EDUCAÇÃO

A calle Florida é do povo

Jéferson Assumção / Publicado em 13 de abril de 2002

De Buenos Aires especial
para o Extra Classe

Desde dezembro de 2001, os panelaços, que aconteceram quase diariamente na Argentina, foram derrubando um a um os presidentes que tentavam, com característico populismo, aplacar o fogo do povo. Acabaram chamuscados, apagados e humilhados como o restante dos políticos do país, enquanto, de maneira surpreendente, os argentinos protagonizam uma história de muito alarido e politização à força, nas ruas. Acuados, questionados até às raízes em seu papel, os políticos argentinos são agora uma espécie de párias da sociedade, excluídos do convívio por incompetência (desemprego em 22%), acusados de desonestidade (descobertas de desvios bilionários). Há poucas semanas, o ex-presidente peronista Carlos Menen declarou a um jornal de Buenos Aires, o Clarín, aquilo que é a tônica da relação classe política versus sociedade civil argentina. Disse que nenhum político argentino pode andar em paz nas ruas do país. E mais: “O que mais me entristece é não poder caminhar pela rua Florida”. A mensagem argentina à sua classe representativa é: a calle Florida é do povo e de quem merece caminhar por ela.

“É um povo um tanto diferente do restante da América Latina”. Como conta o jornalista e escritor Pierre Kalfon, no jornal le Monde Diplomatique, foi a partir de 1879 que vieram as grandes ondas de imigrantes da Europa, de países como Itália, Espanha, França, Rússia e Polônia, além de Síria e Líbano. Se, em 1850, a população da Argentina era de 800 mil pessoas, em 1914 já eram oito milhões. Um em cada três argentinos era estrangeiro e, em Buenos Aires, de cada dois argentinos, um tinha nascido fora. E na Europa. Portanto, nada mais normal que aquela cultura aportasse com tanta força em Buenos Aires.

Protestos diários na Argentina impediram a classe política de sair às ruas

Reuters

Protestos diários na Argentina impediram a classe política de sair às ruas

Reuters

Em pouco tempo, a Argentina já tinha os melhores índices de prosperidade e alfabetização do continente. A primeira boa fase termina com a crise mundial de 1929, mas a economia só foi reativada com a Segunda Guerra, quando surge a lendária figura de Juan Domingo Perón. Populista, sua popularidade cresceu tanto, e em tão pouco tempo, que os militares o despacharam do poder. No mítico 17 de outubro de 1945, no entanto, os pobres dos bairros tomaram Buenos Aires num dia de tal calor que tiraram as camisas. São os descamisados que, com seu ato, fundaram o maior símbolo da política argentina, que resiste até hoje: o peronismo. Um ano depois, Perón estava eleito e, em 1955, de novo, num período de muita prosperidade. Mas a política interna fica crítica e Perón foge. Voltará só em 1973.

De 1976 a 1983, os “anos de chumbo” matariam 30 mil pessoas no país do Prata (a longa ditadura brasileira matou três mil). Milhares de intelectuais deixariam o país. Em 1982, mais um golpe: a Guerra das Malvinas, fracassada e inútil, contra a poderosa Inglaterra, só deixaria um saldo positivo. Os militares, humilhados, abandonariam, de cabeça baixa, o poder. Raúl Alfonsin, do Partido Radical, é presidente, sucedido pelo peronista Carlos Menen (atualmente acusado de desviar US$ 40 milhões das privatizações). Em seu governo, a dívida externa duplicou e, ao anunciar que a Argentina tinha entrado para o Primeiro Mundo, levou o país a viver uma abundância fictícia. Sucedeu-o Fernando de La Rúa, que teve de deixar o poder sob o terremoto provocado pelo povo, em dezembro de 2001.

As trapalhadas políticas não são de hoje. Bem antes de entrar de cabeça no neoliberalismo, os governos argentinos já haviam tomado decisões políticas que, certamente, contribuem para o atual estágio da crise. Um exemplo claro disso vem do presidente do Comitê pelo Cancelamento da Dívida Externa dos Países do Terceiro Mundo, Éric Toussaint. Segundo ele, em 1914, durante a revolução liderada por Emiliano Zapata e Pancho Villa, o México suspendeu totalmente o pagamento de sua dívida externa. Até 1942, pagou apenas quantias simbólicas. “Outros países, como o Brasil, a Bolívia e o Equador também suspenderam (total ou parcialmente) os pagamentos a partir de 1931. No caso do Brasil, essa pausa seletiva nos pagamentos se estendeu até 1943, ano em que foi negociado um acordo que permitiu reduzir a dívida em 30%. O Equador, por seu lado, manteria os pagamentos suspensos de 1931 até a década de 50”, escreve Toussaint em Le Monde Diplomatique. Durante a década de 30, 14 países suspenderam os pagamentos da dívida. Mas entre os grandes devedores, só a Argentina manteve os pagamentos sem interrupção… Como se vê, o calote argentino está mais de meio século atrasado.

A riqueza argentina, real em alguns momentos, fictícia em outros, levou seus governantes a muitos equívocos e teve sérias conseqüências que se refletem até hoje. Mais recentemente, os remédios do neoliberalismo mostraram-se fatais ao país. O lépido Domingo Cavallo, ministro da Economia desde o regime militar, introduziu o sistema de duas moedas, com peso e dólar, e espalhou a galope, do Pampa à Terra do Fogo, as reformas neoliberais: privatização, desregulamentação da economia, abertura do mercado etc, que levaram a Argentina ao fundo do poço. Por falar nisso, um outro jornal de Buenos Aires afirmou, numa clara referência ao Brasil, que uma coisa é cair no poço, outra é sempre ter vivido lá. De qualquer forma, pelo menos os argentinos se deram conta, com a crise, de que as chances de saírem do buraco são mínimas sem que as pessoas resolvam, como nas ruas de Buenos Aires, assumir seu lugar na história.

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