CULTURA

Uma máquina de fazer doidos

Jimi Joe / Publicado em 22 de junho de 2004

Nos deslumbrados e deslumbrantes anos 60, Andy Warhol, profeta, arriscou a frase: “no futuro, todos terão direito a seus 15 minutos de fama”. Parece que nunca as palavras de Warhol fizeram tanto sentido quanto agora, nesses primeiros anos de um novo século. Todos estão em busca da fama, não importa a que preço. Não importa nem sequer o tamanho do mico a pagar por escassos instantes de notoriedade.

E alguns pagam verdadeiros king kongs em busca do reconhecimento público. Enquanto Gilberto Braga usa a própria mídia, no caso a TV, através da telenovela Celebridade, para fazer uma crônica sarcástica dessa busca de atenção de todos os olhares, a televisão em si está em um impasse de linguagem que está deixando muitos telespectadores desnorteados.

A expressão “máquina de fazer doido” também parece atingir sua utilidade máxima enquanto a TV oscila entre realidade e ficção, que se misturam nos chamados reality show, que invadem as novelas e poupam, ao menos teoricamente, os espaços de noticiários por temor de processos e punições previstas em lei. Enquanto toda essa confusão de linguagens envolve os telespectadores, algumas pessoas estão tentando destrinchar a charada. É o caso de François Jost, professor francês que se interessou tanto pelo assunto que chegou a escrever um livro, L’Empire du Loft, que aborda o programa francês Loft Story, nos mesmos moldes do Big Brother. Jost, diretor do Centre d’Études Sur l’Image et Son Médiatiques, da Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle, e autor de diversos livros sobre cinema e televisão, esteve no Brasil durante quase todo o mês de abril, quando ministrou um curso no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. Nesse período, aproveitou para conferir os instantes finais da quarta edição do Big Brother produzido pela Rede Globo e outros modelos de reality show gerados pela TV brasileira. Ficou espantado: descobriu que a mescla entre realidade e ficção na televisão, tema de seus estudos há muitos anos, é muito mais grave e perigosa no Brasil do que na Europa. Elisabeth Bastos Duarte, professora da Unisinos, doutora em semiótica e pós-doutora pela Universidade de Paris, que lança até agosto o livro Televisão: Ensaios Metodológicos, concorda com Jost sobre os perigos dessa mistura de formatos. Luis Martins, professor da UnB e coordenador do projeto SOS Imprensa, diz que a receita básica do sucesso dos reality show está centrada no binômio “voyeurismo e catarse ao extremo”. Já o jornalista português Tiago Mota alude ao fato de que os reality show, surgidos como entretenimento, acabaram se tornando assuntos de noticiosos tidos como sérios. Ele identifica a invasão do “real inventado” dentro do espaço factual com a velha fórmula de “dar ao povo o que o povo quer”. José Luís Fecé, professor da Universidade Autonôma de Barcelona, nos diz que “as grandes corporações de comunicação acabaram de impor uma equação já utilizada pelos pintores e teóricos do Quatroccento: ver é igual a crer”.

“A França tem um retrospecto histórico em seus estudos sobre cinema especialmente a partir do final da década de 1950 e por toda década de 60, mas a televisão, que é um veículo que está aí há muitas décadas, carecia de uma visão mais acadêmica sobre seu papel”, diz Fraçois Jost. O interesse pela TV e sua relação com o público, que culminou na publicação do livro sobre o Big Brother francês, é muito anterior à explosão dos reality show pelo planeta. Jost diz que sempre teve essa curiosidade e quase que a necessidade de estabelecer os limites entre ficção e realidade na TV. Seus estudos mais abrangentes sobre a televisão abarcam a produção televisiva francesa toda, desde os anos 1950. “Durante essa pesquisa, meu objetivo era estabelecer os diferentes graus de ficção e realidade.”

Sobre os reality show, ele diz que, embora sejam apresentados como realidade, são todos ensaiados, ou seja, são todos ficção. “O público aceita e se interessa pelos destinos dos personagens da mesma forma que faz com uma novela, que teoricamente é algo totalmente fictício.” O objeto de estudo de Jost, ele admite, é difícil e enganador. “Nem sempre as coisas na TV ficam claras para o público. Vivemos um dilema e temos de decifrar a todo instante onde estão as mentiras ou diferenciar o que é pastiche e fantasia da realidade. E muitas vezes esses elementos são apresentados de formas mistas em vários programas.”

