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“Muitas vezes se confunde paz com passividade”

Jéferson Assumção / Publicado em 17 de abril de 2002

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Fotos: René Cabrales

Fotos: René Cabrales

Prêmio Nobel da Paz em 1980, arquiteto, escultor e ativista pelos direitos humanos, o argentino Adolfo Perez Esquivel é uma das principais personalidades a debater o tema da paz no mundo todo. Nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1931, e durante a violenta ditadura militar argentina – que deixou um saldo de 30 mil entre mortos e desaparecidos – teve um destacado papel na defesa dos direitos humanos. Não só em seu país, mas atuando em muitos outros da América Latina. Em 1974, foi eleito o coordenador geral para a América Latina de grupos de base que promoviam a libertação do continente por meios não-violentos. Considerado hoje um dos grandes pacifistas do mundo, Esquivel fundou na década de 70 o Serviço de Paz e Justiça, que denunciou internacionalmente as atrocidades do regime militar argentino. Por isso, foi preso, em 1975, por outra ditadura, a brasileira, e encarcerado com bispos latino-americanos no Equador, em 1976. Na Argentina em 1977, foi torturado, ficando preso, nesta situação, por 14 meses. O reconhecimento veio em 1980, com o Prêmio Nobel da Paz. Desde então, ele é uma espécie de embaixador da paz, em diversas partes do mundo. Integra o movimento mundial antiglobalização econômica e participou tanto em 2001 quanto em 2002 do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Agregando muitos conceitos à questão da paz, para Esquivel é impossível pensá-la dissociada dos problemas da fome, da exclusão, da manutenção de privilégios de poucos e da dívida externa. A paz, ensina Esquivel, não é algo dado, mas algo que se deve aprender a construir.

Extra Classe – O violento 11 de setembro mudou alguma coisa para o movimento antiglobalização econômica, que vinha crescendo e que tem como um de seus objetivos principais a construção da chamada paz real, ou seja, a paz sem desigualdade social?
Adolfo Perez Esquivel – Não, não afetou. Acho que o 11 de setembro marcou uma etapa que mostrou muitas coisas a nós. Primeiro, mostrou a vulnerabilidade do império e, em segundo lugar, a dimensão atroz de um atentado que custou a vida de mais de cinco mil pessoas, o que dói a todos. Também mostrou a posição do governo dos Estados Unidos de não reconhecerem as Nações Unidas. De pôr-se sobre o resto do mundo para buscar um castigo aos responsáveis pelo atentado, no Afeganistão. Acho que, neste sentido, mudaram algumas coisas, mas não mudou a situação dos povos de ir buscando seus caminhos da libertação, da consciência coletiva, de construir outros espaços, como o Fórum Social Mundial, um exemplo.

EC – No dia 11 de setembro, o senhor estava em Porto Alegre, para o lançamento do 2º Fórum Social Mundial, na Usina do Gasômetro. Acabou redigindo o manifesto do Fórum, junto com outras personalidades do movimento mundial antineoliberalismo, contra os atentados e em favor da paz com justiça social. Naquele dia, pouco depois de noticiados os atentados, o senhor chamou a atenção para um fato importante: a notícia saída no mesmo dia, da morte de milhares de crianças, de fome. Como o senhor interpreta este fato?
Esquivel – Sim, isso foi no próprio 11 de setembro e ficou conhecido por poucos. Houve um atentado terrorista sobre a grande potência, mas os meios de comunicação não falaram que naquele mesmo dia a FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) publicou um informe dizendo que mais de 35.600 crianças morrem de fome no mundo. Isso não é notícia nos grandes meios de comunicação. Os governos não são mobilizados e ninguém diz uma palavra sobre a bomba silenciosa da fome. Foi no mesmo 11 de setembro, mas qual foi a reação do mundo ante estes dois fatos? Trataram do atentado sobre Nova York e Washington e não sobre as crianças que morrem de fome. Mais de 35.600 crianças! Uma coisa não justifica a outra, mas a atenção do mundo, dos meios de comunicação, até o dia de hoje, está sobre o problema do atentado de 11 de setembro e seus desdobramentos. Mudou algo no mundo, com a morte de mais de 35 mil crianças? E há uma outra pergunta que temos que fazer: o que está acontecendo quando se investe na Guerra do Afeganistão e em armamentos mais de US$ 2 bilhões enquanto as crianças morrem? Qual é a posição da humanidade sobre esta situação? Sem falar dos genocídios nos grandes países africanos, Ruanda, Burundi, Congo, Zaire, a tremenda situação que hoje vivem seus povos, em que há mais de três milhões de mortos. O que acontece com a Colômbia? Há mais de dois milhões de pessoas que tiveram que fugir de suas terras devido aos massacres. Então, o que acontece com as Nações Unidas quando ficam completamente à margem disso? Acho que se deve repensar essas coisas.

