GERAL

A justiça tarda e, às vezes, não chega

Gilson Camargo / Publicado em 16 de agosto de 2000

Estação rodoviária de Porto Alegre, manhã de 12 de novembro de 1978. O casal de militantes uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Dias, acompanhado dos filhos Camilo, de oito anos, e Francesca, 3 anos e meio, recém havia chegado de São Paulo, depois de uma viagem pela Europa onde reuniu documentos que faziam denúncias sobre prisões ilegais, torturas e desaparecimentos de militantes de esquerda na América Latina. O alvo eram os governos militares de todos os países do Cone Sul, organizados numa ação de cooperação internacional mais tarde identificada como Operação Condor. O casal é interpelado por policiais gaúchos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e por agentes uruguaios da Companhia de Contra-informações e do Organismo Coordenador de Atividades Subversivas (Ocoa). Acusados de tráfico de armas e contrabando de material subversivo, os uruguaios são presos e torturados no Palácio da Polícia, bem próximo do apartamento em que Lilián morava com os filhos, na rua Botafogo. Antes do seqüestro, Lilián encaminhou para o Movimento de Justiça e Direitos Humanos um dossiê com depoimentos de ex-presos políticos em que já era possível identificar a cooperação dos governos militares na repressão. Convidada a depor em uma sessão da Comissão de Justiça e Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, realizada no final de junho deste ano na Assembléia Legislativa, Lilián Celiberti falou com exclusividade ao Extra Classe sobre a rede de terror implantada no Cone Sul e das provas existentes sobre a cooperação entre os governos militares.

Extra Classe – As investigações sobre a repressão conjunta das ditaduras militares do Cone Sul contam com a cooperação de alguns países, caso do Uruguai. Mas há governos, como o brasileiro, que, ou se mantêm neutros, ou negam o envolvimento na Operação Condor. Na sua avaliação, quais são as evidências mais concretas da existência dessa cooperação internacional?

“O condor foi concebido pelos adidos militares das embaixadas”

Lilián Celiberti – Há um começo, que são os artigos do Paraguai. Na primeira reunião de trabalho, no Chile, em 1975, as forças armadas presentes consideravam que a subversão desenvolvera ações continentais, regionais e subregionais. E que, diante disso, os países estavam sendo agredidos política, econômica e militarmente. Aqui cabe uma primeira interrogação: que agressões militares existiam em cada um desses países do Cone Sul em 1975? O Uruguai, o Chile e a Argentina estavam sob ditaduras militares. Não havia uma situação de guerrilhas internas, de lutas de expressão armada. Para enfrentar essa ‘guerra sócio-política’, diz o documento, os países deviam contar não só com ‘um comando centralizado, interno e nacional, mas com uma coordenação eficaz que permita o intercâmbio de informações e experiências, além do mais alto grau de conhecimento pessoal sobre as pessoas e organizações que ameaçam a segurança nacional’. O Condor, também dizem os artigos, foi concebido e operado pelos adidos militares nas embaixadas.

EC – A senhora fala em sociedade organizada, mas o que se vê são comissões de defesa dos direitos humanos empenhadas nas investigações, ou seja, minorias da sociedade estão mobilizadas. Qual é a expectativa de que os envolvidos nessa cooperação venham a ser efetivamente responsabilizados?

Celiberti – Não tenho essa visão. No Uruguai, na Argentina, no Chile, isso está na agenda pública de cidadania ao longo desses anos. A situação do Brasil é um pouco diferente, talvez porque a ditadura no Brasil tenha surgido em 64. No Uruguai, depois de dez anos sob ditadura militar, falar do passado é um estigma de quem tem os olhos na nuca. Esse é um debate que não se encerra, não pode ser encarcerado. Por isso, hoje, 20 anos depois, aparece a necessidade de que os governantes tenham algum gesto de vontade política de pelo menos esclarecer a dor dos familiares que buscam seus desaparecidos. Até aí há uma luta de gente que não esquece. Somos atingidos pelo tipo de vida que levamos, mas eu não atribuiria a isso uma falta de sensibilidade coletiva.

