GERAL

Poesia é um código secreto

Marcia Camarano e César Fraga / Publicado em 21 de outubro de 2001

entrevista

Fotos: René Cabrales

Fotos: René Cabrales

Imagine um café com Antonio Skármeta, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna. Os três sentados à mesma mesa. Durante a 9ª Jornada de Literatura os três se reuniram descontraidamente, entre um painel e outro desse evento que reuniu mais de dez mil pessoas em Passo Fundo. O assunto não poderia ser outro: poesia. A equipe do Extra Classe teve o prazer de flagrar esta conversa e realizar mais que uma entrevista, um pequeno debate sobre aculturamento, tecnologia, globalização e literatura. Skármeta é chileno, autor de O Carteiro e o Poeta (1995); Não foi nada (1980); A velocidade do amor (1989, e As bodas do poeta (1999), entre outros. Mineiro, Sant’Anna é jornalista e escritor tem cerca de 40 livros publicados, entre eles Drummond: o gauce no tempo (1992); e Que país é este?). Marina nasceu em Asmara, na Etiópia, mas não é menos brasileira. Também jornalista e escritora é casada com Sant’Anna. Tem publicado vários livros e ensaios jornalísticos. Entre eles, Eu sozinha (1968); Contos de amor rasgados (1986); Eu sei mas não sabia (1996) e Intimidade pública (1999); além de uma série de obras dedicados ao público infantil). Os três dividem anseios e posições semelhantes. Fragmentos desta entrevista já haviam sido publicados na edição especial do Extra Classe que circulou durante o evento e divulgada também no site do Sinpro/RS. Agora nossos leitores poderão ler na íntegra o conteúdo deste bate-papo.

Extra Classe – Skármeta, é muita responsabilidade ser poeta e escritor no Chile, um país que deu ao mundo Pablo Neruda e Gabriela Mistral?
Skármeta – No Chile há uma epidemia grafomaníaca. Todos são poetas. Um editor confessou, há um ano, que, se todos que escrevem poesia no Chile lançassem um livro, o mercado editorial estaria milionário. Desde que Pablo Neruda ganhou o Prêmio Nobel, não há ninguém que não tente alguns versos.

EC – A globalização favorece ou empobrece os países e povos que já têm uma certa tradição em literatura?
Skármeta – No Chile, se vem alguma informação, alguma arte ou algum produto de fora, há a capacidade de “chilenalização” muito rápida, se vulgariza e se ironiza isso, se amestiça muito rápido e se transforma numa espécie de paródia. Acho que o talento da América Latina é a paródia frente à globalização.
Affonso de Sant´Anna – No Brasil, o processo é muito parecido, existe essa vocação para a paródia na cultura brasileira. Nos anos 50, por exemplo, Hollywood produzia um determinado filme e imediatamente o cinema brasileiro fazia algo em cima. É como querer ser ou tentar ser, só que de cabeça para baixo. Além disso, a paródia é sempre sintomática, ambígua. Agora, acho que a poesia escapa à globalização por uma razão muito simples: ela é contrabando. Apesar de todo mundo se considerar poeta, ela é underground. Só uma minoria faz boa poesia, ou uma poesia razoável. O maior poeta brasileiro, pelo menos deste século, praticamente não tem tradução nenhuma para outras línguas, que é o Drummond. Então a obra não acontece social e historicamente, ao contrário da novela, como a do Skármeta, por exemplo (O Carteiro e o Poeta), que foi traduzida quase que simultaneamente no mundo inteiro. A poesia é um código secreto, por isso não entra na questão da globalização.
Marina Colasanti – É preciso fazer, em primeiro lugar, uma retrospectiva histórica: a exportação de cultura, junto com a economia, existe desde antes do Império Romano. Sempre o povo ou o país mais rico tentou impor a sua cultura. E isso, embora tenha arrasado com algumas, fertilizou outras. Os países ricos também se apropriam da cultura alheia. Os maias se apropriaram da cultura dos etruscos. China e Japão se apropriam da cultura um do outro. Isso sempre foi ameaçador e de uma certa maneira sempre foi fertilizante. Ao mesmo tempo em que uma cultura tenta se impor, cria-se uma resistência que faz um caldo e que se nacionaliza, como diz o Skármeta. Ou seja, existem mecanismos de defesa contra a invasão. Na verdade o Brasil era um país de cultura francesa até recentemente, por exemplo, já não o é. É claro que a força dos veículos de massa hoje são muito ameaçadores. A reação a isso está na força cultural de cada país receptor.

EC – Dá para viver de poesia?
Affonso – Olha, sou professor aposentado, sou cronista. Eu não vivo de literatura, eu vivo para a literatura, digamos. Mas quando eu crescer, gostaria de ser escritor chileno (risos).
Marina – Eu vivo de escrever. Aliás, sempre vivi de escrever. No momento não estou na imprensa, estou sem veículo. Mas posso dizer que vivo da literatura e de escrever. De repente, me encomendaram um livro agora para até o final do ano. Um livro sobre o Rio de Janeiro. Eu vou fazer, sou profissional. Além disso faço conferências, palestras, oficinas.

