OPINIÃO

Aviõezinhos

Veríssimo / Publicado em 24 de setembro de 1999

O mercado tem a sua moral, e ela não tem nada a ver com o certo e com o errado. No mundo dos espetáculos, que é desde ontem o mundo preferencial deste Governo, a única moral é a dos níveis de audiência. Assim os baixos índices do Governo nas pesquisas de opinião conseguiram o que cinco anos de imagens terríveis de miséria crescente e descaso não tinham conseguido: mudaram o Governo. Não mudaram o modelo, a política ou a mentalidade – mudou o marquetchim.

É difícil dizer o que foi mais ofensivo no lançamento da nova linha, agora com muito mais social, do mesmo Governo, ontem: se o oportunismo político disfarçado e informalizado como show publicitário ou a idéia que eles fazem da idade mental do público. Estão confiando demais no fato de que ninguém pode mudar de Governo como muda de programa na TV, com um clic saneador.

Fiquei pensando em como passam a vida tentando nos fazer acreditar em metamorfoses mágicas, como a de Éfe Agá, finalmente – pelo menos nos gráficos – num social-democrata de verdade, depois de cinco anos. Começa com a nossa mãe, a nossa própria mãe, querendo nos convencer que aquela colher com a papinha é, na verdade, um aviãozinho. Na época eu não tinha como apelar para a lógica e argumentar que, mesmo que um aviãozinho tivesse, por alguma razão inexplicável, entrado na nossa casa, ele dificilmente estaria ocupado transportando papinha do prato para a minha boca resolutamente fechada, inclusive arriscando- se a levar um tapa. E lá vinha ele, em sucessivas tentativas fazendo até barulho de aviãozinho. Atribua-se ao marquetchim do Governo o mesmo mérito que merecia o aviãozinho: boa tentativa. Eles também fazem para o nosso bem. Mas eu consegui dissuadir a minha mãe de tentar me enganar, mesmo porque desde então ninguém mais precisou me convencer a comer. Façam seu trabalho, rapazes, mas por favor: aviãozinho não.

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Muitas pessoas sem grande sofisticação política mas razoavelmente bem informadas, sem agenda ideológica mas sensatas -enfim, brasileiros médios de boa cabeça -devem ter pensado um dia: este país só toma jeito quando alguém como o Fernando Henrique Cardoso for presidente. Um cara de esquerda mas sem barba ou erros de concordância, um intelectual respeitado mas que não se negava a ir para o pau ou pelo menos falar em porta de fábrica, um professor e sociólogo que sabia como ninguém quais eram os males do Brasil e qual seria a cura. E, além de tudo, poliglota e simpático. Com todo o caráter acidental da presidência Éfe Agá – não esqueçamos que ele acabou ministro da Fazenda do Itamar por uma indiscrição do seu antecessor Eliseu Rezende, que se não fosse isso seria o pai do Plano Real – havia aquela sensação de que, não o Fernando Henrique Cardoso sonhado mas um fac-símile razoável tinha finalmente chegado ao poder, e que agora a coisa ia. Uma sensação paralela, mais intuída do que sentida, era que o melhor de uma classe e de uma geração estava tendo a sua chance de resolver o Brasil, e que seria a última chance, por assim dizer, sem barba.

Cinco anos depois da posse de Éfe Agá a concentração de renda se agravou, os índices sociais pioraram, a violência e a desesperança aumentaram e a sensação dominante no Brasil é de descrença não num homem que foi menor do que sua promessa, mas em toda a retórica e pantomima que há anos cria esses enganos. A sensação é de fim de paciência, fim de saco, fim de tolerância com uma elite que, mesmo na sua forma mais bem articulada e bem intencionada, fracassa como em todas as suas outras formas, mais ou menos primitivas, através da História. O que está acabando não é o equívoco Éfe Agá, é a ilusão que uma oligarquia pode produzir alguma coisa melhor do que ela mesma. A reação brasileira se movimenta para mudar de cara de novo, promete outra política econômica, prepara outro Fernando para dizer que agora a coisa vai, mas duvido que da próxima vez consiga enganar tantos com tanta facilidade. Ou talvez consiga. Ninguém que apostou na falta de memória do povo brasileiro se deu mal até hoje.

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