A filosofia ficou mais pobre

Renato Dalto / Publicado em 23 de dezembro de 1999

Na primeira impressão, Carlos Cirne Lima parece um filósofo eme stado puro. Profundo conhecedor de Hagel, seguidor da tradição neoplatônica, ele costuma pontuar suas aulas com raciocínios que unem, ao mesmo tempo, complexidade e clareza. Costuma dizer que é preciso, sempre, entender o indíviduo e sua universalidade e o universo em sua individualidade. E jamais furta-se ao exercício da crítica, segundo ele, que fez o marxismo perder fôlego neste final de século. E isso foi decisivo para a pobreza da filosofia na segunda metade dos anos 1900, onde também é possível enxergar uma exarcebação do indíviduo e a conseqüente perda do sentido social que isso traz. Cirne Lima exalta, porém, as conquistas da revolução francesa – herança do século 19 – que se estenderam e alargaram o sentido da democracia atual. Aos 68 anos, aposentado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor do curso de pós-graduação em Filosofia na PUC, Cirne LIma continua sua pesquisa sobre liberdade e sistema dialético. Autor de cinco livros, entre eles Dialética para Principiantes, Cirne Lima continua esbanjando fôlego no vasto campo das idéias. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu ao Extra Classe

Extra Classe – Primeiro, uma consta-tação: este século termina sem que te-nha surgido uma grande escola filo-sófica.

Carlos Cirne Lima – É verdade. Tivemos, por exemplo, a filosofia da lógica e o desenvolvimento da lógica como base comum para a matemática. O trabalho de Frege, que vai continuar em Bertrand Russell e entra no primei-ro Wittgenstein, vai mudar radical-mente o panorama da lógica. Certa-mente dá para dizer, com razão, que o século 20 vai além do que Aristóteles e os medievais fizeram em lógica. Mas, tirando a lógica, o que temos no século 20? Heidegger e Husserl na Alema-nha, na França Bergson e seus contem-porâneos e, depois, não vejo expressão maior. Olhando para o período que ter-mina, o que vamos dizer além dos ló-gicos do início do século? Vamos ver Kierkegaard, Sartre, Heidegger e mais ou menos acabou. Temos ainda Karl Popper, que vem do segundo Instituto de Viena. Mas não vejo a pujança que havia no século 18 ou 19. Nesse aspec-to, há um evidente empobrecimento do pensamento no século 20. E despon-tam aí pensadores éticos: Habbermas e Appel na Alemanha e Wals nos Esta-dos Unidos. Mas não vejo nesses con-temporâneos, pensadores da ética e da filosofia política, a envergadura intelectual que se tinha na grande filosofia dos séculos 18 e 19.

EC – O senhor arrisca uma explica-ção para isso?

CL – É muito difícil. A filosofia, por um lado, ficou acadêmica, ou seja, todas as universidades têm filosofia. Talvez tenha havido uma ressaca, por-que nunca a filosofia teve tanta reper-cussão em política como nos séculos 19 e 20 por meio dos hegelianismos de esquerda, ou seja, Friederich Engels e Karl Marx. E essa penetração na ciên-cia política talvez tenha deixado a filo-sofia mais tradicional, mais crítica, praticamente desarvorada. E dentro do marxismo, muito cedo, deixou-se de pensar criticamente. A última grande filosofia marxista é a de Marx e pouca gente mais. Os marxistas têm muito pouco espírito crítico. Por isso a filo-sofia ficou reduzida à ideologia. E tal-vez esse seja o principal motivo do em-pobrecimento que nós temos na segun-da metade do século 20.

EC – O senhor falou da falta de crítica dentro do marxismo. Na sua concepção, o marxismo como doutrina está sepultado?

CL – Para mim o marxismo errou em duas coisas. O grande erro, que não é de Marx, que é de Hegel e continua em Marx, é o necessitarismo, ou seja, que a história é um processo inexorável, matemático. O segundo grande erro é quando Marx diz que a taxa de lucro era declinante e o capital ia explodir. É o princípio central do marxismo, foi refutado empiricamente e é refutado intelectualmente, não tem substância. O que ocorreu foi isso: pela primeira vez uma filosofia sistemática muito bem articulada entrou na política e foi fascinante. Porque ela é articulada. Todas as peças têm o lugar certo dentro de um mosaico. Sob esse aspecto, olhando agora, depois do muro de Berlim, o marxismo é fascinante. Só que está errado. O que tem que mexer para ficar certo? Tem como modificar? Tem. É isso que precisamos fazer.

