MOVIMENTO

Anistia? Que anistia?

Passados 20 anos da primeira tentativa de conciliação nacional, muitos excluídos ainda reclamam seus direitos usurpados pela ditadura
Márcia Camarano / Publicado em 24 de setembro de 1999

Não. A música Charles Anjo 45, de Jorge Ben, não é uma homenagem póstuma ao guerrilheiro escondido nos morros do Rio de Janeiro. Porque ele está bem vivo. Sobreviveu às perseguições e hoje leva uma vida pacata em Porto Alegre. Seu verdadeiro nome é Avelino Capitani.

No dia 18 de agosto ele completou 59 anos (a vida que levou se reflete nos traços do rosto, já que aparenta muito mais).

A sala da casa onde mora – uma doação de familiares – quase não tem móveis. Apenas dois sofás e uma mesinha para a TV. Foi decorada com balões para celebrar a data. Uma exigência que a filha Juliana, de cinco anos, fez à mãe, Teresa, mulher de Capitani. O presente? O que ele mais queria era ser incluído no rol dos anistiados, que completaram 20 anos de retomada dos direitos civis e políticos no final de agosto. Ele e outros 400 companheiros ainda não sabem o que é isso.

A história do marinheiro Avelino começou em 1960, no início de uma década polarizada por duas correntes: a esquerda nacionalista e a direita conservadora.

Essas eram as expressões da época. Gaúcho de Lajeado, Capitani ingressou na Marinha aos 20 anos. O colono do interior foi direto para o Rio de Janeiro. Dois anos depois, era criada a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais que tinha como reivindicações o direito ao casamento, o fim do livro de castigos, o direito a andar como civil em casa. A Marinha se negou a conceder esses direitos sociais e, sem muita saída, a Associação acabou se alinhando às chamadas forças nacionalistas.

O que veio depois é uma história pouco narrada nos livros oficiais, mas ainda presente na memória de seus personagens. “À tardinha, no dia posterior ao golpe militar, dez mil soldados estão a postos para atacar três mil marinheiros, aquartelados, com tanques e canhões; se aproximando do Rio, mais 50 mil soldados vindos de São Paulo”, recorda. Capitani estava no comando do movimento e viu homens chorando com a iminência da morte.

Como revanche à ousadia dos marinheiros, veio a perseguição às lideranças do movimento. Ao todo, 1.509 homens foram expulsos e processados; 400 foram condenados. A soma total das penalidades chega a 13 séculos de prisão, 1.300 anos, “a maior pena coletiva da história do Brasil”. A Marinha, além disso, mandou ofício circular para todas as empresas brasileiras proibindo dar oportunidade de emprego aos condenados. Sem alternativa de vida, muitos se refugiaram no interior, outros foram viver de biscate. E uma outra parte, onde

Capitani se inclui, caiu na clandestinidade. Capitani foi preso, fugiu, se asilou no Uruguai e fez treinamento de guerra em Cuba. De volta ao Brasil, clandestino, participou da Guerrilha de Caparaó – o primeiro foco guerrilheiro no Brasil. Foi mais ou menos nessa época que surgiu o codinome que o acompanhou por um bom tempo de sua vida: Charles Anjo 45.

O nome de guerra era Charles porque ele era loiro, parecendo um europeu. Anjo porque numa das penitenciárias foi atendido por um grupo de estagiárias de assistência social que o apelidaram de anjo loiro. E 45… bem, porque na guerrilha ele usava uma pistola 45.

Quando foi ferido, o anjo loiro subiu o morro para escapar do cerco. Na fuga, foi ajudado por moradores da favela, mas deixou um rastro de sangue. “Como eu desapareci, pensaram que eu estava morto. Daí o Jorge Ben fez a música”, relata. Capitani viveu clandestinamente até a promulgação da lei da anistia, em 28 de agosto de 1979. Só que a lei não o beneficiou.

Na verdade, Avelino Capitani não foi anistiado até hoje. “A Marinha sempre negou anistia aos marinheiros. Ela eternamente recorre na Justiça de um processo que ainda está em andamento”, reclama. Capitani foi anistiado dos crimes políticos, mas pleiteia seus direitos profissionais e a reintegração às suas funções. “Todos os políticos e comandantes estão anistiados; os marinheiros condenados, não. Os torturadores, inclusive os meus, estão anistiados; eu, torturado, não”. Em virtude disso, Capitani nunca conseguiu se aposentar e vive de trabalhos esporádicos.

Dos 1.509 marinheiros expulsos e condenados, cerca de 800 pediram incursão na lei da anistia (os outros morreram ou estão desaparecidos). A metade dos 800 conseguiu ser anistiada, outra metade ainda luta na Justiça. “Não sei se vou conseguir. Só faltam os marinheiros serem anistiados, nós somos perseguidos políticos até hoje”.

“Respirávamos autoritarismo”

Primeira presidente do Movimento Feminino pela Anistia no Rio Grande do Sul, Lícia Peres era estudante de Ciências Sociais na Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). O ar que se respirava na época era o do autoritarismo. “Não havia liberdade de expressão, a gente podia ser processada por crime de opinião”, lembra.

Proibido pensar, proibido fazer política. E lá se vão Brizola, Miguel Arraes, Francisco Julião, o sociólogo Betinho, o comunista Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, o educador Paulo Freire. A censura corria solta. Uma vez, Lícia e Mila foram ao temido Dops (Departamento de Ordem Política e Social) para buscar a atriz Ruth Escobar, que tinha sido presa por ter lido no palco um manifesto pela anistia.

Se em São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns desenvolveu papel importante na luta pela anistia, o mesmo não se pode dizer da Igreja no Rio Grande do Sul. O comitê liderado por Lícia e Mila chegou a visitar o cardeal Dom Vicente Scherer para expor os motivos do movimento. “Não conseguimos nada com ele”, conta Lícia.

Em 1976, Lícia acompanhou o marido em uma visita a Leonel Brizola, exilado no Uruguai. Foi a primeira vez que ela viu o ex-governador. “Brizola sempre esteve ligado ao Brasil e demonstrava uma enorme vontade de voltar”, conta. A gana de voltar manifestada pelos exilados foi alimentando o movimento a tal ponto que, em 1978, já existia o Comitê Brasileiro pela Anistia.

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