JUSTIÇA

Suspeitos, bingos faturam alto no país das apostas

Flávio Ilha e César Fraga / Publicado em 22 de março de 2000

Ninguém, nem a Polícia, nem a Receita Federal, nem mesmo a associação de classe, sabe ao certo quantos eles são. Estimam-se mais de 50 só em Porto Alegre, espalhados por toda a cidade. De todos os tamanhos. Que movimentam cerca de R$ 2 bilhões por ano no país. No Brasil seriam mais de 5 mil, dos quais pelo menos 70% estariam atuando de forma irregular. O fato é que, a despeito de estar proibido desde a década de 40, nunca se jogou tanto como no Brasil de hoje. Bingos, sorteios eletrônicos, cassinos e máquinas de caça-níqueis afrontam as autoridades e seguem atuando livremente, apropriando-se das economias de milhões de pessoas. Além de ilegais (das 80 casas listadas pela associação dos bingos no estado só três têm licença do Indesp para funcionar), as casas de jogo estão sendo investigadas por sonegação de impostos e de envolvimento com a Máfia. Em Porto Alegre, nove grandes bingos estão sendo investigados pela Polícia Fazendária. Os inquéritos envolvem a quebra de sigilo bancário e fiscal – já autorizadas pela Justiça – de sete pessoas e correm há oito meses. Além disso, há outros três inquéritos sendo tocados para esclarecer a responsabilidade sobre 250 máquinas de caça-níqueis apreendidas em agosto do ano passado. As máquinas não tinham autorização para funcionar e estão apodrecendo nos galpões da Polícia. Mesmo as 153 máquinas que estavam com os documentos em dia – e que foram liberadas – são suspeitas de sonegação tributária. “Não há mais dúvidas de que a maioria dessas casas sonega impostos”, diz o delegado Jorcelino Luiz Rodrigues, titular da Delegacia de Prevenção e Repressão aos Crimes Fazendários da capital.

Repasse a entidades esportivas é fictício

Cauteloso, o delegado Jorcelino Luiz Rodrigues sabe que está mexendo com um assunto delicado. Há um aparato de normas e decisões que garantem o funcionamento legal de casas de apostas, amparadas principalmente na Lei Pelé (9.615/98), nos decretos 2.574/98 e 3.124/99 e na portaria 23/99 do Indesp. A portaria do Indesp, suspeita de ter sido montada pelos próprios bingueiros com a ajuda do ministro Raphael Grecca (Esportes e Turismo), já foi revogada.

As outras leis em tese autorizam a atividade dos bingos, mas são confusas, difíceis de fiscalizar e pecam por um detalhe: exigem autorização oficial do Indesp para o funcionamento das casas de jogos. A maioria delas, entretanto, funciona apenas com um protocolo do Instituto, que não tem nenhuma estrutura para fiscalizar as atividades dos bingos. Isabel Sobral, do Indesp, diz que para o Rio Grande do Sul foram expedidas até agora apenas três autorizações de exploração comercial de jogos: duas para o Esporte Clube São José e uma para a Sociedade Recreativa Santo Ângelo. Todos os outros funcionam fora da lei.

Com o Indesp sem ter poder algum de fiscalização, fica fácil burlar a legislação e operar sem medo de contratempos. Um conhecido montador de bingos de Porto Alegre, que anuncia em jornais de grande circulação, conta que é fácil burlar o artigo que obriga os bingos a contribuir com 7% de seu faturamento bruto mensal para alguma federação esportiva. No papel vai escrito uma coisa; na prática, entidades fantasmas se satisfazem com R$ 500 por mês. “Eu mesmo consigo as entidades. Não precisa pagar os 7%”, confessa o operador.

Ele monta um bingo em um mês, “com toda a documentação”. Reconhece, porém, que a autorização do Indesp não é a definitiva, mas que os bingos operam mesmo assim. O serviço custa R$ 39 mil e pode ser pago em duas vezes: R$ 15 mil na contratação e o restante na entrega do ponto. A capital, diz o negociante, já tem áreas saturadas de bingos. “O bom é ir para o Interior, de preferência para a Fronteira”, recomenda.

O presidente da Federação Gaúcha de Canoagem, Dércio Ramos, confirma que há entidades recebendo menos do que estipulado pela lei em troca de benefícios pessoais para seus dirigentes. Ele admite que foi sondado por um grande bingo da região metropolitana de Porto Alegre para utilizar um esquema frio de repasse de dinheiro, mas não aceitou. A federação recebe mensalmente R$ 24 mil de um bingo da capital. R a m o s garante que examina os livros todos os meses e assegura que, nesse caso, não há sonegação.

O esquema de triangulação do dinheiro, entretanto, é muito simples: a casa de jogo repassa o valor determinado legalmente para a federação, que lança o dinheiro num caixa dois. Dali, 40% ou menos (depende da negociação) ficam com a entidade esportiva. Os outros 60% voltam para os donos do negócio, sem esquecer de deixar uma parte – em geral não superior a 10% para o laranja que operar o sistema. O intermediário quase sempre é o presidente da federação, mas há situações em que a conta laranja pode estar no nome da própria entidade esportiva. “Muitos dirigentes trocam a parceria por benefício pessoal”, lamenta Ramos.