EC – O senhor diria que o marxismo pode agonizar se não houver capacidade de releitura dentro dele?

CL – Eu compararia essa situação com o que houve no começo do idealismo alemão. Fichte, Schelling, os jovens, riscavam duas, três folhas de papel como um arquiteto projeta um edifício, uma cidade. A gente faz, assim, o esboço de um sistema. E isso eles faziam muito, estavam em contato um com o outro, e num curto período de tempo construíram vários modelos. Marx fez vários modelos e nós não continuamos a fazê-los. Ficou um modelo dominante e acrítico. Acho que devemos pegar papel em branco e lápis e botar gente a desenhar. Não detalhar uma coisa que a gente sabe que está errada, como eu sempre soube que Hegel estava errado. Nunca fui hegeliano, sou um estudioso de Hegel para construir eliminando os erros. Mas isso a filosofia deixou de fazer. Este para mim é o ponto triste.

EC – Então as grandes doutrinas, como o marxismo, chegaram ao fim?

CL – Não, acho que estamos apenas numa pausa. Vamos ter que começar tudo de novo para reerguer os grandes projetos filosóficos.

EC – O conhecimento evoluiu muito em outros campos como a física, a medicina, a própria informática. Mas as idéias relacionadas a essas áreas estão envolvidas num certo pragmatismo, pela lógica do mercado, da competição. Isso não seria um contraponto ao exercício mais pleno das idéias?

CL – Não vejo por este lado. O problema que nós temos na modernidade, desde Descartes até hoje, é que de lá para cá estamos construindo o indivíduo. Na Antigüidade e na Idade Média não era desta forma. E este indivíduo foi sendo exagerado e isso nos levou ao lugar em que estamos hoje. Temos várias conquistas, por exemplo, a democracia, que foi redescoberta dentro da filosofia inglesa. A liberdade individual, a liberdade da mulher, são conquistas da modernidade.

O problema é que o indivíduo, do ponto de vista filosófico, não pode ser separado do universal. Na hora em que a gente separa isso, o problema fica insolúvel. E a concepção que eu defendo, que é a da tradição neo-platônica, de Hegel, é que o indivíduo é o nó numa rede, ou seja, tirando os fios da rede, o indivíduo desaparece. Se tiras de ti todos os teus amigos e os teus inimigos, não sobra nada. Somos aquilo que amamos e odiamos, com todos os sentimentos juntos. E essa não é a opinião corrente. A opinião corrente é que os indivíduos estabelecem relações que são acidentais e secundárias.

O que estou dizendo é o contrário. Há fios que formam a rede e outros fios se entrelaçam e dão nó e é aí que acontece o que nós chamamos de indivíduo. Sem o fio, não há nó. O que nós estamos vivendo é o fenômeno do indivíduo exacerbado, por um lado. Por um lado, estamos procurando construir sociabilidades que foram perdidas através desse processo de individuação. Isso é a tarefa da modernidade. O que não se pode é pegar o indivíduo e fazer de conta que o social é um acidente. Isto leva ao chamado mercado louco, alienador. Mas o mercado não é individual, anti-social. Pelo contrário, é algo social, o lugar onde duas vontades se cruzam e se acertam. O problema é concebê-lo assim, social e sujeito a regras, como a democracia.

EC- Essa dificuldade não seria semelhante ao mito da caverna, de Platão?

CL – Exatamente. É o próprio mito da caverna trazido de volta ao século 20. No mito da caverna, os prisioneiros estão amarrados, de maneira que não podem mexer a cabeça, olhando para o fundo da caverna. Na entrada da caverna há uma mureta e, atrás dela, uma fogueira que ilumina tudo. Ao lado dessa mureta, passam homens carregando estátuas. A fogueira projeta as sombras dessas estátuas no fundo da caverna, e os prisioneiros, que não podem mexer a cabeça, só ouvem e enxergam as sombras. Eles ouvem vozes e pensam que as sombras são a realidade. O que Platão vai fazer é libertar os prisioneiros e trazê-los à luz do dia para descobrirem que a realidade que pensavam ver são apenas sombras não de um objeto, mas da imagem de um objeto. O que é isso? Platão nos manda ver as idéias. E as idéias só existem onde a gente consegue estabelecer um nexo. Todas as fórmulas da física, da química, da biologia, são nexos. A função da filosofia é conciliar as diversas áreas do pensamento num único grande mosaico. E o fracasso que estamos vivendo neste momento é que o surgimento das partes é tão grande e tão rápido que nós não estamos conseguindo montar o mosaico.

