GERAL

Em busca da globalização do bem

Ana Esteves / Publicado em 18 de março de 2002

         

solidaria3

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

A economia solidária foi um dos grandes temas do Fórum Social Mundial 2002, realizado, de 31 de janeiro a 05 de fevereiro, em Porto Alegre. Especialistas dos quatro cantos do planeta apontaram a importância de se desenvolver uma prática alternativa de trabalho e renda, que se oponha à lógica neoliberal, essa última voltada exclusivamente ao mercado. Entre tantas iniciativas apontadas e discutidas durante o Fórum, a proposta economia solidária é uma das poucas que já está em prática, recebendo considerável destaque mesmo em países desenvolvidos como França e Espanha. Considerada como uma das possíveis saídas para o estabelecimento da chamada globalização do bem, a economia solidária aparece como resposta à crescente desumanização da economia, resultando no aumento da pobreza e das desigualdades sociais. Estabelecida na Europa do início do século 19, a idéia da economia solidária passou a ganhar força apenas há três décadas, com o surgimento da chamada economia neoliberal.

Entre gritos de protesto contra a globalização e o neoliberalismo, a ALCA e todos os tipos de discriminação, segregação e exclusão, entre as passeatas feministas pela legalização do aborto e de palestinos pela libertação da Terra Santa, entre tantas outras manifestações que movimentaram o II Fórum Social Mundial, se ouvia também a voz de quem sabe, na prática, que uma outra economia é possível. Por meio da economia solidária, trabalhadores do mundo inteiro estão experimentando uma nova alternativa de renda e emprego, que não busca o lucro capitalista e que se opõe à economia neoliberal. A chamada ‘economia humana’ propõe que os cidadãos se reapropriem das atividades de produção, de divisão e troca, indo de encontro às leis de mercado. Por tudo isso, a economia solidária é considerada como um grande passo no sentido de criar uma outra globalização: a do bem.

“O projeto de economia solidária está reforçando-se em todo o mundo, representando um avanço para a construção do Estado Social, uma alavanca para a redemocratização, através da globalização da solidariedade”, afirmou o sociólogo francês, representante do Centro de Pesquisa e Informação sobre Democracia e Autonomia (Crida), Jean Louis Laville. Ele foi um dos palestrantes da conferência sobre o tema, ocorrida no dia 01 de fevereiro durante o Fórum (realizado de 31 de janeiro a 05 de fevereiro, em Porto Alegre). Laville destacou que a originalidade da economia solidária está na capacidade de resistir e construir, contestar e propor, assim como ligar a crítica à globalização às práticas de cidadania econômica no cotidiano. “E desta forma construir uma outra globalização, com um pensamento solidário nos âmbitos econômicos, criar novos serviços e novos intercâmbios”.

Repensando as cadeias produtivas

 

Dejanira (em pé ao fundo) dá aulas gratuitas de corte e costura para seus alunos na Vila São Pedro

Foto: René Cabrales

Dejanira (em pé ao fundo) dá aulas gratuitas de corte
e costura para seus alunos na Vila São Pedro

Foto: René Cabrales

A economista espanhola, representante da Rede de Economia Alternativa e Solidária (Reas), Carola Reintjes, também participou da conferência – inserida no eixo temático A Produção de Riquezas e a Reprodução Social – e afirmou que a economia solidária repensa a organização das cadeias produtivas. “Ela não está baseada na competição, é horizontal, integradora com o objetivo de aumentar a igualdade social”. Conforme a economista, a “coluna vertebral” do modelo de economia solidária é formada prioritariamente pela autonomia dos grupos, pela propriedade e controle social dos processos produtivos, comerciais e financeiros, pela produção a partir das realidades locais e pela auto-sustentação. “A economia solidária busca a produção de bens públicos para a comunidade”, declarou. Carola Reintjes apontou ainda alguns desafios a serem superados pelo modelo: “compor um mapa da economia solidária no mundo, realizar articulações coletivas dentro da esfera financeira, estabelecer estratégias com os movimentos sociais e constituir alianças internacionais de economia solidária”.

No entanto, a economista sublinhou que o maior desafio é, sem dúvida alguma, reconstruir as condições macroeconômicas partindo do ser humano e desconstruir o modelo econômico dominante. “Precisamos entender que o ritmo da mudança é lento e complexo, uma vez que estamos sobrecarregados de velhos vícios”. Carola criticou a lógica neoliberal que se vende como único modelo econômico possível.

