MOVIMENTO

O Império contra-ataca

Jéferson Assumção, especial de Buenos Aires / Publicado em 12 de outubro de 2002

FÓRUM SOCIAL DA ARGENTINA

m no Fórum Social Temático da Argentina (FSTA), de 22 a 25 de agosto, é de que ele ajudou a consolidar a identidade do movimento antiglobalização econômica. E num momento importante. Acirra-se a consolidação do poder global dos Estados Unidos, dispostos a não deixar escapar a “oportunidade” criada pelo 11 de setembro. A estratégia é reforçar o capitalismo em todos os cantos do mundo, conforme o próprio presidente George W. Bush afirmou no último 11 de setembro, no artigo “A Liberdade deve triunfar”, publicado no The New York Times. O texto é uma aula de globalização. A partir dele, se pode entender com mais clareza o que os Estados Unidos querem e aonde os movimentos sociais pretendem chegar com a idéia de um outro mundo possível, mesmo slogan do FSTA.

Na data em que se lembrava um ano dos atentados de Nova York, Bush afirmou ver “na tragédia a oportunidade de um grande triunfo da liberdade sobre todos os seus antigos adversários”. Além disso, os Estados Unidos, segundo o presidente, aceitam de bom grado sua responsabilidade de liderar esta grande missão”. A arma para acabar com a intolerância e universalizar a paz? O “livre comércio”, princípio único e base do sistema que os Estados Unidos supõem ser o melhor para o desenvolvimento de um mundo justo. Pois é contra esse mesmo princípio, já esclarecido nos dois últimos Fóruns de Porto Alegre, que os movimentos sociais avançaram em Buenos Aires na construção de seu próprio “programa mínimo”. Nele, a base não é o comércio, mas o ser humano.

Antimilitarista, antiglobalização neoliberal e antiimperialista. Assim se definiram os cerca de oito mil manifestantes que participaram em Buenos Aires de uma grande assembléia de vizinhos que diagnosticou a crise da região e as vias de superação. O tema foi o neoliberalismo, responsável pela degradação dos países periféricos do capitalismo, por catástrofes climáticas, pela continuidade da realidade de 840 milhões de adultos famintos no mundo e 160 milhões de crianças, o aumento de casos de AIDS na África – encurralada pelo sistema, que não vê no continente nenhuma “oportunidade de negócios” – e pelo crescimento assustador da população pobre na Argentina. Há 25 anos, os argentinos pobres eram 6% da população. Hoje, 53%.

Participaram pessoas de todo o continente e até de países europeus. Mas foi da Bolívia uma das mais importantes presenças. O deputado Evo Morales, cocaleiro boliviano que quase foi eleito presidente de seu país nas últimas eleições, demonstrou ser um líder latino-americano que desponta como alternativa política nos Andes. Suas conferências foram tão concorridas quanto as dos candidatos da esquerda argentina para as próximas eleições, marcadas para março de 2003. Elisa Carrió e Luiz Zamora são os dois grandes nomes dos movimentos populares e que personificam hoje anseios de boa parte da população que, em dezembro de 2001, derrubou o ex-presidente Fernando De La Rúa.

Luiz Zamora, um intelectual, discursa com a mesma desenvoltura tanto pela filosofia política quanto pelas experiências mais recentes de autogestão, economia solidária e democracia participativa em prática em toda a Argentina, país que hoje é um laboratório de sobrevivência ao neoliberalismo. Um desses movimentos é o chamado Barrios de Pié, com boa presença no Fórum. Ligados à Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), os comitês Barrios de Pié estão presentes em praticamente todas as cidades argentinas e organizam a população. Ajudam a politizar a indignação para que ultrapasse o mero espontaneísmo e o assembleísmo.

