CULTURA

Consumidor ou consumista, ser ou não ser?

Stela Rosa / Publicado em 15 de dezembro de 2004

O final do ano é um dos períodos em que são contabilizados os maiores picos de venda, quando os consumidores são bombardeados sem dó pelos apelos sedutores da publicidade. Os muitos que não conseguem resistir à sedução poderão começar o ano no vermelho graças à compulsão pelas compras. Estudos apontam que apenas 6% dos consumidores podem ser considerados conscientes. Os mais impulsivos entram no espírito natalino dos shoppings e abarrotam sacolas de presentes e novidades, nocauteando a saúde financeira. Esse é o caso de Pedro, mas nem todos são assim. O seu comportamento é completamente diferente do de Aninha. Ela é do tipo que só vai às compras depois que organiza a lista do que está precisando. Apesar de eles poderem ser qualquer um de nós, esses personagens foram criados pela consultora em educação e direito do consumidor Maria de Lourdes Coelho, para o livro infantil Pedro compra tudo (e Aninha dá recados) – Editora Cortez, 24 páginas – com o objetivo de retratar o comportamento dos consumidores no dia-a-dia e despertar um comportamento mais consciente já na idade escolar. “De certa forma, cada um tem um Pedro e Aninha. Ela é consumidora; e ele, consumista”, explica Maria de Lourdes, acrescentando que as pessoas podem consumir com equilíbrio sem serem contaminados pela epidemia do compra-tudo. Falta à maioria a percepção de que o simples ato de comprar um tênis ou um pé de alface terá reflexos na economia, na socie-dade, no pla-neta.

O comportamento do consumidor desperta interesse dos dois lados do balcão em qualquer estação do ano. De um lado, as empresas realizam estudos com o intuito de entender os hábitos de consumo para melhor seduzir os compradores. Do outro, as instituições que defendem a prática do consumo consciente fazem o mesmo, mas para orientá-los. Cada um tenta entender e apontar, do seu modo, através de pesquisas, as tendências de consumo. O publicitário e especialista na área Luiz Alberto Marinho em recente entrevista à revista Isto É (6 de outubro de 2004, nº 1826) avalia que as pessoas estão procurando encontrar substitutos para os valores tradicionais por meio do consumo; já as organizações de defesa dos consumidores acreditam que o cidadão vem adotando critérios mais exigentes na hora de fazer escolhas, entre eles ficar de olho nas ações sociais das empresas.

Mesmo que para alguns pareça que consumidores como Aninha não existem, esse perfil, mais organizado e consciente na relação de consumo, foi detectado em 6% dos entrevistados de uma pesquisa realizada pelo Instituto Akatu, uma ONG cuja missão é estimular o consumo consciente. Aron Belinky, gerente de Operações do Akatu, explica que os perfis dos consumidores e seus graus de consciência foram traçados a partir da freqüência na prática de 13 comportamentos selecionados entre os mais de 80 que constavam no estudo. Os pesquisados considerados conscientes revelaram que, além de planejar compras de alimentos e roupas, para evitar desperdício e gastos compulsivos, economizam água, luz e papel, reciclam o lixo e, quando necessário, apresentam queixa em órgãos de defesa do consumidor, entre outras ações. (Veja no gráfico a lista de ações usada para aferir o grau de consciência de consumo.) Além deste perfil, foram detectados comportamentos que vão desde os considerados iniciantes, por demonstrarem algumas atitudes mais cuidadosas, como verificar o prazo de validade dos produtos, até os indiferentes, que nem sequer se preocupam em pedir nota fiscal. Os iniciantes que totalizaram 54% afirmaram adotar de 3 a 7 atitudes. Os que realizavam de 8 a 10 ações somaram 37% e foram denominados comprometidos. Apenas 3% ficaram no grupo dos indiferentes por adotarem de 0 a 2 comportamentos. Na pesquisa, também foram feitas abordagens referentes à percepção das pessoas sobre os principais problemas da sociedade, comportamentos cotidianos, critérios de avaliação e escolha de uma empresa ou produto, aspectos do consumo não-ligados diretamente ao preço e perguntas relacionadas a análises de opiniões, atitudes e valores.

Em relação aos critérios de compra levantados, alguns chamam a atenção como fato de a maioria dos entrevistados apontar a contratação de deficientes físicos como a ação empresarial que mais os estimulam a adquirir produtos de empresas. Já a propaganda enganosa foi a ação empresarial considerada mais desesti-mulante à compra. Com certeza, muitos consumidores já tiveram a surpresa de se deparar com um produto que tinha pouca semelhança com o que foi anunciado, situação que Maria de Lourdes traz no livro. Pedro gasta toda sua mesada para comprar um carrinho que fazia tudo, abria e fechava portas, acendia luz, subia e descia, mas somente na propaganda.

Mesmo com o percentual de apenas 6% de consumidores conscientes, os resultados obtidos na pesquisa surpreenderam positivamente, segundo Aron Belink. “Percebemos que quase metade, con-tabilizando os comprometidos e conscientes, estão com grau de consciência de consumo mais desenvolvido. E isso já é uma notícia boa.” A pesquisa foi realizada com pessoas com faixa etária de 18 a 74 anos, pertencentes às classes sociais A, B, C e D em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte, Fortaleza, Salvador, Curitiba, Belém, Brasília e Goiânia.

Driblando as armadilhas

Para fugir do consumismo desregrado, o cidadão tem que driblar as armadilhas da indústria da propaganda e das convenções comerciais. Além do natal, tem a páscoa, dia das mães, dos pais, dos namorados e já tem dia da vó, do vô, da sogra, do amigo e por aí vai. Maria de Lourdes confessa que já foi um Pedro, e não era fácil. “Tinha compulsão, comprava tudo o que via pela frente.” Ela conta que a informação foi a principal ferramenta para conter os impulsos e aprender a ter novas atitudes.

