EDUCAÇÃO

A realidade das escolas infantis ainda é distante do que a Lei prevê

Keli Lynn Boop / Publicado em 23 de junho de 2004

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Próxima de completar oito anos, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) 9394/96 surgiu como uma grande perspectiva para a Educação Infantil quando foi criada, pois havia sido incluída como primeira etapa da educação básica. Mas durante todo este período, o que se tem observado é que a educação infantil ainda não recebeu, de fato, a devida atenção. “Muitas das instituições de educação infantil têm funcionado sem o mínimo de condições para oferecer uma educação de qualidade para crianças de 0 a 6 anos. Isso sem falar nas que funcionam na absoluta clandestinidade ”, avalia Soraya Franke, diretora do Sinpro/RS.

Para se ter uma idéia do que afirma a diretora, dados da Secretaria da Educação do Estado (SEC) apontam a existência de 849 instituições privadas de Educação Infantil no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, estariam localizados 393 destes estabelecimentos. Porém basta circular pelos bairros da capital para confirmar a hipótese de que as escolinhas são muito mais numerosas do que as contabilizadas pelo poder público. De acordo com o Setor de Regularização dos Estabelecimentos de Educação Infantil (SEREEI), apenas 250 instituições estão em acompanhamento de regulamentação. Com parecer de autorização de funcionamento pelo CME/POA existem apenas quatro instituições.

O SEREEI foi criado em julho de 2001 pela Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, e entre suas funções estão a de orientar, fiscalizar e acompanhar o processo de regularização dos estabelecimentos privados de educação infantil, com vistas ao Credenciamento e Autorização de Funcionamento pelo Conselho Municipal de Educação (CME/POA). Segundo Cinara Vicente, coordenadora do SEREEI, a principal dificuldade do setor refere-se à falta de capacidade dos proprietários das instituições de educação infantil integrarem o conhecimento de educação com as áreas de saúde e espaço físico. “A questão da educação está relacionada ao espaço físico, à saúde e à higiene. Não queremos voltar à questão da concepção higienista, mas fazer com que os proprietários compreendam que a escola tem que ser um espaço seguro, educativo, pedagógico e saudável”, afirma.

Porém, na prática, o que se constata é que boa parte das escolas em processo de regularização e daquelas que sequer estão cadastradas no SEREEI não oferece as mínimas condições de funcionamento, competindo de forma desigual no mercado com os estabelecimentos que vêm investindo para cumprir as exigências normativas. São freqüentes as denúncias recebidas pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS) sobre questões que vão desde a falta de higiene na instituição, o despreparo das atendentes, a negligência no atendimento às crianças até a falta de cumprimento da exigência de professor nos estabelecimento de educação infantil, este último item previsto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) 9394/96.

Indefinição sobre quem é o órgão fiscalizador

Embora desde 2001 exista em Porto Alegre uma norma que regula e determina as condições mínimas para o funcionamento das instituições (Resolução 003/2001), não existe uma definição sobre quem tem o compromisso e a responsabilidade de impedir que uma instituição que apresente problemas graves continue funcionando. “Apesar da existência desta norma, não vislumbramos quem é que tem o poder de, numa situação grave como maus-tratos, coibir a instituição denunciada de funcionar à margem das condições mínimas e com a urgência necessária, fechando suas portas, se preciso.” De acordo com a diretora, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), nesses casos, não é cumprido. “Há uma inoperância por parte das instituições que deveriam dar cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, à LDBEN e às resoluções do próprio sistema. Ficam fragilizadas e se dizem incompetentes para lacrar uma instituição irresponsável e que negligencia o cuidado da criança. Tem de haver vontade política, por parte da administradora do sistema, de agilizar o processo de regularização e de assumir também os ônus deste processo”, afirma.

Jogo de empurra-empurra

Um dos casos mais recentes envolvendo instituição de educação infantil que funcionava sem cadastro e que foi denunciada por descaso a um de seus alunos que sofreu acidente aconteceu no dia 18 de março. O menino Giovani Luiz Secco Macchi, de quatro anos, caiu no pátio da creche e fraturou o cotovelo. O fato ocorreu na Escola Baby & Cia, localizada na avenida Nonoai 205, no bairro Nonoai, em Porto Alegre. Segundo a mãe da criança, a professora Giane Bertoni Secco Macchi, as atendentes da creche não prestaram socorro ao garoto. Às 19 horas, quando seu filho mais velho foi buscar Giovanni, ele percebeu que o irmão estava chorando e com o braço inchado. As atendentes da creche, conta Giane, disseram que não tinha acontecido nada de grave e que aquilo era apenas “manha”.