Alternativa para produzir riqueza

Para o sociólogo Jean Louis Laville a primeira condição para que a economia solidária seja o fundamento de uma globalização humanizadora é justamente desfazer a idéia de que a economia se reduz ao mercado. “O triunfo do neoliberalismo é nos fazer crer que só o mercado produz riqueza”, garante. E contesta: “a solidariedade é criadora de riqueza material e também cultural, por isso o pensamento único de mercado deve ser substituído pela percepção da realidade da economia que é diversa, plural”. Laville vai além e adverte que os neoliberais somente estão de acordo em ceder espaço para a economia solidária, sob a condição de que seja apenas uma economia de reparação, de caridade para os pobres, o que atenuaria os efeitos da pobreza, sem combater as causas.

O economista francês, especializado em desenvolvimento, René Passet afirma num dos trechos de seu livro mais recente “A Ilusão Neoliberal” que “na realidade, dois fatores – o homem e o capital – associam-se para transformar a natureza. A economia construída exclusivamente segundo a lógica do segundo não passa de uma ‘ciência truncada’, uma simples ‘lógica das coisas mortas’, pura ausência de sentido estabelecida sobre uma inversão de finalidades. Mas existe outra baseada nos imperativos da pessoa humana, ressituando as coisas em seu verdadeiro lugar de finalidade ou instrumento: a economia servidora, não senhora.”

Mercado total e egoísmo globalizado

O economista e professor da Universidad Nacional de General Sarmiento, da Argentina, José Luiz Coraggio, também presente no FSM, lembrou que as teorias econômicas neoliberais tiveram a intenção, nas últimas três décadas de impor o princípio de um mercado total. “Por essa teoria, toda a atividade humana fica melhor organizada se cada um, de forma egoísta, tentar conseguir o melhor para si e desta concorrência sem limite supostamente se beneficiaria toda a humanidade”, protestou.

Coraggio disse que uma prova da importância da economia solidária é a multiplicação de pesquisas em nível universitário sobre o tema. Para ele a proposta precisa ampliar-se no âmbito da educação, introduzindo o tema nos currículos do ensino fundamental. Ressaltou ainda que a proposta de auto-sustentação da economia solidária não significa criar nichos isolados. Pelo contrário: segundo ele, as experiências locais devem relacionar-se em nível global.

O sociólogo senegalês do Instituto Fundamental da África Negra, Abdou Salam Fall, que participou do seminário Economia Popular Solidária (realizado no dia 02 de fevereiro), ressaltou a importância da criação de uma rede solidária, que se estruture no mundo inteiro, propondo intercâmbio de caminhos econômicos para favorecer as dinâmicas sociais, e a criação de outro caminho comercial. “Precisamos obter respostas em vários países para conquistar direitos para aplicá-los mundialmente. A tendência ainda é a empresa tradicional, mas estamos progredindo”.

Economia solidária na vida real

Oficina de reciclagem de resíduos sólidos aposta na coleta seletiva de lixo para garantir renda às famílias com poucos recursos

Foto: René Cabrales

Oficina de reciclagem de resíduos sólidos aposta na coleta
seletiva de lixo para garantir renda às famílias com poucos recursos

Foto: René Cabrales

No decorrer da conferência que esmiuçou várias facetas do que vem a ser economia solidária, a peruana Rosa Guillén, da Rede Latino-americana Mulheres Transformando a Economia, contextualizou a situação feminina e criticou a lógica capitalista, “que faz uma diferenciação entre o desenvolvimento, a manutenção e a expansão das capacidades humanas, prejudicando as mulheres de forma especial. A idéia capitalista – prosseguiu Rosa – é de que as mulheres se restrinjam ao âmbito doméstico, com se não fizessem parte do desenvolvimento econômico”, ressaltou.

Aqui em Porto Alegre, muitas mulheres já entraram de cabeça na proposta do modelo econômico solidário. Há sete anos, a dona-de-casa Dejanira Rosa Einloft fundou a Grife do Morro da Cruz, uma cooperativa que trabalha com aproveitamento de materiais para a elaboração roupas. “Eram mulheres excluídas do mercado de trabalho em função da idade, ou que precisavam ficar mais próximas dos filhos”, explica Dejanira. Segundo ela, hoje, as oito mulheres que compõem o grupo chegam a faturar de R$ 300 a R$ 500 por mês. Para ela, a economia solidária vale a pena, mas é preciso ter persistência: “o lucro não é imediato, mas, trabalhando duro, hoje conseguimos ter renda”.