Jost separa em três estágios diferentes a produção para TV. “O primeiro deles é o documentário, quando você vai a algum lugar onde alguma coisa está realmente acontecendo e filma isso, filma essas pessoas em seu próprio apartamento ou no seu próprio ambiente de trabalho e joga na TV. Depois nós temos o estágio em que alguém convida as pessoas para um palco, elas se transformam no centro das atenções. E isso não é a realidade, pois a realidade é o palco. As pessoas apenas atuam nesse espaço. O terceiro estágio é construir uma espécie de casa ou apartamento, que não é uma moradia realmente, pois há montes de luzes, câmeras, equipe técnica, e ali algumas pessoas agem como se fosse realidade, mas não é porque elas podem ouvir a equipe se movimentando lá fora.”

Jost diz que a falsidade dos reality show pode ser medida por vários fatores. Um deles é a escolha dos supostos candidatos. “Você vai acabar vendo sempre os mesmos personagens. Estão lá, sempre, o garoto fortão, a garota bonita, a moça pobre que quer ganhar o prêmio. É tudo muito estereotipado para ser real. Eu acompanhei a fase final do último Big Brother aqui no Brasil e não há nenhuma diferença nesse ponto entre Brasil e França, é a mesma coisa, os mesmos tipos de personagens.” Jost acredita que a escolha desses personagens são parte de um quadro maior. “Acho que um dos objetivos da TV é fazer acreditar que, graças a ela, sua vida pode mudar. É por isso que, na maioria das vezes, os ganhadores são os concorrentes supostamente mais pobres.”

Para Jost, é exatamente nisso que está o motivo de tanto sucesso dos reality show. “As pessoas que assistem se sentem tocadas por aquilo que é apresentado como realidade e elas o aceitam como tal.” As pesquisas feitas por Jost apontaram que, ao menos nas primeiras temporadas dos programas, até mesmo pessoas mais instruídas ou mais intelectualizadas também aceitaram os reality show como fatos reais. “Mas até numa segunda temporada, essas pessoas, mesmo tendo percebido que era tudo ficção, acabaram sendo atraídas por outras razões, fosse pela trama em si, e existe uma trama pré-concebida, fosse pelos personagens.” Jost diz que a atração maior se dá sobre as audiências mais jovens, especialmente adolescentes, que seguem a história “como quem acompanha uma novela”. “É o caso do Brasil, onde as pessoas acompanharam até o fim a saga de Cida, que era uma garota muito pobre em seu caminho para a fortuna.” Segundo Jost, esse tipo de trama se apresenta como algo compensador para os telespectadores de classes econômicas menos favorecidas. “Na Europa, há um programa que é o avesso disso. São celebridades submetidas a todo tipo de dificuldades em seu cotidiano. Isso também gera uma reação de simpatia e, às vezes, quase de vingança por parte dos telespectadores mais pobres que vêem gente rica passando por sofrimentos tão grandes ou maiores do que os deles.”

Jost lembra ainda que há uma outra atitude do telespectador diante dos reality show. “Uma grande parcela de espectadores tem uma postura lúdica diante desses programas. Eles os assistem como se fosse realmente um jogo, como quem assiste a uma partida de futebol ou algo assim. Isso tem acontecido também com o cinema, ultimamente, e é muito interessante. As pessoas têm ido ao cinema mais por um interesse lúdico do que pela história do filme. Grande parte da produção hollywoodiana recente favorece isso. É mais como um circo.” Parte do jogo dos reality show é vivida pelos participantes como uma experiência quase mística. Jost diz que “há uma batalha entre o profano e o sagrado”. “A televisão parece ser o sagrado, e as pessoas, ao participarem desse tipo de programa, sentem o prazer de desfrutar de uma pequena parte desse sagrado.”

Um olhar brasileiro sobre o Big Brother

A professora Elisabeth Bastos Duarte, movida pela mesma necessidade de Jost de definir os limites entre realidade e ficção na TV, também transformou o tema em assunto de seus estudos que acabaram gerando o livro Televisão: Ensaios Metodológicos. “Primeiro é preciso deixar claro que tratamos de coisas bem diferentes. Temos dois tipos de linguagem na televisão. Existe o mundo real, exterior, produto das referências do cotidia-no, que a TV deve respeitar, mesmo que seja apenas em discurso, até porque há um preço a pagar, como multas e outras punições por divulgação de informações não comprovadas. Um outro tipo de texto é o texto de ficção, sem compromisso com a semelhança.” Elisabeth lembra, aliás, que, há muito tempo, filmes, novelas e outros textos de ficção costumavam trazer a clássica enunciação que “qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é mera coincidência”.

“O problema de programas como o Big Brother é que neles se constrói um real artificial no interior do próprio meio, que é a televisão, a qual detém um poder absoluto sobre esse real artificial. Os personagens desse programa se apresentam e falam como se falassem sobre o real. Mas eles falam sobre o mundo real artificial que foi criado para eles.” Elisabeth lembra que, em uma entrevista a uma revista semanal, um dos diretores do programa lembrou que a qualquer momento a produção tem o direito de “defenestrar” qualquer um dos integrantes que não esteja se pautando pelas regras estabelecidas.