EC – Então, para o senhor o 11 de setembro é menos relevante que todas esses exemplos?
Esquivel – O 11 de setembro marcou alguns, mas não marcou a vida dos povos. E pôs em evidência que os extremos se tocam. Acho que tem três eixos fundamentais a serem analisados em relação ao 11 de setembro. Um é o do poder político, outro o do poder econômico e outro o do poder militar. Além disso, é necessária uma leitura da intervenção dos Estados Unidos em outros países. Eles sempre buscaram o conflito fora de seu território e desta vez tiveram o problema dentro do próprio país. Isto, logicamente, assinala algumas coisas. Uma delas é a questão do grau de vulnerabilidade que têm os EUA, eles que pareciam ser invulneráveis. Os atentados mostraram essa debilidade. E eu me preocupo particularmente com isso porque há pouco tempo na Argentina houve dois atentados sumamente graves, nas comunidades judaicas – um na Embaixada de Israel – e que até hoje têm suas conexões internacionais investigadas…

EC – O senhor acha que há um risco de aumentarem as ações militares dos Estados Unidos no resto do mundo?
Esquivel – Esperamos que não, mas terminamos um século com duas guerras mundiais e mais de 57 conflitos no mundo – muitos desses vigentes até o dia de hoje. E na América latina, é visível uma re-militarização, pelos Estados Unidos, desde antes dos atentados. Neste momento, está em curso o Plano Colômbia com tropas integradas por norte-americanos. Há bases militares dos Estados Unidos no Equador, na América Central – na Costa Rica, Honduras, Guatemala, El Salvador e Nicarágua. Logicamente que é preocupante esta re-militarização do continente, o que tem a ver também com a Alca, a área de livre comércio que os EUA querem fazer na América Latina, dominando-a. A Alca vai gerar a destruição dos mercados regionais, como é o caso do Mercosul, o mercado andino, o caribenho e o centro-americano. A política de introduzir a Alca é a mesma do discurso da hegemonia norte-americana no continente. Estamos em uma situação internacional extremamente crítica, principalmente nos países chamados de Terceiro Mundo, onde há situação de pobreza e de aumento da Dívida Externa, que assola a vida dos povos. Acredito que se não se atentar para isso se podem agravar a situação nos três distintos níveis.

EC – Qual o papel do movimento antiglobalização econômica no mundo de hoje?
Esquivel – Este tipo de globalização que está aí é uma forma de dependência, por isso temos que tratar de revertê-la. Pensamos que, através da organização social, da proposta de alternativas, da supressão das dívidas externas, podemos fazê-lo. E estamos trabalhando nesta direção. Temos propostas alternativas como fazer chegar a questão da dívida externa à Corte Internacional e suspender os pagamentos da dívida. Ela é sumamente ilegítima e é mera transferência de capital. Temos que mudar o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Estamos trabalhando, através de um grupo de economistas, políticos e sociólogos para ver quais são as alternativas frente a esta globalização. O Fórum Social Mundial é uma instância em que, os povos tratam de procurar caminhos alternativos a este neoliberalismo, à globalização, que está globalizando a pobreza, a exclusão social e a dependência. Estamos perdendo a soberania de nossos povos. E o Fórum é uma reação legítima dos povos de unirmo-nos e pensarmos nas mudanças que nossos países necessitam. Para isso há a necessidade de unidade, tanto em nível latino-americano quanto em outros países que estão passando pela mesma situação, na África, Ásia, Oceania, ou mesmos países centrais como Europa, Estados Unidos e Canadá.

EC – Dentro disso, qual a importância de um evento como o Fórum Social Mundial?
Esquivel – O Fórum Social Mundial é uma instância de reflexão, de intercâmbio de experiências e de ir gerando um pensamento próprio para superar o pensamento único, que hoje nos impõe o modelo neoliberal, sistema de exclusão social, de pobreza, de destruição das identidades culturais, e da possibilidade de desenvolvimento de nossos países. O Fórum Social Mundial permite gerar um pensamento próprio, fortalecer as identidades e trabalhar sobre os distintos âmbitos da cultura, da educação, da economia, da política e ver quais são as alternativas sociais para melhorar a vida dos povos. Com relação à paz, neste sistema de desenvolvimento, sem um pensamento próprio, nem liberdade, ela não é possível. O pensamento único é a dominação e nunca a paz se pôde construir sobre a dominação, mas, sim, sobre a libertação, sobre o sentido da consciência crítica e sobre a construção de novas condições de vida. Muitas vezes se confunde a paz com a passividade, mas não tem absolutamente nada que ver. Ela é uma dinâmica permanente de vida, de relações humanas, de construção da consciência coletiva. A paz não significa a ausência de conflitos, mas relações humanas entre as pessoas e os povos. Esperamos que sigamos consolidando essas instâncias e para isso continuamos a luta.