Segundo Aron Belink, essas mudanças de atitude são urgentes, principalmenfoto_maria_de_lourdes

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

te quando o consumo diz respeito aos recursos naturais. “Consumir não é só comprar, é fazer escolhas que repercutem na economia, na sociedade e no planeta”, diz o gerente da Akatu. A afirmação que, no primeiro momento, parece um tanto quanto exagerada vai tendo mais sentido quando ele explica que a relação de consumo não se restringe ao ato de compra. Quando se abre a torneira já é um exemplo emblemático. Para se ter uma idéia, se o consumidor escovar os dentes com a torneira aberta irá gastar 14 litros de água quando poderia usar apenas 2 litros. Caso a população de uma cidade de 200 mil habitantes deixasse a torneira aberta ao escovar os dentes, seriam desperdiçados mais de 2 milhões de litros de água.

Na correria do cotidiano, há questões relacionadas ao consumo que nem sequer são imaginadas pelas pessoas. No site da Akatu, a informação de que ao comprar uma simples peça de roupa o consumidor pode estar contribuindo para o trabalho infantil (prática proibida por lei e combatida internacionalmente) é, no mínimo, surpreendente e assustadora, principalmente, quando se depara com os números. Em torno de 296 mil crianças entre 5 e 9 anos e 1,9 milhão de adolescentes na faixa etária de 10 a 14 anos trabalham, e cerca de 12% das crianças entre 5 a 17 anos não freqüentam a escola. Belink ressalta que ao comprarmos um produto levamos para casa toda a história daquela mercadoria, que pode ser a contribuição para ações sociais das empresas ou o trabalho infantil. “Através do consumo, as pessoas participam do mundo para o bem ou para mal, conscientes ou não”, alerta Aron Belink.

Como nem sempre as coisas são o que parecem, empresas como Nike e Adidas são denunciadas por terceirizarem fabricação com empresas que contratam trabalhadores chineses, submetendo-os a condições subumanas de trabalho, inclusive com agressões corporais e a maioria sem contrato legal. Essa situação é levantada pela jornalista canadense Naomi Klein no livro Sem Logo (Leia Extra Classe, 61, maio de 2002). Quando a questão é irregularidades das empresas, o consumidor pode se deparar com propaganda enganosa, poluição de rios, falsificação de produtos e vários et cetera. As mais alarmantes, muitas vezes, são cometidas por essas corporações multinacionais que se sentem completamente à vontade em cometer esse tipo de práticas questionáveis em vários países do mundo.

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Foto: Arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal

Criado em 1998, o Instituto Ethos é uma das organizações não-governamentais que estimula a adoção de gestão com Responsabilidade Social Empresarial (RSE) e certifica as empresas. A proposta é que as empresas comprometam-se com o desenvolvimento sustentável, mantendo uma relação ética e justa tanto com os funcionários como com os clientes e também contribuindo para solucionar os problemas sociais através de projetos educa-cionais, ambientais, sociais. Mesmo que repleto intenções positivas para a sociedade, o debate referente à RSE tem contradições, como o fato de a Souza Cruz, fabricante de produtos nocivos à saúde, ser uma das 900 associadas do Ethos. Marcelo Linguitte, gerente de Assuntos Institucionais e de Relações Internacionais do Ethos, reconhece que há um dilema, mas alega que o papel da ONG é garantir e conscientizar as empresas a desenvolverem ações que contribuam para o
desenvolvimento sustentável. “Só não aceitamos empresas de armamentos, e não cabe ao instituto julgar, mas estimular uma ação responsável”, argumenta. Ainda é difícil prever se esta é mais uma onda de certificação como as de qualidade total que virou moda nos anos 80 e início dos anos 90, ou se realmente as instituições irão assumir para si algumas responsabilidades sociais, como contrapartida à sociedade. Caso contrário, “será só mais uma onda”, frisa. Para separar o joio do trigo, só resta ao consumidor a informação, lembra Linguitte.

A legislação brasileira é uma das mais avançadas

Em matéria de legislação, os especialistas afirmam que o brasileiro dispõe de um dos códigos de defesa do consumidor mais avançados. Segundo Ana Luísa Ariolli, supervisora do atendimento Jurídico da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor – Pro Teste –, o diferencial da legislação do Brasil em relação às outras é que houve uma preocupação de prever a relação de consumo em todas as nuanças sem deixar nenhuma lacuna, o que permite a resolução de questões diretamente entre fornecedor e consumidor. O código é um minissistema que possibilita ao Procon aplicar sanções administrativas, como fechar estabelecimentos e computar multas”, avalia Ariolli.

Mesmo com possibilidade de atuar de forma incisiva, Osmar Seixas, coordenador do setor jurídico do Procon-RS, afirma que nem sempre o que está no papel funciona na prática. A falta de acesso à informação por parte do consumidor e a carência do quadro de recursos humanos no judiciário e no próprio Procon não nos deixam atuar de maneira satisfatória. Ainda assim, Seixas avalia que muitos problemas são resolvidos com a intermediação do Procon. As armadilhas para o consumidor estão por toda parte, mesmo quando se trata de defender seus direitos. Muitos pseudo-profissionais na área do direito acabam aplicando golpes nas pessoas menos avisadas. “Em caso de dúvida, a melhor opção para o consumidor é procurar o Procon da sua cidade”, aconselha Ariolli.

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