A semente do Morro da Cruz já está dando frutos. Hoje, além de manter o trabalho com a grife, Dejanira dá aulas gratuitas de corte e costura para 30 alunos, entre pacientes reabilitados do Hospital Psiquiátrico São Pedro e moradores da Vila São Pedro. “É uma iniciativa da Secretaria Municipal da Indústria e Comércio (Smic) e da Fundação Solidariedade que coordena o curso”, conta. Além de costura, o grupo aprende o manejo das máquinas, a modelagem e a montagem das peças; os alunos também têm aula de gestão para saber como se organizar, regularizar a futura cooperativa.

O trabalho do grupo já está dando retorno, com a comercialização de banners para empresas e bolsas que foram vendidas durante o II Fórum Social Mundial. As dependências do Hospital São Pedro abrigam também outro grupo que trabalha com base no mesmo conceito. “São ao todo 45 pessoas que realizam um curso de triagem de resíduos sólidos, em busca capacitação profissional e com o objetivo de criar uma associação”, explica o coordenador administrativo do projeto Coletivo São Pedro, Márcio Cairuga. Segundo ele, os alunos recebem uma bolsa de R$ 220 durante seis meses, além de uma conta bancária. “A iniciativa, coordenada pelo programa Coletivas de Trabalho, da Secretaria Estadual do Trabalho, Cidadania e Ação Social, resgata a cidadania, dá um posto de trabalho e foge da lógica do patrão, pois eles são os próprios patrões e podem dar o rumo que quiserem para a associação deles, numa lógica diferente do que a lógica do capital”, completou Cairuga.

Outra iniciativa é a da Associação de Artesãos Santo de Casa que trabalha há oito anos com o princípio da comercialização coletiva. “Temos três pontos de vendas onde todas as despesas são divididas entre os 60 associados, que trabalham com artesanato. No início pensamos em comercializar móveis, mas o preço da madeira era muito alto”, conta a presidente da entidade Zenaide Soares Bonneau. Ela declarou que a proposta da economia solidária é importante, congrega as pessoas que buscam trabalho e renda, e que sozinhas não se sustentariam. “Se fosse montar uma loja sozinha, não teria capital”, afirma Zenaide.

A idéia da artesã de trabalhar com madeira é realidade para a Associação Emana. Com sede em Madri o grupo desenvolve duas frentes de inserção social: a Biomueble, que se dedica à fabricação artesanal de móveis e à de perfumes, criados por mulheres com dificuldades financeiras e dificuldades para ingressarem no mercado de trabalho.

A história das alternativas viáveis

O sociólogo Jean Laville aproveitou a conferência para traçar uma linha de tempo da economia solidária, que segundo ele já era praticada na Europa do início do século 19, quando foram criadas as primeiras associações. Elas reuniam trabalhadores do campo e da cidade que tinham como objetivo defender e reivindicar direitos mutuamente. “Desde então, para enfrentar problemas sociais criados pelo mercado, essas ações mostraram que um outro princípio econômico podia ser mobilizado”, declarou. Nesse contexto se confirmou que a solidariedade vinha da ação recíproca entre cidadãos livres e podia ser um princípio econômico contra o princípio liberal.

Laville conta que as experiências foram reprimidas na segunda parte do século, mas deixaram suas marcas. Elas contribuíram também para construir um estado de direito em que a solidariedade cada vez mais transformou-se em sinônimo de distribuição de renda. Fruto disso, o projeto de economia solidária foi progressivamente esquecido. Apenas retornou à agenda de setores sociais há duas ou três décadas, com o surgimento da economia neoliberal. “Muitos apoios se mobilizaram contra este movimento, para mostrar que era possível criar serviços por meio de cooperação. Os chamados “Serviços de Proximidade” se desenvolveram na Europa a partir do envelhecimento da população e da profissionalização das mulheres. Depois, com o desemprego e a exclusão social, surgiram outras práticas “com a finalidade de reintegrar na economia pessoas que tinham sido excluídas”.

Ele ressaltou também, a existência de práticas de economia solidária que criticam a utilização que é feita da moeda e das finanças. Muitas organizações tentam criar redes de intercâmbio que não passam necessariamente pela moeda e permitem refundar relações sobre a proximidade e a cooperação. Também há redes que se organizam para promover uma contra-utilização do dinheiro, “para que as finanças possam ser utilizadas de forma solidária, sobretudo em benefício de pessoas que não têm acesso a financiamento bancário”, completou.

 

Comentários