EC – Como foi sua participação no Fórum Social Mundial?
Esquivel – Participei de várias atividades. Uma foi o Tribunal da Dívida Externa, ou da dívida eterna, também um fórum sobre a situação do país Basco. Fui mediador, durante um ano e meio, entre a ETA e o governo espanhol. Outra palestra foi com a Associação Americana de Juristas, sobre os problemas da globalização e a criminalização dos conflitos sociais, que trata de quando as pessoas reclamam seus direitos e são reprimidos, presos e violentados. Então, o que acontece com o direito dos povos, os próprios direitos humanos? Depois fiz outra palestra sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, como direitos humanos.

EC – Como está a situação do País Basco?
Esquivel – Neste momento, mal, porque o governo de Aznar não quer saber de uma solução política. Aponta mais para uma solução policial e isso tem piorado muito a situação no País Basco. Temos feito também algumas propostas, mas o governo espanhol está sem nenhum tipo de mediação. E, logicamente, quando uma das partes diz que não, deixa de haver diálogo.

EC – Conte um pouco sobre seu trabalho como mediador entre o ETA e governo espanhol.
Esquivel – Fizemos muitos esforços até ver a possibilidade de fazer uma mesa, não ainda de diálogo, mas para acordos de diálogo, de poder ver como se podia articular uma agenda de trabalho. Mas era um outro momento, em que Felipe ainda era chefe de governo da Espanha. Quando Aznar sobe ao governo, corta todo o tipo de mediação e, além disso, queríamos que todo o trabalho que havíamos realizado continuasse no mais absoluto segredo, porque pensamos que a melhor forma de trabalhar em uma mediação é a discrição, não a publicidade, que não ajuda nesses casos. Mas o governo espanhol tornou público o nosso trabalho. Justamente como o fez, depois, em outra oportunidade, e em outras tentativas que houve para encontrar uma solução política ao conflito basco. Bom, fizemos muitos encontros, muitas viagens, encontros com as duas partes separadamente, havia grupos do ETA em Santo Domingo que ficaram autorizados a fazer negociações com o governo espanhol. Depois, houve outras tentativas, com encontros na França e Itália, e em outros países, um esforço grande e, além disso, durante as negociações, aconteceram atentados do ETA muito duros, como o assassinato do catedrático Francisco Valiente, na universidade, e isso foi muito difícil…

EC – O assassinato aconteceu num momento importante das negociações…
Esquivel – Apesar disso, seguimos a mediação. A mediação é a abertura de uma instância de diálogo, mas o conflito não termina. Tem que tratar de chegar a acordos para baixar a intensidade dos conflitos e, quem sabe, chegar a tréguas. O ETA deu uma trégua de 15 meses, mas o governo espanhol a quebrou. Agora, bom, estão nascendo outras tentativas por outros canais, dever se é possível uma solução.

EC – Este tipo de trabalho é feito em outras zonas de conflito?
Esquivel – Há mediações em, por exemplo, El Salvador e na Guatemala, em vários países. São tentativas de poder se chegar a soluções políticas. Algumas têm mais êxito que outras, como no caso de El Salvador. Agora, na Guatemala, onde estive há pouco tempo, os acordos de paz estão paralisados, não avançaram. Bom, tudo isso são etapas do processo dos povos, que se tem que ir seguindo, para avançar, mesmo que lentamente. Também é importante que, em tudo isso, não se ignore que as negociações têm sido feitas nas cúpulas, esquecendo as situações dos povos. O povo tem que ser protagonista, e não espectador dessas decisões. Pelo menos é o que nós sempre propomos.

EC – O senhor acredita que um mundo sem guerras é realmente possível?
Esquivel – Talvez não nos termos ideais, mas tratando de se chegar às soluções dos conflitos através do diálogo é possível, por exemplo, um entendimento melhor. Nisso, é importante o papel das Nações Unidas, para se evitar o que está passando com os Estados Unidos que, depois do 11 de setembro, desconheceram o tribunal penal internacional e formaram um tribunal militar.

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