Outra parte dos movimentos sociais que demonstraram sua forma de luta no Fórum da Argentina são os piqueteiros. Formados por grupos de desempregados, são grande fonte de dor-de-cabeça do governo Duhalde. Só este ano, eles fizeram mais de 800 protestos na Grande Buenos Aires, o que dá uma média de cerca de três piquetes diários. Juntam-se a esses movimentos os trabalhadores, organizados, a maioria, na CTA. Essa é a única central que tem permissão dos piqueteiros para participar das mobilizações. O grande desafio da CTA, agora, é juntar os pequenos partidos de esquerda e, aos moldes de sua irmã no Brasil, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), apoiar um candidato de consenso entre os movimentos sociais para a presidência. O provável candidato sai dos nomes de Eloisa e Luiz Zamora. Quem sabe, até, os dois juntos. Tentarão barrar a ascensão de Carlos Menen, que quer voltar ao poder, e de Rodrigues Sá, que está nas frentes nas intenções de votos.

O Brasil é o norte
Uma coisa é certa. Todas as atenções políticas tanto de Argentina, como Uruguai, Paraguai – agora com novo risco de golpe – e demais países sul-americanos, estão voltadas, é claro, para seu gigante vizinho. A esquerda brasileira e seus símbolos PT, CUT e MST são cultuados e servem de inspiração para outros países. Nas salas das conferências da Universidade de Buenos Aires (UBA), onde ocorreu o Fórum, era visível o poder da mística dos brasileiros, ao serem anunciados integrantes desses movimentos. Foram longamente aplaudidos por uma população que se emociona ao ver as boas chances de vitória do PT nas eleições brasileiras. Luiz Zamora, por exemplo, afirmou que um sucesso de Lula teria um impacto regional inegável, e, quem sabe, “até mundial”.

O sindicalista uruguaio Lalo Fernandes expressou emocionado sua esperança ao afirmar que “uma vitória do PT seria um desafio para toda a região”. Foi esse o fio condutor dos debates na Argentina: a certeza de que o Brasil tem um papel importante a desempenhar no continente, caso se concretize uma vitória da esquerda. Também daria impulso para a realização de um antigo sonho latino-americano. A união dos países do continente seria a saída na busca de construção de um bloco independente, que poderia estar à altura do que o sindicalista argentino Pedro Waresco chama de “o papel civilizador que a América Latina pode desempenhar”.

Contra a Alca, a saída, na opinião de consenso dos integrantes do Fórum, só pode ser a união dos mais fracos. Por isso, as eleições no Brasil interessam não só aos brasileiros como a nossos vizinhos e aos investidores internacionais. Uma eventual guinada do modelo econômico brasileiro poderia ter implicações imediatas nos países ao redor e contagiar toda a América Latina. As conseqüências disso para os interesses estadunidenses poderiam ser importantes. E não se sabe que tipo de reação os EUA colocariam em prática na região. O Plano Colômbia, assim como os planos Puebla Panamá e o Pacto Andino são formas de estender os tentáculos dos Estados Unidos pela América do Sul, caminho que o presidente Bush vem demonstrando querer seguir.

Ainda contra isso, o Fórum da Argentina consolidou também a idéia de que as lutas sociais em países diferentes fazem parte da mesma disputa global contra um modelo que também age e tem conseqüências globais. Enquanto na América Latina os esforços estão concentrados no combate à Alca (cerca de 16 milhões de brasileiros participaram do plebiscito de 1º a sete de setembro, e que culminou com o Grito dos Excluídos), na Ásia a prioridade é barrar o processo crescente de militarização, intensificado pelos Estados Unidos. Na Europa, o movimento enfrenta o reaparecimento de ideologias fascistas, decorrente do fracasso do modelo neoliberal; na África, a exclusão de milhões de seres humanos exige a formulação de alternativas políticas e econômicas imediatas. É por isso que, depois desse fórum sobre o neoliberalismo, serão realizados outros encontros temáticos, um em Israel, sobre a paz, outro em Florença, Itália, chamado Fórum Social Europeu, e outro na Índia. Todos serão preparatórios para o encontro de janeiro em Porto Alegre, onde ocorrerá nova rodada de produção de alternativas.

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