EC- Como o senhor vê a globalização?

CL – Eu acho que a globalização adquiriu apenas um compasso, um ritmo novo. Porque já houve globalização. O Mediterrâneo, na Antigüidade grega, era globalizado, o Império Romano foi uma gigantesca globalização. Tanto que continuamos falando latim, tanto que ainda temos costumes dos soldados romanos. A Idade Média, no seu auge, também foi globalizada. O que está havendo, para surpresa de alguns, é que a globalização está voltando com a nova tecnologia. Em primeiro lugar, a globalização é um fato. Segundo: ela é boa ou má? Em princípio, é ótima por uma razão bem simples. A globalização harmônica é o critério de eticidade. Como professor de ética, posso dizer que é bom aquilo que se insere harmonicamente não só em seu meio ambiente imediato, mas que também se insere no universo. O problema são as mediações. Se a globalização não é feita através das mediações, aí sim ela pode ficar muito perversa.

EC – O que são essas mediações?

CL – A globalização bem típica é a seguinte. Numa Europa contemporânea, com a União Européia, encontra-se uma ênfase em coisas locais. Tenho amigos na Áustria que insistem em falar o dialeto local. Moram em cidades pequenas, embora estejam ligados pela Internet com o mundo inteiro. O que está acontecendo? A globalização está vindo e eles se tornam mais provincianos ainda, mas não em sentido arcaico. Então, o que é o globalizado? É aquele que está ao mesmo tempo aqui no computador, fazendo uma operação na bolsa de valores em Nova Iorque, e tomando chimarrão. E não há como evitar isso. O errado é se daqui a pouco ele não estiver mais tomando chimarrão. O errado é quando a cultura local é esmagada.

EC – Mas não é isso que está ocorrendo, principalmente em nível de mercado?

CL – Ocorre seguidamente. Em princípio, o mercado é bom, é a união de duas vontades que acertam um negócio. O problema do mercado globalizado é o seguinte: o Brasil certamente cometeu um erro ao baixar as barreiras alfandegárias sem contrapartida. Os alemães e franceses têm um protecionismo a favor dos camponeses simplesmente insuportável. Não podemos exportar para lá nada do que esses camponeses produzem. E eles nos exportam o que querem. Se fosse um mercado livre, nós podíamos entrar na Alemanha e na Áustria com laticínios e produtos agrícolas, mas eles não baixaram as barreiras alfandegárias. São dois pesos e duas medidas. O que há, então, nesses países? Os camponeses votam, simplesmente. Se os políticos tiram as barreiras alfandegárias, o camponês não vota neles. Então eles foram alertando os camponeses para ter outra fonte de renda. Na Áustria, as casas dos camponeses nas montanhas já são hospedaria para turistas. E eles já têm até prazo para acabar com as barreiras de proteção. Com isso, conseguiram transformar um povo de camponeses numa indústria turística. Eles tiveram a sabedoria de não abrir as barreiras alfandegárias rápido demais. Agora o Brasil. No governo Collor, abriu-se tudo. Uma parte da indústria nacional dançou por causa disso. Sou a favor da globalização, mas tem que ser feita com um prazo de adaptação que deve ser cumprido. Sou contra que se faça como no Brasil se fez com a informática: queríamos fazer uma indústria nacional de informática e ficamos 20 anos atrasados. E todo mundo acabava comprando computadores contrabandeados. Dar proteção demais não adianta. Mas se não proteger, não cresce.

EC – O senhor elegeria um grande pensador neste século?

CL – Um pensador só é difícil. Talvez Wittgenstein, porque ele teve uma originalidade num momento-chave.

EC – O senhor não elegeria Sartre?

CL – Não. Acho que Sartre não fica em pé de igualdade com Frege, Russell, Wittgenstein. Sartre foi moda. Ele não tem a originalidade filosófica que tem um Russell, um Wittgenstein ou mesmo Popper. Sartre era um literato e filósofo, simpatizante ma non troppo do marxismo de sua época. Ele foi um dos primeiros críticos do marxismo. Ele surgiu num momento histórico certo, no lugar certo e teve uma influência muito grande.

EC – Há pouco tempo, com a globalização, surgiu a tese do fim da história.

