GERAL

O que restou da era Vargas

Paulo César Teixeira / Publicado em 22 de agosto de 2004

Em 1994, após ser eleito presidente da República, Fernando Henrique Cardoso despediu-se do Senado com um discurso afirmando que a missão suprema de seu futuro governo seria sepultar a Era Vargas. Meio século após o suicídio de Getúlio Vargas, com um tiro no peito, em 24 de agosto de 1954, a herança getulista teima em adiar sua morte anunciada. Resistiu às Constituições de 1945, 1967 e 1988. Na década de 1990, sofreu os mais fortes ataques com as tentativas de flexibilização das leis trabalhistas e a política de privatizações, adotadas por FHC. Ao contrário do seu criador, que tombou morto em seu quarto no Palácio do Catete, o legado de Vargas permanece vivo, com seus erros e acertos, desafiando os historiadores e os analistas políticos.

Conta a lenda que, no desenrolar da Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas recebeu, no Palácio do Catete, a visita de dois representantes de seu ministério em um curto espaço de tempo. Primeiro, apareceu o chanceler Osvaldo Aranha para queixar se do comportamento do ministro da Guerra, Eurico Dutra, que estaria flertando com a Alemanha nazista. O presidente ouviu, atento, aos reclames do assessor e prometeu tomar providências. Alguns dias depois, surgiu Dutra para dar ciência de que Aranha fazia concessões aos aliados, comprometendo a postura supostamente neutra do Brasil no conflito. Getúlio concordou mais uma vez. Foi quando a primeira-dama, dona Darcy, levantou os olhos do tricô e comentou com o marido: “Afinal, quem tem razão?” O presidente deu um suspiro e respondeu: “Tu é que tens razão de ficar perplexa.”

Verdade ou não, o episódio ilustra com perfeição o estilo de fazer política do estadista que governou o país durante 18 anos, primeiro como ditador (1930 a 1945) e, depois, eleito pelo voto popular (1951 a 1954), imprimindo marcas profundas na História brasileira. “Getúlio Vargas é a personalidade política mais importante do Brasil, com um legado amplo, complexo e diferenciado”, afirma Ângela de Castro Gomes, pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas.

A herança da Era Vargas pode ser facilmente detectada em, pelo menos, três esferas: a política, responsável pela criação da figura carismática do líder populista, ora cedendo aos reclames da direita conservadora, ora atendendo às demandas das massas populares; a econômica, com a implantação de um projeto de industrialização de cunho nacionalista que transformou a face do país; e, por fim, a esfera sindical e da legislação trabalhista, com a construção de um modelo de organização dos sindicatos e de um arcabouço de leis que atravessaram décadas e se mantêm praticamente intactos até hoje.

O estadista criou poucas estatais

“A herança política é mais permanente do que a econômica, que foi mais rapidamente transformada”, assinala o professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, Valeriano Costa. Mesmo assim, dois eixos do projeto de Vargas não mudaram – a Petrobras e o BNDES. Em compensação, a área de telecomunicações, que não chegou a sofrer intervenção de GV, exceto de forma dispersa e fragmentada, registra hoje maior incidência do capital privado estrangeiro. “O desejo de FHC de superar o modelo econômico getulista foi apenas parcialmente realizado”, sustenta o professor da Unicamp.

A idéia caricata de Getúlio como defensor de um estado onipresente na economia ou criador de estatais inúteis e improdutivas não resiste à análise mais acurada. “Na verdade, ele criou poucas estatais, e a maioria com grande êxito. Quem multiplicou a quantidade de empresas do governo foi o regime militar”, diz Costa. Havia, no período getulista, uma visão estratégica, que se traduz na criação da Companhia Siderúrgica Nacional, financiada pelos americanos em troca do apoio, afinal, dado aos aliados na Segunda Guerra, a Vale do Rio Doce e a Petrobras. “Fica clara a intenção de investir no setor energético (minério e petróleo) como pólos fundamentais do encadeamento da atividade econômica”, anota.