Outra fonte de receita da Federação Gaúcha de Canoagem eram as máquinas de caça-níqueis, instaladas até agosto passado no bingo da qual a entidade é sócia. Ramos diz que foi a única federação esportiva do país a prestar contas do ganho obtido com essas máquinas e reclama que a maioria escondeu esse rendimento.

A lei exige prestação de contas semestral, mas o dirigente sabe que o tipo de administração feito pelo Indesp “é pouco profissional”. Cada máquina dessas pode render até R$ 1 mil por dia se estiver bem localizada. Metade da renda vai para o dono e metade fica com o bingo. As federações em geral nem vêem a cor desse dinheiro, apesar de a lei determinar que 7% desse faturamento também sejam repassados para o esporte.

A regra é burlar a lei e multiplicar os ganhos. A Federação Gaúcha de Tênis, por exemplo, recebe R$ 2 mil por mês de um bingo de Gravataí. Não paga nem as arbitragens de um dos três torneios que a entidade organiza regularmente a cada temporada. O presidente, Paulo Alvarenga, garante que o repasse é legal. Mas reconhece que o dinheiro “não dá pra nada”.

Os bingos se defendem. Têm uma associação organizada – de Administradoras de Bingos e Entidades Esportivas – e fizeram um balanço das atividades sob o ponto de vista social. O presidente da associação, Jaime Sirena, garante que foram repassados R$ 5,6 milhões às entidades esportivas nos últimos 12 meses pelas casas de jogo, mas não mostra documentos que comprovem a informação.

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Entrevista

Luiz Francisco de Souza

Uma estrutura podre, ligada a interesses políticos

O procurador da República Luiz Francisco de Souza está, desde o início de fevereiro, com a cabeça a prêmio. A investigação sobre a atuação dos bingos no Brasil já dura mais de um ano, mas deste mês para cá a situação se tornou mais complexa porque o envolvimento do ministro Rafael Greca com a máfia do jogo se tornou palpável, difícil de negar.

Na semana de 7 a 11 de fevereiro, o procurador envolveu diretamente oito assessores do ministro nas investigações. Pediu, e foi atendido pela Justiça, a quebra do sigilo bancário e telefônicos dos assessores. Na sexta-feira, 11 de fevereiro, Greca demitiu dois funcionários que já não tinham como escapar das acusações. Antes, porém, pediu que Luiz Francisco seja demitido por estar politizando suas investigações. O ministro, para quem não sabe, é do PFL, foi prefeito de Curitiba e tem relações estreitas com o governador Jaime Lerner, cotado para a sucessão presidencial de 2002.

Extra ClasseComo o senhor resumiria a situação dos bingos hoje no Brasil?

Luiz Francisco de Souza – É uma estrutura podre diretamente ligada a interesses políticos, ao jogo do bicho. Nada disso deveria existir. Não passa de uma atividade parasitária e sanguessuga, que sangra a poupança popular e não dá nada em troca. Isso sem falar nos mecanismos absurdos de corrupção do Indesp, que envolvem até mesmo o ministro Grecca, como já é sabido.

EC – E a regulamentação das atividades dos bingos em alguns estados, como Rio de Janeiro? O que o senhor acha disso?

LFS – Apesar de inconstitucional, é menos imoral que o sistema implantado pelo Indesp, que não fiscaliza nada. Agora dá para entender o que o Anthony Garotinho (governador do Rio) quer, que é fiscalizar ele próprio a atividade para que a arrecadação seja correta. Mas, mesmo assim, está errado do ponto de vista da lei. A atividade em si é altamente ilegal, principalmente porque mais de 80% do lucros estão baseados em máquinas caça-níqueis.

EC – Isso não é um pouco de moralismo contra o jogo?

LFS – Em hipótese alguma. A lei é clara. Mesmo em países com os Estados Unidos, onde o jogo é permitido, apenas alguns estado têm a atividade e mesmo assim em locais restritos. O que não é possível é termos casas especializadas em jogos de azar em qualquer calçada, oferecendo um serviço, entre aspas, ilegal à massa trabalhadora e assalariada. O apelo é muito forte à compulsão pelo jogo. Mas os donos de bingo dizem que a atividade dá emprego. Então eu digo que roubo de banco, narcotráfico e prostituição também geram empregos. E aí? Além do mais, máquinas eletrônicas geram menos emprego que jogo do bicho.

EC – Qual o envolvimento de políticos do PFL no esquema dos bingos?

LFS – Curiosamente existe um interesse claro de vários políticos do PFL no negócio de bingos. Afinal de contas, são R$ 2 bilhões em volume de capital que o jogo de azar movimenta no Brasil por ano. Mas isso não é novidade. O interesse de políticos por esse tipo de negócio existe também no Japão, Estados Unidos e Europa. O que é preocupante é que este setor, invariavelmente, está ligado a interesses escusos e à ala mais podre do empresariado. Não só no Brasil, mas em vários países, a máfia está intrinsecamente ligada ao jogo e, também, aos políticos conservadores.