CL – Ao pé da letra, interpretando com bondade, é o seguinte: a democracia se estabeleceu mais ou menos firmemente e, em termos de evolução política, nós chegamos a um estágio final. Sob esse aspecto, com olhos bondosos, a gente poderia dizer que isso não está errado. Nunca, na história da humanidade, a democracia foi tão amplamente aceita e praticada. Nunca, na história, a estrutura do estado foi tão bem feita como hoje. Agora, se entendermos por isso que o fim da história chegou porque chegamos ao paraíso, está totalmente errado. A história não pode ter fim assim, porque se tivesse, pararia a flecha do tempo. Com a mesma razão que dizemos que estamos no fim da história, podemos dizer que estamos no começo da história. Se esse é o sentido, é ridículo.

EC – E as desiguldades, como ficam?

CL – Está havendo desigualdade porque a globalização, num primeiro momento, pode ser cruel. Olhando isso, como filósofo, dá para ver também que nunca, na história, houve tanta chance de combater a desigualdade. A desigualdade surge exatamente quando a gente não tem condições iguais de partida. Antes, estabelecia-se que os homens eram desiguais: quem era nobre, nascia e morria nobre e quem era camponês nunca ascenderia à nobreza. Nós, ao menos na teoria, sabemos que os homens são iguais. Isso é mérito da revolução francesa. O que ocorreu é que a continuação de uma revolução não se faz num ato só, nem num século. Isso tem que se alargar, mas sem tirar a competição, que é uma lei da natureza. Na sociedade humana, se a gente elimina completamente a insegurança, vai criar um povo de aleijados. Esse é o problema. Se o Estado protege todos de tal maneira que todos tenham a proteção que precisem, ninguém vai andar. A questão é a seguinte: quando amparar e quando deixar correr o processo de competição. Na Alemanha, quem está desempregado recebe o salário- desemprego. Então, é muito melhor ser desempregado na Alemanha do que ganhar o salário mínimo no Brasil. Por isso a Alemanha tem que fechar as fronteiras, senão todo mundo vai para lá. E aí surgem o nacionalismo, o nazismo, que vai mandar fechar as fronteiras senão o pão vai acabar. Vêse então o surgimento de coisas pavorosas, como a extrema direita, tanto na Alemanha como na França.

EC – E há partes do planeta que estão mergulhadas na barbárie através de guerras étnicas e do racismo.

CL – A civilização progride, mas ficam “franjas”. E essa barbárie, cá para nós, sempre houve. O morro da Cruz está aqui do nosso lado. Isso só ficou mais visível. Essa barbárie existe e é perigosa. No Brasil, há essa rede de narcotráfico. Sabemos que o Rio de Janeiro tem vários problemas porque criaram o Estado dentro do Estado. Se o governo não entra mais lá, a situação é muito grave. E nós estamos fechando os olhos para isso.

EC – Isso de estar fechando os olhos não seria um outro tipo de ignorância, ou seja, a ignorância pelo excesso? Há uma camada de pessoas muito ligada no mundo virtual, de caminhos de conhecimento que produzem excesso de informação.

CL – Tens algo bem estratificado aí. Não se pode pegar alguém da ponta de pesquisa e puxá-lo para baixo. Um dos grandes erros do marxismo e da igreja católica foi querer nivelar por baixo. Quando há essas mudanças de estrutura, a gente tem que pegar pelos dois lados, sem deixar de entrar nas novas tecnologias e nos novos horizontes que estão se alargando. É preciso manter o individual ligado no universal sempre que há ruptura. Quando não há ruptura é fácil, porque basta repetir o que o pai e o avô fizeram. Como o pai e o avô não tinham esses horizontes, nós temos dificuldade em conciliar. A gente se perde no computador e perde o cheiro da terra. Se a gente se perde completamente, essa geração estará perdida.

EC – O senhor acha que esse excesso foi a marca deste século?

CL – Quando comecei a lecionar, o nosso grande problema era juntar a bibliografia necessária para fazer um trabalho. Então, pegava dois, três livros, chegava a cem livros que tinha que buscar, copiar, depois veio o xerox. Hoje, pela Internet, se pode entrar na biblioteca de Washington, do Congresso norte-americano, dar uma palavra-chave qualquer e ter à disposição dez mil livros ou artigos. O problema se inverteu. Na última vez que estive na Alemanha, na Deutzche Biblioteque, pedi a palavra-chave da minha linha de pesquisa “liberdade e sistema dialético”, assim cruzada, liberdade e dialética juntas. Pensei em cem itens, tinham quatro mil. Desses quatro mil, vamos chegar a 200, resume e fica em cinco. A gente tem que fazer isso. Havia falta de informação, agora parece que tem excesso. É preciso uma capacidade nova de sintentizar essas informações. Sem isso, a informação se torna realmente esmagadora.

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