O caso da Petrobras, criada em 1953, derruba a imagem de nacionalista radical, apregoada tanto por defensores como por detratores de Getúlio. Segundo o professor da Unicamp, o presidente tinha preferência por uma empresa de capital não puramente estatal e havia, inclusive, aberto negociações com a multinacional americana Standard Oil para propor parcerias. “Sabia que o Brasil não tinha tecnologia nem recursos para explorar petróleo sozinho, como queria ou deveria. A radicalização política da época, entretanto, vetou a possibilidade de aprovação da proposta da equipe econômica de GV”, diz Costa.

PTB, PCB e parte da UDN se uniram no Congresso para impor a formação de uma estatal com controle total do petróleo. Os primeiros tinham razões ideológicas para isso, em um tempo de guerra fria, enquanto os últimos temiam que Getúlio usasse os recursos da Petrobras para financiar sua plataforma política. Como resultado, o monopólio do mercado e das reservas de petróleo permaneceu durante décadas nas mãos da estatal. “Não é o Ministério de Minas e Energia que controla o setor, e sim a Petrobras, ao contrário do que ocorre com o setor de energia elétrica, sobre o qual sempre houve maior controle”, enfatiza Costa.

Momento histórico favoreceu nacionalismo
Apesar de moderado, o nacionalismo de Getúlio caiu como uma luva em um período histórico que favoreceu o surgimento de líderes populistas em vários países latino-americanos. “Os caminhos singulares de cada nação estavam na pauta do dia, como hoje está a globalização. Na época, a preocupação nacionalista de Getúlio representou um salto imenso”, destaca Ângela Gomes, da FGV.

O momento era propício para projetos nacionalistas, concorda a professora do PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Cláudia Wasserman, autora do livro Palavra de Presidente (Editora da Ufrgs, 2002), em que analisa a trajetória dos presidentes GV, Francisco Madero (México) e Hipólito Yrigoyen (Argentina). Para ela, o nacionalismo getulista persiste hoje, de roupagem nova, com a performance do presidente Luís Inácio Lula da Silva e de seus colegas, o argentino Néstor Krichner e o venezuelano Hugo Chávez. “Não tanto pelo projeto econômico destes líderes, e sim por meio da postura de defesa da soberania nacional frente a agressões comerciais ou de política externa”, acrescenta Cláudia.

A professora Maria José Lanziotti Barreras, de História e Comunicação Social da PUC/RS, não está de acordo. “Agora, não temos um projeto nacional e, pior, não se tem um projeto de inclusão social.” Segundo ela, o populismo não tinha caráter socialista e não trabalhava com a base social, mas esta acabava sendo beneficiada. Cita como exemplo Juscelino Kubitschek, que abriu a economia para o capital estrangeiro, mas não diminuiu o poder de compra dos trabalhadores. “Como populista, não se atreveu a baixar o salário. Hoje, vivemos a política econômica monetarista implantada desde Castelo Branco, de esperar o bolo crescer para depois distribuí-lo”, afirma Maria José, que defendeu tese de doutorado em Comunicação Social acerca da “aristocratização do consumo” a partir de JK.

Pacto social do populismo manteve-se até o golpe de 1964

Segundo a professora da PUC, o populismo é, antes de tudo, um pacto social. Embora criticado por historiadores marxistas, o Estado benfeitor e generoso, idealizado por GV, garantiu conquistas como o salário mínimo, a jornada de oito horas de trabalho, férias e repouso remunerado. “Dizia-se que a intenção era domesticar a classe trabalhadora, mas antes ela não tinha nada.” O pacto criado por Getúlio de atender, simultaneamente, às demandas de industriais e trabalhadores manteve-se, após sua morte, até o governo de João Goulart, sendo rompido pelo Golpe de 1964. “Quando os operários quiseram mais, apoiando as reformas de base, Jango não teve como mediar os interesses de classe. Pesaram o fulgor dos trabalhadores e o pavor da burguesia, que se sentiu ameaçada de perder a propriedade.”A ascensão do PT ao poder, em 2002, não significou a retomada do poder de pressão dos trabalhadores, segundo Maria José. “O governo de Lula nem social-democrata é”, dispara ela.