“Na verdade, todos estão sendo manipulados nesse grande jogo, tantos os participantes do programa quanto os telespectadores. A TV dá ao telespectador um papel de Deus, que tudo poder ver, até mesmo coisas que, por vezes, os próprios participantes do programa não estão vendo. O telespectador se torna onipresente, onisciente e onipotente a partir do momento em que ele pode até mesmo decidir quem fica e quem sai do programa. Mas o espectador é apenas um ator da trama.”

Elisabeth alerta para o perigo maior dessa confusão de linguagens entre realidade e ficção, especialmente quando a ficção pode contaminar a realidade de forma agudizada. “É o caso de programas como o Linha Direta, no qual se destina um papel de justiceiro ao telespectador. A mistura desses universos diferentes pode ser vista também em novelas, como em Celebridade, que é uma novelinha, mas de repente a Gal Costa aparece visitando uma personagem. Ao mesmo tempo, ela aproveita para divulgar o seu disco, o que já não é ficção, mas realidade.”

Elisabeth diz que o perigo maior está no fato de que esta confusão de linguagens atinge um público que, no caso do Brasil, em sua maio-ria está despreparado culturalmente para identificar essas diferenças. “O problema se torna mais grave quando comparamos nossa produção televisiva com a produção européia, por exemplo. Lá é a televisão pública, sustentada pela população, que dá o nível da programação. No Brasil, são as emissoras privadas que estabelecem esse nível porque as TVs estatais, por mais bem intencionadas que sejam, não têm recursos ou tecnologia para estabelecer um padrão. Nós temos a TV Futura, que é um dos melhores canais de TV educativa do Brasil e que é um canal fechado, pago, quando deveria ser aberto.”

“Enquanto a sociedade brasileira não definir quais são os limites que ela deseja para a televisão, a televisão vai testar quais são os limites que a sociedade agüenta.” As palavras são de Luís Martins da Silva, professor da Universidade de Brasília. “Na França, houve protestos, manifestações em frente ao canal privado que exibiu o Loft Story e mobilizações junto ao governo. Por aqui, o mais provável é que a fórmula se esgote, sendo necessário recorrer a algo ainda mais apelativo”, diz ele em relação ao Big Brother brasileiro. E desfecha: “A receita é básica e muito antiga: voyeurismo e catarse ao extremo, como se a realidade social brasileira já não fosse suficientemente ‘espetaculosa’ para o consumo de imagens sensacionalistas.” Luis Martins acredita que a mistura de realidade e ficção, que por vezes pode ser um prato extremamente indigesto, já vem acontecendo antes dos reality show se tornarem sucessos de audiência. “Mesmo antes do 11 de setembro, realidade e fantasia já brincavam de uma ser a outra, mas agora, com a recessão nas vizinhanças e sucessivas quedas no agendamento de publicidade, o jeito é explorar os limites do ser humano, nas situações que mais o descaracterizam como tal: ganha o carrão quem conseguir ficar mais tempo dentro daquele cativeiro dourado, sem direito às suas funções básicas de micção e excreção.”

Olho atento para ler e ver

A privacidade é um assunto que levou muita gente a escrever livros e a fazer. A mania de bisbilhotar a vida alheia foi investigada por nomes como Alfred Hitchcock e George Orwell. O bom e velho Hitch nos presenteou com o soberbo Janela Indiscreta, filme em que James Stewart é um fotógrafo que, ao quebrar a perna e ficar imobilizado em casa, passa a se dedicar ao esporte da bisbilhotice e acaba testemunhando um homicídio. Orwell, inglês como Hitchcock, escreveu o clássico 1984, uma fantasia sobre um mundo comandado por um regime totalitário que usa a tecnologia para vigiar cada um de seus cidadãos. Fantasia? Na TV, muito antes do Big Brother se tornar atração em vários países do mundo globalizado, lá por 1973, os americanos já ensaiavam um reality show com a série An American Family em 12 episódios. A idéia básica era mostrar tudo que a família Loud (um casal e cinco filhos) fizesse no seu dia-a-dia. Peter Weir, que dirgiu The Truman Show, em 1998, talvez não admita, mas An American Family pode ter sido a inspiração para o filme no qual Jim Carrey é o personagem principal de um reality show diário que começa no dia de seu nascimento. Um ano depois, em 1999, Ron Howard dirigiu EdTV: produtora de um canal de televisão à beira da falência resolve botar no ar um programa que mostra o cotidiano de Eddie Perkuny, um típico Zé Ninguém que vira mais um famoso instantâneo. Muito antes, em 1970, Joseph Sargent dirgiu Colossus, ficção científica onde um megacomputador consegue ver e controlar tudo que os humanos fazem.

