EDUCAÇÃO

A paz que queremos ter

Paulo César Teixeira / Publicado em 7 de abril de 2005

De que modo a educação pode contribuir para evitar a guerra e a violência? Algumas das respostas estão sendo dadas por educadores de escolas das redes pública e privada que implantaram projetos de construção de uma cultura da paz. “Se a gente quer a paz, precisa educar as novas gerações a não glorificar a guerra, e sim a solidariedade e os direitos humanos”, afirma o padre Marcelo Guimarães, coordenador da ONG Educadores para a Paz, de Porto Alegre, que já capacitou 600 professores em cursos e oficinas realizados no Rio Grande do Sul e no Paraná.

“A educação é o elemento chave e organizador da construção da paz”, reforça Pierre Roy, secretário-executivo da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação, rede de ONGs instalada em 22 países. Haitiano radicado no Brasil há dez anos, Roy passou um tempo como missionário no Pará e hoje vive num verdadeiro paiol de pólvora, coordenando o Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “O Rio de Janeiro enfrenta uma situação parecida com a da Colômbia. A imagem da violência indiscriminada na mídia, na escola e nas ruas estimula a agres-sividade entre as pessoas.”

A educação para a paz tem dois princípios básicos: propagar uma visão crítica da produção cultural da violência e ensinar a trabalhar os conflitos interpessoais de forma pacífica. Ninguém desconhece as razões econômicas e políticas dos conflitos humanos. Atualmente, os gastos militares em todo o planeta alcançam a cifra de US$ 1 trilhão. Para cada dólar investido em projetos sociais, US$ 2 mil são aplicados na indústria da guerra. Entretanto, há também fatores culturais que abrem caminho para que as relações violentas sejam preponderantes. “Temos uma educação voltada para a violência sem que a gente perceba. Até as cantigas infantis ensinam a atirar o pau no gato, como lição ecológica”, ironiza o padre Guimarães.

Por outro lado, se a agressividade faz parte da dimensão humana, lidar com os conflitos não é eliminá-los, e sim aprofundar o debate e buscar soluções con-sensuais. “Acima de tudo, é superar a idéia de que a violência é o caminho natural para resolver as diferenças”, salienta o padre Guimarães. “Infelizmente, o educador não está habituado a esse procedimento. Quando o conflito se esboça, ele dá a sentença como juiz magnânimo ou põe em votação para se livrar do problema, em vez de discutir com a turma e achar uma solução benéfica para todos.”

Em boa parte das escolas, o debate resvala para chavões. “Embora seja um clamor universal, a paz virou modismo, uma espécie de refrão. Ensinam as crianças a desenhar balõezinhos e pombinhas brancas, ao invés de transformar a escola num centro promotor da cultura da paz”, critica Guimarães. Já Pierre Roy – que também coordena a Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento, ONG que atua em 17 países – afirma não ter preconceitos com o que chama de “atividade light” da promoção da paz. “Símbolos como bandeiras e pombas brancas ganham força no imaginário. Por mais batidos que sejam, desempenham uma função psicológica de agregação.” Para ele, os programas mais eficientes de conscientização combinam a linha light e ações concretas de emancipação da pobreza, um dos principais fatores da violência.

Armas, nem de brinquedo

Desde o ano 2000, os 239 alunos da Escola de Ensino Fundamental Madre Raffo, da rede privada, instalada em Belém Novo, na zona sul de Porto Alegre, praticam novos valores culturais. Primeiro, eles se desfizeram de todos os brinquedos relacionados à guerra, recolhidos e encaminhados para reciclagem. “Pistola d’água, soldadinho de chumbo, lança, não sobrou nenhum para contar a história”, relata Camila Cunha, de 9 anos.

Depois, inventaram um jogo de cartas alternativo aos jogos individualistas e competitivos. Puseram o nome de Dignimon, uma brincadeira que mistura a palavra dignidade a Digimon, título de desenho animado japonês carregado de violência. Só que, em vez dos monstrinhos japoneses, o baralho da garotada de Belém Novo é feito de símbolos da paz. “O melhor é que todos podem jogar ao mesmo tempo. Com o baralho do Digimon, só dois podiam participar e sempre dava briga”, conta Carolina Coral, 10 anos.

A turma participou de campanha para construir uma creche para 80 crianças carentes da vila Sertão 2, de Belém Velho. “Cada moeda de 50 centavos valia um tijolinho”, lembra Euler Paim, 10 anos de idade. Quando a creche ficou pronta, os alunos da Madre Raffo fizeram questão de visitar a criançada de Sertão 2. “Até fralda a gente trocou”, diz Luísa Hoffmann, 11 anos. “Uma menininha pediu à professora para ir ao banheiro e correu atrás do ônibus para se despedir da gente e ficou abanando”, não esquece Karen Moreno Ignácio, 9 anos.

Todas as atividades integram o projeto Cultuando a vida, que a cada ano escolhe um tema relacionado a direitos humanos, justiça social ou ecologia, como Armas, nem de brinquedo, ou Comida na mesa, paz na cabeça. “O primeiro passo foi capacitar os 22 professores com assessoria da ONG Educadores da Paz”, relata a diretora Maria Teófila do Amaral, que os alunos chamam de Irmã Antônia (a escola é mantida pela congregação católica Filhas de Maria Santíssima do Horto).