EC – O governo do Uruguai tomou iniciativas para elucidar casos de torturas e desaparecimentos. A senhora acha que o presidente Fernando Henrique Cardoso devia assumir uma postura semelhante?

Celiberti – Os caminhos da verdade às vezes são complexos. No meu país, a verdade apareceu pelo caminho mais institucional possível. Todos sabemos que, mais além da renovação das forças militares, eles sabem de tudo. Isso é como um jogo de espelhos: olhamos mais adiante quando devíamos olhar aqui. Eu valorizo enormemente essas iniciativas do presidente Jorge Batlle e acho que essa é uma obrigação de todos os presidentes. No Chile, isso aconteceu via Justiça. O compromisso e a vontade política dos presidentes é muito importante, sem dúvida.

EC – O Paraguai abriu os arquivos, o Chile tirou a imunidade parlamentar, o Uruguai está colaborando. Na Argentina, estão ouvindo os militares, ainda que secretamente. O Brasil está isolado?

Celiberti – Na realidade está se gerando uma pressão. Quando Pinochet foi encarcerado em Londres, a pedido do juiz Baltazar Garzón, todos os governos do Mercosul se pronunciaram, pois consideravam uma intromissão a condenação de Pinochet por parte de um país estrangeiro. O governo chileno afirmou que essa era uma tarefa que lhe correspondia. Me parece que os governos devem demonstrar que estão em condições de esclarecer uma verdade e processar os conhecimentos desses elementos para ter uma credibilidade democrática institucional. Hoje, no mundo estão em jogo alguns mecanismos aos quais chegamos porque a justiça tarda em chegar ou às vezes não chega. Estou pensando na batalha que viveram as organizações de direitos humanos pela ratificação de uma corte penal internacional, embasada no fato de que há crimes que não se castigam nos lugares em concreto. Portanto, tem que haver uma corte que ampare o direito dos cidadãos deste mundo quando eles não encontram Justiça nas fronteiras de seus países.

EC – Ao longo desses anos, seus torturadores foram promovidos, como Eduardo Ferro, ou receberam prêmios, caso de Janoni, que foi homenageado da ONU e teve seu nome associado ao Prêmio Nobel. Como a senhora reage a isso?

Celiberti – É uma ofensa para todos. Eu não me coloco como uma vítima isolada. Eles têm de ser julgados, porque creio na Justiça igual para todos. Quando penso que há alguns “cidadãos de primeira” que não estão submetidos à Justiça, como podemos depois encabeçar toda a Justiça, as leis e os regulamentos sobre um homem ou uma mulher pobres que cometem um crime? A Justiça se baseia em um princípio universal, de que tem que ter a mesma regra para medir todos os atos de todas as pessoas em um território. A entrega do Prêmio Nobel a esse capitão, agora major Janoni, que esteve aqui em Porto Alegre trabalhando previamente ao nosso seqüestro, é uma bofetada em todas as forças democráticas do meu país. Na realidade, em meu país, a democracia foi conquistada e durante muitos anos houve muita dor, não só de quem esteve preso ou torturado, mas também de gente que viveu no Uruguai no período mais triste e tremendo, porque foi uma ditadura inoperante, que gerou pobreza e deixou um país em ruínas. Não só teriam que responder pelos crimes de lesa-humanidade, mas pelos crimes econômicos e sociais e de gestão pública que cometeram durante esses anos.

EC – Antes de ser seqüestrada por policiais do Dops e da Ocoa, a senhora entregou para o Movimento de Justiça e Direitos Humanos um dossiê com relatos de vítimas das ditaduras que denunciavam a existência de uma cooperação entre os governos militares na repressão. Quem eram os inimigos da ditadura afinal?

