OPINIÃO

Danação

Luís Fernando Verissimo / Publicado em 16 de junho de 2000

Alguns brasileiros acham que há uma maneira de ser entendidos no exterior, mesmo não sabendo a língua. Basta falar português – bem alto e bem explicado. Não é uma pretensão tão absurda. O poeta Ezra Pound disse mais ou menos a mesma coisa quando garantiu que, olhando qualquer palavra ou ideograma de um idioma desconhecido por um tempo suficiente, acabava descobrindo seu significado. Experimentei o método Pound com uma comprida palavra em alemão e só não tive sucesso porque, depois de quatro meses, a família protestou: eu precisava deixar de olhar fixo para aquele livro e ir tomar banho, trabalhar etc. Mas eu já deduzira que a palavra tinha algo a ver com o frio na alma que vem de olhar a bruma sobre o Reno ao entardecer – ou então era o nome de um prato com repolho roxo.

Ideogramas seriam mais fáceis de decifrar do que palavras. Como são representações pictóricas do que se quer dizer e usam um universo de símbolos reconhecíveis em qualquer cultura – sol, montanha, árvore, casa, homem, sogra, penico –, basta ligar o símbolo à coisa e usar a lógica que, em menos de 820 anos, você aprende chinês sozinho. Já as palavras são traiçoeiras. Se Pound fosse um grego querendo aprender inglês (em vez de ser um americano que sabia até grego), não adiantaria muito se concentrar na palavra become e deduzir seu sentido, porque “become’’ significa “tornar-se’’, mas também significa “ficar bem’’ ou “cair bem’’, como no título da peça de O’Neill, Morning Becomes Electra (que não quer dizer “A manhã transforma-se em Electra’’, mas “O luto cai bem em Electra’’ ou “Electra fica bem de pretinho’’) ou da música Moonlight Becomes you. Enfim, não há maneira fácil de escapar da danação de Babel.

Eu estava pensando nisso porque imaginei um americano recém-chegado ao Rio, decidido a ser um carioca autêntico com poucas lições, soltando-se num ensaio de escola de samba e justificando sua animação com o grito “I’m that I’m, I’m that I’m!”, a tradução mais aproximada possível de “Eu tô que tô!”. Minha colaboração para uma eventual edição revista e aumentada do The Cow Went to the Swamp (ou A vaca foi pro brejo) , do Millôr.

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