O programa inclui atividades curriculares interdisciplinares, explica a vice-diretora Raquel Pena Pinto. “A gente reúne os professores e pergunta a eles como cada disciplina pode contribuir para a cultura da paz.” A escola promove oficinas de literatura e informática, além de projetos voltados para o convívio saudável através do esporte (futsal, xadrez e vôlei). “Também realizamos atividades de integração com a comunidade, como a limpeza da orla do Guaíba”, observa o coordenador do serviço pastoral, Márcio Adriano Cardoso.

Batendo à porta da ONU

A Escola Estadual de Ensino Médio Bandeirante, de Guaporé – a 210 km de Porto Alegre –, pertencente à rede particular, também dá aulas de cidadania. Com 1,7 mil estudantes e 70 professores, é o colégio mais antigo (completa 80 anos em 2006) da região. Em 2001, implantou o projeto Escola Bandeirante na Trilha da Paz, para dar uma resposta à violência social que se refletia na sala de aula. “Havia agressividade entre os alunos e depredação do patrimônio”, afirma Sílvio Antonio Bedin, coordenador pedagógico.

Nos dois primeiros anos, a escola se dedicou a capacitar os educadores com cursos de treinamento, que incluíram também os funcionários. Em 2003, passou a realizar oficinas para os estudantes, em parceria com as ONGs Educadores da Paz e Ser Paz (de São Leopoldo). “Os alunos chegaram desconfiados. Depois, não arredaram mais o pé”, lembra Bedin. Até agora, 120 crianças e jovens participaram das oficinas. Há também atividades culturais que envolvem teatro e hip-hop.

O pessoal ficou tão empolgado que, em 2003, na véspera da invasão do Iraque pelas tropas dos Estados Unidos, chegou a mandar um abaixo assinado com 3 mil assinaturas à ONU. O documento dava força para o Conselho de Segurança das Nações Unidas, ao qual o presidente George W. Bush não dava a mínima atenção. Tempos depois, bateu na caixa postal do colégio uma resposta da ONU, agradecendo o apoio. Dá para imaginar a alegria da rapaziada.

O projeto do Bandeirante inclui ainda uma gestão democrática da escola. Os alunos passaram a construir democraticamente as normas de convívio, com acompanhamento da coordenação pedagógica, o que resultou num manual que valoriza qualidades como respeito, gentileza e cordialidade. “São valores que tornam menos difícil a tarefa de educar e mais aprazível a convivência de todos”, salienta Bedin.

“Quando sujeitos na escola descobrem que podem transformar as circunstâncias da vida a seu favor e em favor dos outros, algo de mágico acontece. Em vez de chorar um vale de lágrimas, os professores agem como atores sociais, que criam as condições necessárias para que o seu trabalho seja mais leve”, conclui o coordenador pedagógico do Bandeirante.

As mãos sujas de sangue

A cada 13 minutos, um brasileiro morre vítima de disparos de revólver, fuzil ou metralhadora. Aqui, ocorrem cerca de 40 mil dos 500 mil homicídios praticados com armas de fogo anualmente, em todo o planeta. O número representa 8% do total de crimes, embora o país abrigue não mais do que 3% da população mundial.

Os dados são de pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (Iser), em parceria com as ONGs Viva Rio e Small Arms Survey. Conforme o estudo, os estados mais armados são Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. Chamam a atenção na estatística da violência: 60% dos homicídios têm causas banais e envolvem pessoas que se conheciam. Ciúme, futebol, excesso de bebida alcóolica, disputa societária ou mera explosão de raiva estão entre os estopins. Só de 10% a 15% das vítimas são mortas por assaltantes. Por outro lado, todos os dias, duas crianças ou pré-adolescentes são hospitalizadas com ferimentos causados por disparos acidentais. Entre os jovens feridos de 15 a 24, o percentual de acidentes é de 32,2%.

Consulta popular em outubro

No Brasil, está marcado para 2 de outubro de 2005 o referendo em que a população vai dizer sim ou não à continuidade da proibição do comércio de armamentos, que faz parte do Estatuto do Desarmamento, sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro de 2003. Uma campanha de mobilização para manter o veto está sendo organizada por entidades e movimentos sociais. Em Porto Alegre, as reuniões quinzenais ocorrem na sede da Famurs (rua Marcílio Dias, 574). No dia 29 de abril, haverá uma plenária estadual, na Assembléia Legislativa. “Temos seis meses para conscientizar a sociedade”, afirma Soraya Franke, diretora do Sinpro/RS, que faz parte do Comitê Gaúcho do Desarmamento.

As entidades da sociedade civil também se mobilizam contra a guerra. Uma manifestação a favor da paz foi realizada no Brique da Redenção, na capital gaúcha, no dia 20 de março, reunindo cerca de 300 pessoas. O ato foi simultâneo a protestos que ocorreram em todo o mundo, alusivos aos dois anos da invasão norte-americana no Iraque.

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