“Os militares consideravam inimigos todos os opositores”

Celiberti – No ano de 1978, já tínhamos bem claro que havia uma coordenação repressiva dos países do Cone Sul, que estava amparada na doutrina da segurança nacional. Em função dessa doutrina, os militares estabeleciam que tudo que não fosse sua luta era comunismo internacional e consideravam que todos os opositores eram inimigos. A doutrina estabelecia que as fronteiras não estavam ameaçadas em termos de exércitos, não era um enfrentamento de militares. O combate ao comunismo internacional era uma luta ideológica. Esse inimigo trabalhava questionando e denunciando as ditaduras no exterior. As forças democráticas, os militantes, setores políticos ou simplesmente sindicalistas que estavam no exterior da Argentina, Chile, Uruguai, Brasil, sempre encontravam aliados no parlamento, nas organizações de direitos humanos, nos advogados. Essas organizações acabam fazendo parte desse complexo internacional que era combatido pelos governos militares.

EC – O dossiê era uma prova da cooperação entre as ditaduras?

“O dossiê era composto de depoimentos de gente que conseguiu fugir”.

Celiberti – As provas que tínhamos eram denúncias de perseguição política, prisões arbitrárias, tortura e desaparecimento de militantes. O dossiê era uma compilação de depoimentos dados por gente que conseguiu fugir da sala da morte e exilar-se em países europeus através das embaixadas. A partir desses depoimentos, reunidos no documento que entregamos ao MJDH em Porto Alegre, as embaixadas elaboravam as listas de desaparecidos. As perseguições políticas também são relatadas pelos ‘artigos do Paraguai’, que são documentos gerados pelos próprios militares, com atas de reuniões e relatos sobre prisões políticas, uma prova muito concreta da execução de ações conjuntas entre governos militares de países do Cone Sul. Comunicam, por exemplo, as prisões e traslados de pessoas de um país para o outro. São relatórios que militares fazem a seus superiores sobre a detenção de dois argentinos, informando a data em que essas pessoas foram trasladadas e identificando o avião que as transportou, quem comandava a operação. Essas quatro pessoas figuram nas listas de desaparecidos: são dois uruguaios e dois argentinos. Então, esses artigos do Paraguai, que agora estão sendo microfilmados e enviados ao Brasil, têm muitos elementos para dar a conhecer as operações, porque são dos próprios militares. Há a afirmação de um funcionário do FBI de que esta coordenação começa em 1975 e que se chama Plano Condor, depois aparecem atas de reuniões realizadas no Chile.

EC – A senhora disse que sobreviveu ao seqüestro graças à abertura política que se ensaiava no Brasil à época, o que permitiu que a opinião pública tomasse conhecimento do seqüestro em função da liberdade de imprensa…

“O comportamento das autoridades brasileiras não foi ético”

Celiberti – No caso do Brasil, o comportamento das autoridades não foi ético, foi político. No traslado, o Dops atuava sob ordens. Havia um acordo que, sem dúvida, transcendia as pessoas que estavam diretamente envolvidas no seqüestro. Ninguém vá pensar que esse delegado (Pedro Selig) tomou sozinho a decisão. Na realidade ele era um funcionário subordinado e simplesmente atuou, mostrou sua cara. O Brasil estava sob pressão dos Estados Unidos, em função do Plano Carter. Jimmy Carter tinha como meta “democratizar” o Cone Sul. O Brasil era um dos países nos quais se considerava que a subversão não existia mais e, por isso, teria melhores condições para chegar a um processo de democratização – ainda que fosse um processo de fachada. Esse seqüestro aguçou as contradições entre aqueles setores que queriam dar por finalizado um período de arbitrariedades e que de certa forma já havia aberto um processo democrático, com liberdade de imprensa, coisa que não existia nos outros países. Em 1978, havia um movimento sindical organizado fundamentalmente em São Paulo. Havia um processo contraditório que tinha a ver com a própria modernização do Brasil e sua inserção no sistema internacional como um país produtor de matérias-primas, sua inserção comercial e produtiva. Para isso, o Brasil precisava assumir certos processos de modernização política. Era como dizer: as ditaduras militares já cumpriram seu ciclo, agora o país já pode voltar a uma etapa democrática.

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