OPINIÃO

Um dedinho de amor (I)

Por Elisa Lucinda / Publicado em 17 de maio de 2002

Mamãe tinha cinco filhos e um marido que amava, mas nunca associara amor de casamento com frutos dessa união. Não tinha um dedinho de consideração por nós.

O Júlio ficou reprovado pela 2ª vez na mesma série, e ela disse apenas folheando o jornal: é novo, ano que vem passa.

Eu pequena, olhava aquela hereditariedade de desafeto, aqueles irmãos vindo antes de mim sem afago de mãe.

Eu caçula, observava e pensava: qual será a escala para escalá-la? Nada.

Era sempre uma mãe distante, mãe montanha, mãe gigante, mãe longe, não imbuída de nos amar, não incumbida dos mais naturais cuidados: merenda, beijo, estórias na hora de dormir, preocupações pentelhas – Não suba no muro, não caia daí. Ai, era uma mãe extra mater. Parecia que estivéramos todos fora dela quando dentro.

Até que um dia o irmão do meio adoeceu sinistramente na sexta e no domingo definitivamente nos deixou.

Eu mal chorava. Tudo em mim eram olhos espantados de ver minha mãe assolada de uma ternura mórbida, porém ternuríssima, sobre o corpo: meu filho, meu amado, meu preferido, minha vida. Proferia ela amorosos impropérios destoantes do que entendia como real até então.

Na dor da perda, minha mãe amava mais aquele filho do que a todos quando nascera: filho meu, bendito filho meu, o que será de mim?

Compreendi que a culpa disparava nela um amor retroativo, forte, maravilhoso que, se não ressussitara meu irmão, tamanha sua força, em mim produzira uma extensa lavoura de esperança de afeto.

E fora assim desde então. Se algum adoecia, minha mãe fechava as portas dos jornais, da televisão, do marido, do mundo, pra ser só mãe daquele filho enfermo. Cabeceiras insones, estórias contadas até a febre se render, beijos longos que diziam: não me deixe amado, não me deixe.

E eu? Eu tinha era uma filha da puta de uma saúde que teimava em não me largar.

Todo mundo lá em casa pegava gripe forte, porque ainda não existia dengue, pegava hepatite tipo analfabeta, porque ainda não havia classificação, caxumba, catapora e infecções sucessivas de garganta. E eu, boinha da silva!

Me encostava em todos, me oferecia para cuidar; pequenina ainda, queria respirar o ar contaminado do sangue irmão. E nada. Ela mesmo dizia: essa não precisa de mim. E eu precisava.

Então passei a perseguir acidentes naturais, árvores altas, bombas proibidas em São João, altas velocidades em carrinhos de rolimã, mãos perto demais das fogueiras, mas nenhum galho fraco era meu cúmplice, nenhuma bomba, amiga minha, explodira, nenhuma ladeira era minha companheira, nenhuma chama minha irmã.

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