escolhida neste ano para a realização do Yamurekuman, a festa das mulheres, uma jovem da tribo Yawalapiti fez uma confissão que sintetiza a reação dos índios à presença cada vez mais constante de turistas estrangeiros nas aldeias: “Temos muito medo deles e do que eles podem fazer ao nosso povo e à nossa cultura”, disse, referindo-se aos turistas presentes na aldeia.

Os caraíbas, vestidos com seus safáris caqui, filmadoras e máquinas fotográficas profissionais em punho, desconhecem que os índios mantêm uma o r g a n i z a ç ã o social rigorosa e um código de ética que se aprende desde o berço, explica o prestigiado pajé Tacuman Kamayurá. Ninguém, por exemplo, está autorizado a se alimentar antes das crianças e das mulheres. Nas aldeias, a base da alimentação é o biju, feito com mandioca brava ralada e assada pelas mulheres, e peixe. A hierarquia reza que, nas solenes reuniões diárias promovidas pelos líderes e seu povo no centro da aldeia, a primazia da palavra é do pajé, depois o cacique.

Eles tratam de transmitir esses valores a todo momento para os mais jovens. A tradição, a língua e o imaginário são assuntos sagrados, transmitidos de uma geração para a outra pelo pajé ou pelos mais velhos. E ninguém mais está autorizado a contar histórias, especialmente os jovens. Aritana Yawalapiti, escolhido neste ano como líder das nove etnias do Alto Xingu – uma espécie de cacique dos caciques -, acredita que o desrespeito dos turistas a esses códigos são uma ameaça à harmonia nas comunidades e um risco iminente à preservação dos costumes. “O pessoal fica muito nervoso com essa movimentação. É estressante, especialmente para as mulheres e as crianças”, resume Aritana. “A organização social dos índios é considerada uma das mais avançadas da humanidade. Numa aldeia, tudo se converge para a comunidade. A pescaria é coletiva, a alimentação é distribuída entre todos. Ninguém trabalha ou age para acumular coisas e não há uma pessoa que detenha o capital. Ele é sempre repartido. É uma sociedade verdadeiramente comunista, já que o esforço coletivo tem um único objetivo: o bem estar de cada indivíduo”, analisa Ianaculá Rodarte, que administrou o parque de 1994 a 1998 e trabalhou como chefe de gabinete para quatro presidentes da Fundação Nacional do Índio, a polêmica Funai.

O resgate e a preservação da identidade cultural são uma questão pessoal para Rodarte. Filho do cacique Sampain, dos Kamayurá, e de mãe da etnia Trumai, ele deixou a aldeia aos cinco anos para ser adotado por uma família de brancos. Aos 20 anos, interrompeu o curso de Direito na Universidade de Brasília e retornou ao Xingu para pesquisar sua origem. Desde então, tem se dedicado a uma campanha de valorização da identidade cultural dos índios, na sua opinião a única maneira de amenizar o choque provocado pela aproximação com os brancos e a invasão da tecnologia e dos hábitos dos povos não indígenas. “Quando voltei para a aldeia, em 1976, comecei a perceber essa invasão”, relata. Hoje os próprios índios vendem artesanato e compram bicicletas, barcos a motor e filmadoras. Ele acha a aproximação inevitável, mas defende que ela não deve suplantar os valores culturais do índio. “A gente não pode ficar dependente desses instrumentos a ponto de querer vender madeira e destruir nosso patrimônio”, sintetiza.

Os visitantes fotografam e filmam à vontade nas aldeias, pagando até US$ 200 por pessoa. No Xingu, ninguém se preocupa em indenizar as tribos pela utilização das imagens, especialmente da nudez dos índios. No máximo, os turistas distribuem bolas de futebol, camisetas de clubes brasileiros e europeus (como o Barcelona), ferramentas, sabonetes e pilhas. Um custo muito em conta para dias de trabalho recolhendo imagens e sons que depois viram documentários, livros e filmes no exterior.

 

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