OPINIÃO

Assassinato da memória

Publicado em 23 de dezembro de 1999

O Brasil continua pagando caro por seus erros culturais. Nossos verdadeiros artistas e pensadores são relegados ao mais vil esquecimento. Concordo com o Gilberto Vasconcellos quando ele frisa que a “melancólica instalação de um protetorado norte-americano, tipo Costa Rica, corresponde ideologicamente ao plano do poder mundial de esculhambar os ícones e valores nacionalistas da cultura brasileira. O escritor Euclides da Cunha, pênis pequeno, não sabia trepar; o músico Villa Lobos era autoritário e ‘populista’, em seu canto orfeônico louvando o Estado Novo getuliano; o historiador Nelson Werneck Sodré não dançou nas festas com as musiquinhas da Rita Lee Jones”.

Todas estas questões se refletem na formação de uma cultura eternamente frustrada, que açoita com o jugo do silêncio artistas como Glauber Rocha, que foi vítima da indiferença, quando da passagem da data onde faria 60 anos. Exceto pela revista Bravo, que lhe dedicou uma matéria de capa, aliás, uma matéria muito ruim assinada pelo jornalista Nirlando Beirão, que não foi além que requentar algumas leviandades que já foram ditas e repetidas sobre o cineasta baiano, fazendo críticas vazias, como afirmar que Rocha escreveu demais e filmou de menos, ou considerações sem a devida ponderação, como a insistência em construir uma imagem reacionária de Glauber, pintando-o como um louco e suicida, quando foi, na verdade, vítima de um assassinato cultural, como todos intelectuais que não estavam de acordo com a flauta da pseudo esquerda cebrapista, do Partidão (PCB) e de outros ditos marxistas que, na verdade, são a velha “vanguarda que entrega a retaguarda pro primeiro Zé que aparecer”(Marcelo Nova).

Glauber foi um incendiário, não fazia parte destes tempos politicamente corretos e medíocres, desta troca de favores e deste profissionalismo instaurado por decreto. Metia o dedo na ferida. Com sua língua afiada, disparava para todos os lados, não poupando ninguém, metralhando desde seus companheiros cinemanovistas: “Leon (Hirszman) e seu bando se masturbam com realismo crítico e outras besteiras… Jabor desde há muito já faz pornochiques… Nelson (Pereira dos Santos) entrou em decadência há muito tempo… (Carta a Celso Amorin, 1981) até ao hoje presidente da república, o então intelectual da moda, FHC: “o professor Fernando Henrique Cardoso disse que não era assoprador de novidades nos ouvidos do príncipe. Claro: o príncipe é ele, assim o batizei no Peru, em presença do magnífico Darcy Ribeiro. Uma tese que o Cebrap não aceita e por isso não consigo me entender com Príncipe: a revolução de 64 começou na Guerra do Paraguai. Fernando Henrique Cardoso é apenas um neocapitalista, um kennediano, um entreguista”(citado por Carlos Heitor Cony, Folha de S. Paulo, 24/10/98).

Figura altamente visada pela censura, que o classificava como discípulo de Jean Luc Godard e perigoso cineasta subversivo, Glauber passou vários anos no exílio, passando por diversos países como Cuba, França, Espanha, URSS etc, em busca de um lugar onde pudesse produzir seus filmes livremente. Morreu em Sintra (Portugal), deprimido pelas duras críticas que A Idade da Terra, seu último e mais controvertido filme, recebeu da crítica internacional. Deixou-nos como legado a vasta produção de seus 42 anos de vida, que soma 18 filmes, um romance, roteiros de cinema e teatro, crônicas, desenhos e ensaios sobre cinema.

Milan Kundera asseverou certa vez que a “luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Esta é talvez a luta mais desigual que Glauber trava, depois de morto, através de sua obra, que tem como guardiã sua mãe, dona Lúcia Rocha, que insiste em manter sempre abertas as portas do Templo Glauber, arquivo onde está guardada toda a obra do cineasta, que sobrevive sem apoio governamental ou da iniciativa privada, em situação bastante precária.

A mídia, ao calar sobre a memória de Glauber Rocha, tenta matar o morto outra vez, não na carne mas na memória. Explica-se: reza a lenda que Prometeu, ao roubar o fogo dos deuses do Olimpo e entregá-lo aos homens, para que estes se diferenciassem dos animais, foi acorrentado a um rochedo e amaldiçoado a ter seu fígado devorado por abutres, eternamente. Glauber Rocha, aos desafiar os coronéis da cultura brasileira e lutar por uma arte nacional, livre e total, foi amaldiçoado a ter sua memória assassinada, eternamente.

* Éder Silveira é estudante de História, pesquisador do CNPq

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