POLÍTICA

A Paranóia como estratégia

José Luis Fiori / Publicado em 2 de outubro de 2002

“There is a strong sense that America has the opportunities, obligations and threats associated in the past with empires: that it can set the rules that govern international relations, while at times operating outside them itself; but also that ultimately it alone can enforce those rules, a rule which makes it the prime target of anyone who dislikes them”
The Economist, 5 de julho de 2002

Um ano depois, já foi dito quase tudo sobre o 11 de setembro de 2001. Artigos e mais artigos, livros, análises rigorosas, impressões, explicações, lembranças e uma longa discussão sobre seu impacto mundial. À primeira vista, uma ruptura radical com o mundo projetado pela “era Clinton”, onde a utopia da globalização se completava, na década de 90, com o sonho de um mundo sem fronteiras nem guerras e de uma sociedade civil mundial, governada por uma democracia cosmopolita. À medida que o tempo passa, contudo, fica cada vez mais claro que os atentados de Washington e New York cumpriram um papel inesperado, numa luta de poder dentro do establishment da política externa norte-americana, que já vinha sendo travada desde o fim da Guerra Fria. E a verdade é que, nesta batalha, os atentados acabaram dando ganho de causa (pelo menos até agora), aos interesses e idéias consagrados pela nova Doutrina Bush, uma estratégia internacional que foi desenhada pela primeira vez, em 1989, por um grupo de trabalho liderado pelo atual vice-presidente, Dick Cheney, ex-Secretário de Defesa do governo do velho Bush. Na sua primeira versão, a nova doutrina propunha, como novo objetivo central da política externa americana, impedir o surgimento – depois do fim da União Soviética – de qualquer nação ou aliança de nações que pudesse rivalizar com os Estados Unidos, que já dispunham, naquele momento, de 725 bases militares e 300.000 soldados, fora do território americano. Estas idéias foram transitoriamente engavetadas durante os governos democratas da década de 90, mas foram retomadas com a volta dos republicanos e da dupla Bush/Cheney. Os atentados e a transformação do terrorismo no novo inimigo bipolar dos Estados Unidos não alterou o objetivo inicial da nova doutrina, mas modificou substancialmente o seu encaminhamento estratégico. A própria definição do inimigo foi alterada três vezes, pelo menos, depois do 11 de setembro: primeiro foram as “redes terroristas , depois o “eixo do mal”, e, finalmente, os “estados produtores de armas de destruição em massa”, categoria que inclui – neste momento – quase todos os aliados americanos na guerra do Afeganistão. O novo adversário não é uma religião, ideologia, nacionalidade, civilização ou um estado, e pode ser redefinido a cada momento pelos próprios Estados Unidos, sendo portando variável e “infinitamente elástico”. Mas, por trás desta elasticidade, o que está sendo proposto é um projeto de “contenção universal” junto com a defesa de um novo direito exclusivo dos Estados Unidos: o direito de fazer “ataques preventivos para mudança de regimes”, em países que protejam terroristas ou produzam armas de destruição de massa, ou, o que é mais insólito, em países que os Estados Unidos considerem que algum dia possam vir a produzir ou proteger terroristas.

A novidade estratégica, entretanto, não pára por aí. A natureza invisível e onipresente do novo inimigo permitiu uma outra redefinição aparentemente mais sutil, mas absolutamente crucial. Donald Ramsfeld, atual Secretário de Defesa dos Estados Unidos, sintetizou a novidade num artigo publicado no Foreign Affairs de maio/junho de 2002: “We decided to move away from the old “threat-baseds” strategy that had dominated our country’s defense planning for nearly half a century and adopt a new “capabilities-based” approach: one that focuses less on who might threaten us, or where, and move on how we might be threatened and what is needed to deter and defend against such threats. Instead of building our armed forces around plans to fight this or that country, we need to examine our vulnerabilities and then fashion our forces as necessary to deter and defeat that threat”.

O novo inimigo dos Estados Unidos, portanto, já não seriam mais uma nação ou aliança de estados territoriais, nem mesmo uma rede terrorista internacional, seria as próprias “vulnerabilidades” dos norte-americanos. Mas quais são estas vulnerabilidades? Quem as define? Em que campo se situam ? O próprio Rumsfeld tenta esclarecer o problema ao defender, no mesmo artigo, a construção de um sistema inexpugnável contra qualquer coisa que possa ameaçar os americanos; contra “o desconhecido, o incerto, o inesperado”. Uma ameaça que pode vir do espaço e ser nuclear, mas também pode ser cibernética, biológica, química e pode estar no ar, na terra, na água, nos alimentos, enfim em centenas de veículos ou lugares diferentes, porque é pouco provável que alguém queira rivalizar ou competir com os Estados Unidos numa guerra convencional. Como a assimetria é enorme, os adversários só poderiam enfrentar os americanos utilizando sua própria tecnologia, de maneira inesperada. Neste sentido, tudo pode se transformar numa arma, principalmente as inovações tecnológicas dos próprios americanos. E tudo pode se transformar num alvo, em particular as coisas mais prezadas e desprotegidas dos norte-americanos. Deste ponto de vista, portanto, tem razão Donald Rumsfeld: a arma dos inimigos será muito provavelmente de origem norte-americana e seus alvos não-convencionais serão “vulnerabilidades” de toda e qualquer natureza, que os próprios americanos terão que descobrir. É isto que explica a proposta do governo Bush de criar uma “rede cidadã” de espionagem, constituída por milhões de homens e mulheres comuns que gastariam parte dos seus dias controlando e vigiando seus próprios vizinhos. E é isto que explica, também, um ponto muito estranho do plano contra ataques terroristas, enviado ao Congresso pelo presidente George W. Bush, no mês de junho de 2002, propondo a criação de “equipes vermelhas” que planejariam ataques contra os Estados Unidos, pensando como terroristas, para descobrir os pontos fracos da segurança americana. É como se a “escalada aos extremos” de que nos fala Von Clausewitz, na sua teoria da guerra, tivesse chegado ao limite da loucura com o desaparecimento de adversários competitivos, e os Estados Unidos estivessem se transformando em inimigos de si mesmos. Sim, porque se as “equipes vermelhas” cumprirem seu papel com eficiência, para não desperdiçar o dinheiro do contribuinte norte-americano, elas terão por obrigação que competir e superar a própria segurança americana. Mas, atenção, neste caso as “equipes vermelhas” poderão descobrir novas vulnerabilidades antes da própria defesa americana, e não é impossível imaginar, pelo menos no campo da especulação, que, em nome da eficiência e do cumprimento do seu objetivo patriótico, as “equipes vermelhas” acabem cometendo o erro de atacar os próprios Estados Unidos.

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