EC – Como está a poesia hoje? As pessoas estão lendo e fazendo poesia? Quais as dificuldades?
Affonso – Se a gente pedir a um jovem poeta brasileiro que cite algum dos novos nomes da Alemanha ou da Espanha, ele não sabe. A poesia hoje funciona em guetos. Tem dificuldades lingüísticas, de tradução. Isso é bom e é ruim. A poesia brasileira tem uma identidade muito forte, talvez graças a não circulação. A poesia portuguesa é muito diferente da brasileira. Ao passo que na ficção há uma técnica de tratamento muito semelhante na França, nos Estados Unidos, no Brasil. Agora, eu quero falar da importância da Internet para o resgate dos poetas. Como as editoras não se interessam comercialmente pela poesia, a Internet se transformou numa autêntica porta de livraria, virou uma espécie de revista literária eletrônica.
Skármeta – Entre os escritores, são os poetas os que têm menos visibilidade, mas são também os que têm mais prestígio no mundo da cultura. A poesia pode estar mais escondida, mas no mundo da cultura é a que gera mais inteligência criativa. Porque as imagens são mais determinantes, mais puras.

EC – No caso de O Carteiro e o Poeta, foi o êxito do filme que impulsionou o livro o foi o contrário. O êxito editorial que empurrou a indústria cinematográfica na direção da literatura?
Skármeta – O livro já era um sucesso quando o filme foi realizado. Tem méritos próprios. Na época, já havia sido traduzido em 15 idiomas e vendia bem. Quando saiu o filme no Brasil e em outros países, se ampliou enormemente a “visibilidade” do livro. Nesse momento reuniu êxito em grande escala. O êxito, esse sim, foi monstruoso. Tocou o coração do público em todo o mundo. Também os livros necessitam de apoio técnico para dar-lhes visibilidade. Podes publicar o livro mais genial do mundo e, se ninguém sabe dele, esse livro só existe na universidade ou na biblioteca. Nada mais. Então o que quero dizer é que a visibilidade da película O Carteiro e o Poeta se deu basicamente porque a distribuidora internacional do filme gastou 2,5 milhões de dólares em marketing, em publicidade. E o filme custou 4,5 milhões de dólares. Isso não se passa no mercado editorial, por exemplo. Com alguns autores dos livros, a quem a editora custa a pagar o terço do que é acordado como escritor, imagine as despesas em publicidade de lançamento. Na comparação com a indústria cinematográfica, praticamente inexiste.

EC – A poesia brasileira é de difícil tradução para outros idiomas?
Affonso – Sim, mas existe essa dificuldade dos dois lados. Se você perguntar a um poeta jovem brasileiro para ele citar o nome de um poeta jovem alemão, ou um poeta jovem espanhol, ele não sabe. Ele pode falar de Neruda, no Chile, por exemplo. Mas só os medalhões. Isso acontece por uma série de fatores e de tradição de leitura. Existe uma dificuldade lingüística, da tradução. Isso é bom e ruim. A poesia brasileira tem uma identidade muito forte, talvez graças a não-circulação. A poesia portuguesa é muito diferente da brasileira. Ao passo que a ficção, você pode ver uma certa maneira técnica de tratar a ficção muito semelhante na França, Estados Unidos. No Brasil existe uma disponibilidade técnica, porém artesanal que dificulta tornar-se internacional.

EC – A internet ajuda ou atrapalha no processo de divulgação e até de consumo de literatura?
Affonso – O assunto é muito vasto. Eu vou apenas falar de um detalhe. Da importância da Internet para resgatar os poetas. Quando as editoras não se interessam comercialmente pela poesia, a Internet se transformou na autêntica porta de livraria, transformou-se na revista literária eletrônica. Qualquer poeta jovem que tenha um site na Internet, tem na página de visita de seu site, cinco mil, dez mil visitas. E jamais venderia 300 exemplares do seu primeiro livro. E, no entanto, ela é visitada maciçamente. O que é o ápice da tecnologia veio ao encontro da coisa mais subjetiva que existe: a poesia. A poesia está passando por um trânsito, com algumas conseqüências imprevisíveis. Eu acho ótimo.

EC – Então a tecnologia da Internet contribui com a literatura…
Skármeta – Entre os escritores aumenta a visibilidade. Mas também dá ferramentas e inspira possibilidades e estilos de poetas e antipoetas.
Affonso – Parafraseando e brincando com o que o Skármeta falou: o que o poeta precisa é de um carteiro. Ou em tempos de eletrônica, de um site. Talvez, se o seu best seller fosse escrito hoje, poderia se chamar O poeta, o carteiro e a internet.

Comentários