Preocupação Global

A preocupação com os limites entre realidade e ficção na TV parece ter se espalhado por todos os cantos. Para o jornalista Tiago Mota, em Portugal, os reality show também chegaram como uma verdadeira praga. E, como em muitos outros países, foram aceitos pela grande maioria da população. “Os reality show são um verdadeiro fenômeno televisivo. Eles conquistam grandes audiências, movimentam grandes verbas em propaganda e promoção e, claro, geram as opiniões mais diversas.” Mas, para Tiago, os reality show levantam uma questão que vai além do limite entre ficção e realidade. “Estamos falando de privacidade, um direito consagrado a todas pessoas, públicas ou não. Estamos falando de ética na imprensa”, diz ele, referindo-se ao que chama de “a mais antiga forma de reality show”. “Entre os meios de comunicação existem tablóides, as chamadas “revistas cor-de-rosa” e outras publicações que se inserem perfeitamente neste mundo do espetáculo que torna público tudo o que é do foro privado. São freqüentes os artigos que, ilustrados com fotografias papparazzi, divulgam a intimidade de personalidades públicas – como foi o caso da Princesa Diana.” Sobre os reality show, Tiago diz que o próprio conceito já traz uma contradição, uma vez que “eles estão em algum nicho entre a realidade e a ficção, e creio que a expressão ‘novela da vida real’ seria a melhor definição”. “De qualquer maneira, são programas dedicados ao entretenimento que assumem proporções descabidas quando se tornam, como em Portugal, assunto de noticiosos tradicionais e respeitados por sua credibilidade há muitos anos. Essa invasão do real pelo fictício com ares de notícia contraria o princípio de que os espaços informativos deveriam ser regidos pelo rigor jornalístico e não pelas regras comerciais.”

Para o espanhol José Luis Fecé, o “furo é mais embaixo”. “A convergência entre os complexos sistemas de transmissão, armazenagem e processamento de informação de imagens fará florescer, segundo os discursos mais otimistas, uma ‘nova sociedade da comunicação’, uma espécie de irmandade universal que nos fará a todos mais iguais, mais conhecedores. Até os pesquisadores e analistas mais otimistas reconhecem que a ‘democratização’ prometida, essa nova utopia, corre o risco de se transformar em homogeneização”, diz ele. Para Fecé, a globalização implica a perda de referências espaciais e temporais. Ele lembra as palavras do pensador francês Paul Virilio: “pela primeira vez, o jogo da história vai acontecer em um tempo único: o tempo mundial. A história tem se desenvolvido, até o momento, em um tempo local, em espaços locais, das regiões, das nações. Agora, de alguma forma, a mundialização e a virtualização prefiguram um novo tipo de tirania”. A ânsia pela informação é um dos pontos comuns de nosso tempo. “Em uma época em que as instituições dominantes, especialmente as grandes corporações de comunicação, acabaram de impor uma equação já utilizada pelos pintores e teóricos do Quatroccento, de que ver é igual a crer, se faz imprescindível refletir sobre as questões referentes à representação da realidade, a pretendida “transparência” da imagem em movimento, especialmente quando, graças à transmissão direta, o espectador pode ‘assistir’, teoricamente como testemunha e sem mediação alguma, a qualquer acontecimento que se produza no planeta.”

Fecé, porém, não acredita muito nessa “nova sociedade de comunicação”. Ele é bem claro em seu alerta. “No circuito ilimitado da informação-mercadoria, qualquer coisa representada tende a trocar de signo: verdadeiro/falso, real/virtual, presente/futuro. A inversão de signos se generaliza. Em um mundo onde qualquer prova pode ser combatida com outra inversa, a evidência ou transparência não é mais do que um engano”, anuncia ele. Sobre a diferença entre realidade e ficção, Fecé tampouco alimenta otimismos. “Cada época tem seus realismos, ou melhor, seus efeitos de realidade. A nossa já não trata de conseguir imagens e sons realistas, mas de injetar nas imagens efeitos de realismo, simular o realismo. Como diz Christian Guillon, diretor do departamento de efeitos especiais digitais da empresa Ex-Machina, imagens documentais ou das reportagens de atualidade são, antes de tudo, inclusive antes de qualquer intervenção tecnológica sobre a imagem, o produto de uma manipulação. O único antídoto contra esse tipo de manipulação é o ceticismo; é necessário criticar a fé absoluta nas imagens e na tecnologia. É preciso conseguir que o espectador saiba que as imagens só falam de si mesmas, em uma palavra, que uma imagem não é mais do que uma imagem.”

Comentários