Na mesma noite, Giane levou o filho ao Prontopuc, do Hospital São Lucas da PUCRS. Após a radiografia, foi constatado pelo médico uma fratura no cotovelo. “Somente quatro dias depois do acidente, no dia 22 de março, é que foi descartada a hipótese de cirurgia. O médico disse que meu filho teve muita sorte, pois a região fraturada era de risco”, destaca Giane.

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

No dia seguinte ao acidente do menino, a mãe foi orientada pelo Sinpro/RS a formalizar a denúncia pessoalmente no SEREEI. Do SEREEI ela foi para a DECA (Delegacia do Adolescente Vítima de Delito), órgão da Secretaria da Justiça e da Segurança, de lá foi para o Instituto Médico Legal (IML) com o filho, onde fez a ocorrência policial. Foi, também, ao CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente) e ao Conselho Tutelar, no dia 22 de março. “Percebi um jogo de empurra. O CMDCA disse que o Conselho Tutelar é que era responsável, e o Conselho Tutelar disse que era com o CMDCA”, disse Giane e lembrou que no Conselho Tutelar “foi perdida a ocorrência”.

Giane enumerou diversas irregularidades praticadas na creche, entre elas a falta de um muro de proteção em frente à instituição. “Cerca de 15 dias antes da queda do Gionvani, um carro atravessou o pátio da instituição, que está localizada numa avenida movimentada e que não tem muro de proteção.” Até a data da denúncia, o estabelecimento não tinha cadastro no SEREEI e, portanto, não existia para a Prefeitura.

Após o episódio e a denúncia, a Escola Baby & Cia foi cadastrada no SEREEI. De acordo com o proprietário, Carlos Alberto Pires Vaz, os problemas apontados pelo SEREEI (ele disse não lembrar quais eram) já estão sendo solucionados. A versão de Carlos Alberto sobre o incidente com Giovanni é a de que “logo após a criança ter tropeçado, por volta de 18 horas, a professora responsável lavou o arranhão, e o menino saiu bem da escola, às 18h50. O Boletim de Atendimento do hospital registra o horário de 22h06, o que aconteceu com a criança esse tempo todo? Por que somente neste horário ele foi atendido? Se houve omissão de socorro não foi da creche, mas da mãe que levou o filho muitas horas depois do ocorrido”.

A “professora” responsável pela turma em que o menino Giovanni estava matriculado e citada por Carlos Alberto é, segundo Giane, uma adolescente de 14 anos. De acordo com o Sinpro/RS, não há registro de que essa instituição tenha professora.

Para a conselheira do CMDCA, Claudia Decker, quando constatadas irregularidades e problemas graves, como no caso da creche Baby & Cia “o Ministério Público é quem teria que atuar no fechamento da instituição”. Ainda, segundo ela, denúncias desse tipo devem ser feitas primeiro no Conselho Tutelar e depois na Defensoria Pública. “O CMDCA atua na rede comunitária e associações registradas no Conselho. Esta entidade não está”, explicou Claudia.

Falta de registro é comum entre o rol de denúncias feitas ao Sinpro/RS. “Muitas escolas funcionam sem o alvará da Secretaria Municipal da Indústria e do Comércio (SMIC) ou sem outras formalidades necessárias ao fornecimento de recibo aos usuários, que ficam impedidos de receber reembolso-creche das empresas onde trabalham, vantagem prevista em Convenção Coletiva/ Plano de Carreira”, afirma Soraya Franke. O problema chega a ponto de ter instituição em Porto Alegre com inscrição na Receita Federal como empresa de Comércio Varejista de Artigos do Vestuário e Complementos. Soraya também aponta a morosidade para a regularização das instituições. “Há casos de escola que está em processo de regularização há quase um ano, mas funcionando sem condições”, ressalta Soraya.

“Cada estabelecimento necessitará de tempos diferenciados, de acordo com sua realidade socioeconômica e cultural, seu tempo de existência e as características da organização de sua ação educativa”, defende Cinara Vicente, coordenadora do SEREEI/SMED. Sobre o problema ocorrido na Escola Baby & Cia, Cinara limita-se a afirmar que “este estabelecimento está em processo de regularização, tendo iniciado o acompanhamento pelo SEREEI/SMED em 02/04/04”.

A partir desta situação da Baby & Cia e de outras escolas, o Sinpro/RS vai apresentar oficialmente no dia 4 de junho à SUPED (Supervisão Pedagógica da Secretaria Municipal de Educação), setor ao qual o SEREEI está subordinado, a sua posição sobre o processo de regularização que vem sendo adotado e que continuará apresentando denúncias porque é uma instituição da sociedade civil organizada. Além do Sinpro/RS, o Sindicreches (Sindicato Intermunicipal dos Estabelecimentos de Educação Infantil do Rio Grande do Sul) participará da reunião que tem como um dos pontos definir a qual órgão público compete o fechamento da instituição em casos de negligência e maus-tratos, más condições de higiene e descaso com a saúde.

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