OPINIÃO

As desfaçatez das migalhas

O editor / Publicado em 22 de março de 2000

É com uma incrível desfaçatez que um dos “empresários” da jogatina em Porto Alegre defende seu ofício, em documento que tem como objetivo mostrar as qualidades sociais e econômicas dos bingos. Diz ele: “A grande maioria dos freqüentadores dos bingos são principalmente pessoas da terceira idade, aposentados, donas de casa e outros, que ocupam parte de seu tempo disponível com um lazer seguro e confortável”. Seguro realmente é: há leões-de-chácara por todos os lados, é quase impossível chegar aos donos e fazer perguntas é arriscado. Confortável, também: as casas têm ar-condicionado, bebe-se bem, come-se melhor ainda e é fácil deixar suas economias num dos tantos caixas feitos para isso, para tirar o dinheiro dos incautos.

É bom deixar claro que cada um deve gastar o seu dinheiro como quiser. É uma das prerrogativas da democracia que os cidadãos façam aquilo que bem entenderem se isso não prejudicar diretamente outras pessoas. Mas bingos são empresas constituídas para ganhar dinheiro em cima da ilusão alheia de enriquecimento fácil, de solução para os problemas complexos do cotidiano. Por isso é fácil observar a quantidade de aposentados, velhos, pobres e desesperados nas mesas de jogo. Numa tacada de sorte, num lance do destino, podem se livrar das mazelas de todo dia.

Só que essa tacada nunca vem, por mais que as propagandas mostrem felizardos sorridentes aproveitando seu prêmio milionário. E a coisa não pára por aí. Além de mexerem com o imaginário de pessoas comuns, os bingos burlam a lei, sonegam impostos, contrabandeiam equipamentos e são suspeitos de estarem envolvidos com organizações criminosas. Não é pouco para quem se diz honesto, empregador e de bom caráter.

Os bingos, por exemplo, deveriam repassar 7% de seu faturamento para entidades esportivas às quais estariam associados. Não passam. Conhecidos intermediários desses empresários afirmam com extrema naturalidade que bastam R$ 500 mensais para satisfazer o apetite de alguns dirigentes esportivos.

Em torno deles, no entanto, se formou uma cadeia de entidades assistenciais e esportivas que buscam justificar a existência do negócio em troca de migalhas filantrópicas. É fácil. Se o negócio gera empregos, então é moralmente justo. Se contribui com uma casa de saúde para velhos, então que se deixe funcionar. O que ninguém discute é que essas migalhas são infinitamente menores que a sonegação de impostos, que a corrupção moral de casas que exploram a economia popular.

É a mesma estratégia adotada, por exemplo, pelos traficantes de drogas. Travestidos de bons moços, eles fazem o bem apesar de explorarem um negócio sujo. Separam uma parte mínima dos lucros para comprar a comunidade. Não é de espantar então que sejam defendidos ou, na pior das hipóteses, não sejam atacados. O que vem a ser a mesma coisa.

Isso só prospera porque o Estado está ausente. Quando se mexe, é apenas para tentar tirar a sua parte no negócio. Legalizaram-se as máquinas caça-níqueis em troca de impostos, mesmo que o Estado saiba que não tem a mínima condição de fiscalizar a atividade de milhares de casas espalhadas pelos lugares mais distantes do país. Num negócio de risco, a fiscalização é essencial. Mas o Estado disfarça, faz acreditarem que está tudo bem e toca o barco para a frente.

Em menos de dois anos, as casas de jogos se multiplicaram no Brasil. Sinal mais do que claro de que o negócio é bom, lucrativo e barato. E, além do mais, seguro.

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