Cláudia Wasserman, da Ufrgs, contudo, acha que é cedo para julgar o atual governo. “Vivemos um momento de estabilização da economia e, mesmo assim, existe esforço para manter os benefícios sociais por parte do Estado, com programas como o Fome Zero. A crítica parte de quem quer reeditar o discurso populista, sem levar em conta o contexto atual.” Ela lembra que, ao longo da História, a esquerda oscilou entre apoiar projetos nacionalistas ou adotar um discurso internacionalista. “A esquerda que está no poder, no Brasil, é a que fez revisão do nacionalismo renhido.”

Balanço da era Vargas mostra acertos e erros

Para a pesquisadora Ângela de Castro Gomes, da FGV, a passagem dos 50 anos da morte de GV é o momento para que se faça um “exercício de memória, seletivo, cuidadoso, sofisticado” da herança getulista, para ver o que, efetivamente, seria desejável já ter abandonado há muito tempo. “Um exemplo de legado que não vejo com bons olhos é o modelo de organização sindical, que nasceu em um período autoritário e não pode ser adequado a uma democracia. Por que o apego de sindicalistas, tanto patronais como de trabalhadores, à contribuição sindical compulsória?”, questiona Ângela. Segundo ela, ganhos sociais não-associados a direitos políticos terminam por não reduzir a desigualdade social. “Em alguns países europeus, onde as conquistas sociais se realizaram em ambiente democrático, mais de 80% dos trabalhadores têm garantias mínimas, enquanto, no Brasil, existe uma massa trabalhadora sem qualquer proteção legal.”

Neste acerto de contas com a Era Vargas, uma preocupação relevante é a de manter os direitos sociais, sobretudo os do trabalho, ainda que em um patamar mínimo, apesar das pressões para a flexibilização das leis trabalhistas, aponta a pesquisadora da FGV. Por outro lado, seria aconselhável espelhar-se na visão estratégica de Vargas ao investir no setor de energia: “Se o país não der um salto energético, a arrancada para o desenvolvimento será comprometida”, diz Ângela. Outro bom exemplo do período getulista foi a tentativa de implantar sistemas públicos de educação e saúde mais amplos, ainda que estivessem longe de atingir a maioria da população. “As políticas públicas têm efeito normativo, elas apontam uma direção. Mesmo que atinjam pequenas parcelas da sociedade, mostram que se pode demandar. Se alguém tem, eu posso pressionar para ter também.”
Entretanto, tanto a educação quanto a saúde, a partir do regime militar, passaram a ser setores negligenciados pelo Estado. “É triste saber que, no meu país, em pleno século 21, jovens de 18 anos são analfabetos funcionais e não sabem ler ou escrever, apesar de freqüentarem a escola.” O trágico é que, no caso do populismo, “o que ficou foi o danoso e o que não ficou foi o que poderia ter sido ainda melhor”, conclui a pesquisadora da FGV.

Getúlio inaugurou modelo do presidencialismo de coalizão

A herança política de GV é bem mais visível quando comparada à econômica. Ao voltar do retiro de meia década na fazenda Itu, em São Borja (RS), em 1950, para assumir novamente a Presidência, Getúlio fundou dois partidos – o PSD e o PTB – com conotações ideológicas opostas. Hábil articulador,criou um sistema político que suportou bem o período democrático até 1953, quando as complicações ideológicas da época inviabilizaram as negociações. As forças que se opunham a ele queriam o bipartidarismo, afinal vitorioso em 1964, para reduzir a flexibilidade das alianças por um motivo singelo: a UDN não tinha acesso ao poder devido às dificuldades para formar coalizões e ganhar as eleições.

Segundo Valeriano Costa, da Unicamp, o modelo do “presidencialismo de coalizão” inaugurado por GV continua em vigor meio século depois de sua morte. “Getúlio preferiu se matar a ser deposto. Mas, mesmo perdendo, saiu vencedor. FHC adotou o modelo e Lula também, até com maior desenvoltura.” Se é possível comparar, o atual PMDB lembra o antigo PSD, um partido agigantado, que adota a política de apoio ao governo, com flexibilidade, e depende mais do estilo de fazer política dos caciques regionais do que de um compromisso ideológico. Já a UDN se aproxima do PFL – a ala à direita se opõe ao governo de centro-esquerda, enquanto a outra, pragmática, negocia à sombra um apoio escondido, como fez Antônio Carlos Magalhães, em diversas ocasiões.

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