CULTURA

Um olhar nem sempre tão belo

César Fraga / Publicado em 23 de dezembro de 1999

Este foi um século de som e imagens, principalmente imagens. O que dá ao cinema um certo status de ser ao mesmo tempo o olho que viu e registrou a humanidade ao longo destes cem anos, mas também o próprio retrato em movimento deste período, igualmente visto pelos olhos daqueles a quem retratou e pelas gerações que os sucederam.

Uma tentativa de realizar uma síntese do século foi feita pelo pesquisador paulista Marcelo Masagão, que criou uma narrativa peculiar e pessoal a partir de imagens emblemáticas do século 20 no documentário Nós que aqui estamos, por vós esperamos. Cineasta estreante, baseou seu foco na certeza da morte como fundo filosófico. Não sem motivos. É a primeira vez na história da humanidade que se teve tanta sofisticação para gerar a morte, mesmo no cinema. “Nunca a capacidade de matar foi tanta e com tanto refinamento”, ironiza Masagão. Foi um século em que se fabricaram produtos em excesso, que por sua vez geraram um excesso de guerras para conquistas de mercados que pudessem absorver estas novas necessidades de produção. a indústria cultural de massa, que é cria deste tempo, também teve naturalmente de atender a essa demanda.

Também foi característica do século 20 o controle dos meios de comunicação por grupos detentores de monopólios e de meios de produção. Redes de rádio e televisão, empresas cinematográficas, gravadoras, jornais, revistas. Mas esta tendência tem sido revertida a cada momento em que se aproxima a virada do século e a tecnologia aponta novos caminhos. Fala-se em democratização da informação pela internet. O avanço tecnológico barateia os custos de produção. Equipamentos que teriam custado ao realizador de Nós que aqui estamos… cerca de US$ 100 mil há dez anos foram adquiridos apenas U$ 4 mil. Masagão fez quase a todo o seu filme dentro de um apartamento com a ajuda de computadores. “Nunca houve tanta gente criando em todas as áreas do conhecimento humano”, arremata o pesquisador.

Quando se fala em excessos na indústria cultural, outra coisa que vem a mente é o sexo e a violência. De um lado, graças à TV e ao cinema, a humanidade tem a possibilidade de reproduzir e assistir com invejável realismo de detalhes tanto o ato de matar como o de amar. Das brigas sem sangue e disparos sem som do cowboy TomMix até a agressiva poesia visual e sonora de Clube de Luta (só falta cheiro à cenas), muita coisa se modificou na estimulação do imaginário da humanidade ao longo destes cem anos. A possibilidade de colocar a guerra ao vivo na hora do almoço em qualquer lar do planeta, assim como ter sexo em real time via internet pela tela do computador ou pelo telefone tornou-se real. Ao longo do século, o sexo virou assunto popular e nunca foi feito com tanta liberdade, pelo menos nas telas. É justamente a banalização destas coisas que assusta.

Um garoto pode chegar em uma loja qualquer e comprar um jogo chamado Carmageddon, cujo enredo é esmagar com um automóvel virtual pedestres e mulheres grávidas para obter um maior número de pontos. A híper exposição de comportamentos duvidosos para uma massa de telespectadores, cinespectadores, radiouvintes e gamemaníacos, que nem sempre fazem uma leitura crítica destas coisas todas, também preocupa. O cineasta e roteirista gaúcho Carlos Gerbase critica a utilização do sexo e da violência como arma de venda da indústria cultural. Muitas vezes o próprio marketing de divulgação de uma obra, igualmente agressivo, supervaloriza estes temas. E isso em geral foge da mão do artista. Mas quando se fala que existe muito sexo e violência no cinema o mesmo cineasta que condena a gratuidade do recurso rejeita a pecha e considera-se, de certa forma, censurado. “Enquanto autor, nestes momentos me sinto tolhido do direito de criar. Afinal, são temas que nos dizem respeito diretamente. O que é condenável é a exploração gratuita disso tudo. Mas a linha que divide a abordagem consciente do tema e o excesso é muito tênue”, justifica o cineasta.

Ainda fica a questão do grotesco excessivo na televisão. O professor de Comunicação Muniz Sodré, no livro Comunicação do Grotesco, diz que cada época e cada meio de comunicação artística valoriza uma determinada categoria estética (o trágico, o dramático, o melodramático e assim por diante). O que o ethos dos programas da TV brasileira identifica-se com esse grotesco, na vizinhança do cômico, do caricatural, do monstruoso.

Essa definição como qualidade estética pode abranger obras de valor artístico, como a antropofagia tropicalista de Osvald de Andrade, até o puro e simples mau gosto, como o escatológico dos programas de TV que levam o conceito às últimas conseqüências.

O grotesco não fica só nas aberrações. Programas respeitáveis de humor, de auditório e até mesmo novelas também dão sua contribuição. A diferença é que, de um lado, temos um olhar acusador que penetra fundo nas estruturas da realidade humana e revela sua aspereza em forma de arte, caso das obras de Francis Bacon. De outro, uma disfunção social e artística, quando o valor estético e o distanciamento são anulados por uma máscara construída com uma falsa contextualização. Isso pode ser percebido quando o portador de uma deficiência qualquer é apresentado ao público desses shows sob a pretensa intenção assistencial para, na verdade, transformar-se em atração de uma espécie de circo dos horrores. O portador da aberração, o fato, o marginal, o diferente é apresentado como signo do excepcional. Como se não fizesse parte da sociedade.

 

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