EC – Esses empresários alegam trazer benefícios à sociedade.

LFS – Não trazem. O que eles alegam em benefício ao esporte é um embuste. O que deveria existir é uma lei similar à Rouanet (que financia a cultura) para o segmento, um fundo nacional do desporto.

EC – Voltando à questão do envolvimento dos pefelistas no esquema. Como vocês perceberam isso?

LFS – Foi só ver a clientela do Indesp, quase todos são do PFL. E a coisa funciona mais ou menos assim. O cara quer ser deputado. Então o bicheiro de Brasília dá, por exemplo, R$ 12 milhões para o Roriz (Joaquim Roriz, governador do Distrito Federal). Isso é um fato. Assim se conseguem junto ao Indesp umas três concessões para o bicheiro explorar a atividade de bingo. Se cada uma delas rende cerca R$ 1 milhão por mês, multiplica-se isso por três. E acontece em todo o lugar, em São Paulo tem o Ivo Noal, que também foi financiado de forma semelhante. E outros casos, no Rio de Janeiro, em Goiás. Praticamente quase todos os bingos têm esse tipo de envolvimento.

Escândalo envolve ministro e seus assessores

Com o escândalo das irregularidades no Indesp constatadas em auditoria realizada pela Procuradoria da República no Intituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto (Indesp), órgão do Ministério dos Esportes e Turismo, o ministro Rafael Grecca ficou com a cabeça a prêmio. A auditoria realizada em 1998 pela Secretaria de Controle Interno da Presidência da República deixou o ministério em maus lençóis. Com isso deu-se início às investigações no Ministério Público, comandadas pelo procurador da república Luiz Francisco de Souza a partir de diversas irregularidades apontadas nesta auditoria, todas elas praticadas pelos homens de confiança do ministro.

O Indesp deveria ser responsável pelo credenciamento, autorização e prestação de contas no que concerne ao funcionamento dos bingos e apresentou falhas em praticamente todas essas funções, em parte por não ter estrutura para tal e também por promover o favorecimento de diversos empresários do setor de bingos ligados a esquemas mafiosos no Brasil e no exterior.

Na auditoria foi constatado que o instituto sequer tinha controle sobre o número de autorizações e credenciamentos de bingos permanentes ou eventuais expedidos no período investigado pela secretaria. Além disso, várias autorizações emitidas estariam irregulares, como no caso da empresa Chance Administradora de Bingos Ltda, conveniada ao Esporte Clube São José e coordenadora dos sorteios do Toto Bola.

As irregularidades são várias, começando pelo próprio contrato da empresa com o clube, que não poderia ser superior a 24 meses. Acabou fixado em 48 meses, o dobro de prazo. Os prazos de entrega da documentação deveriam anteceder em 30 dias o primeiro sorteio, mas foi apresentado apenas 12 dias antes e com certificados inválidos. Mesmo assim o assistente Jurídico do Indesp, Mauro Thompon, endossou o Certificado de Autorização Especial antes que a papelada completasse 24 horas em sua mesa. Segundo o procurador, isso demonstra que a documentação em momento nenhum foi inspecionada.

Em outra solicitação realizada pela mesma empresa alguns dias antes, para o funcionamento de um bingo, apesar do parecer desfavorável de um procurador do Indesp, o certificado foi emitido sem maiores problemas. Práticas semelhantes também foram encontradas nas autorizações concedidas à Confederação Brasileira de Canoagem/ RS, conveniada à Defala Promoções Eventos e Comércio Ltda e Gold Bingo Recreações Ltda, conveniada à Federação Gaúcha de Basquete.

Fatos como esses e o envolvimento no esquema de Luiz Antônio Buffara, então diretor de Administração e Finanças do Indesp e homem de confiança, além amigo de infância de Greca, foram os principais motivos para as dores de cabeça do ministro.

Buffara teria assinado irregularmente uma autorização favorecendo a Federação Brasileira de Vela e Motor em agosto do ano passado. O fato ocorreu durante a ausência do ex-presidente do Indesp, Manoel Tubino. Grecca declarou à imprensa ter sido enganado pelos assessores. A desculpa foi suficiente para o presidente mantê-lo do cargo enquanto lideranças políticas pediam sua cabeça.

O episódio envolvendo Buffara, entretanto, foi apenas um entre vários, denunciando a influência da máfia nas autorizações do Indesp. Na primeira semana de fevereiro o Ministério Público pediu a quebra de sigilo telefônico e bancário de vários dos envolvidos, incluindo Buffara, funcionários do Indesp e supostos mafiosos ligados aos bingueiros. O senador Antônio Carlos Magalhães (PFL/BA), prevendo os respingos do escândalo à sua sigla, chegou a pedir publicamente que Greca se afastasse do cargo.

O ministro recusou e ele próprio ofereceu a quebra de sigilo fiscal, bancário e telefônico para a investigação. Ele garante que é inocente e, até o fechamento desta edição, continuava no cargo. Seu ministério, porém, vem perdendo prestígio junto à presidência e poder de decisão, inclusive sobre as verbas das comemorações dos 500 anos, que foram transferidas para o Gabinete do Presidente FHC.

 

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